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Tio Vânia

A edição que tenho da peça “Tio Vânia”, de Tchekhov, da qual falaremos hoje, foi traduzida e adaptada pelo grupo Galpão. Arildo de Barros e Eduardo Moreira foram os responsáveis por esse grande trabalho. Para aqueles que desconhecem o Grupo Galpão, é um dos grupos teatrais mais importantes do Brasil. O grupo original de Minas Gerais é uma referência no cenário teatral brasileiro, mas também internacional. A origem da companhia está no teatro popular de rua, onde combinam diversos elementos cênicos, como o circo, a música, a farsa e o drama.

O grupo ganhou notoriedade nacional a partir de 1992, quando encenou “Romeu e Julieta”, de Shakespeare, com uma montagem de teatro de rua, recebendo os prêmios do júri popular do Festival Nacional de Teatro de Curitiba e o prêmio Shell em 1993.

Tive o privilégio de assistir à peça “Romeu e Julieta” encenada pelo grupo no Rio de Janeiro dirigido por Gabriel Vilela. E fiquei encantado com a capacidade teatral criativa e ilimitada desse grupo. E da excelente e inesquecível atriz Wanda Fernandes, que interpretou Julieta, que veio a falecer logo depois devido a um desastre de carro, após receber a Medalha da Inconfidência, entregue pelo governo mineiro. Mas o trabalho desse grupo magistral continuou e ainda continua encantando plateias do Brasil e do mundo.

Para aqueles que costumam frequentar este espaço, fica a dica: onde vocês lerem em qualquer lugar que o “Grupo Galpão” estiver encenando qualquer peça, podem ir sem receio. Vocês irão entender do que estou falando.

A peça “Tio Vânia”, de Tchekhov, foi encenada pelo Grupo Galpão em 2011, dirigida por Yara de Novaes e foi adaptada e transformada em livro pela Editora Autêntica.

Vamos à história?

Quando “Tio Vânia” foi encenada pela primeira vez, a Rússia ainda era governada por Czares. Os trabalhadores e camponeses formavam grupos de resistência e a filosofia socialista estava se espalhando. No final do século XIX, as placas tectônicas sociais estavam começando a dar sinais de mudanças, tomando forma de revolução. A história se passa numa família que tem vizinhos muito pobres. A peça de muitas maneiras mostra um microcosmo da Rússia czarista da época. Ela se passa na casa de campo do professor Serebryakov, onde mora sua filha Sofia Alexandrovna (Sonia), filha do primeiro casamento de Serebryakov, e o irmão de sua falecida esposa, Vânia. Eles são como sua família.

O professor Serebryakov casou-se de novo com uma mulher muitos anos mais nova, Helena, de 27 anos. Maria, que é mãe de Tio Vânia e da primeira mulher do professor, senta-se com o doutor Astrov e Vânia e Teléguine, no jardim. Todos reclamam de como a vida se complicou com o aparecimento de Serebryakov, que veio para ficar na casa com a sua nova esposa, Helena. A rotina parece ter perdido o controle.

Maria, mãe de Vânia, não consegue aturar as reclamações do filho sobre sua frustração com a sua vida. E ele culpa Serebryakov pelos seus fracassos. O doutor Astrov revela sua preocupação com a destruição das florestas russas. É aí que chega Helena. Vânia senta-se perto dela e diz que ela está desperdiçando sua juventude com o velho. Helena passa batido. Não se interessa pelas opiniões de Vânia.

O professor Serebryakov é um homem doente que sente dores na perna, sofre de gota. Sua esposa, Helena, e sua filha Sônia tentam acalmá-lo quando suas crises acontecem, mas nada realmente ajuda. Vânia tenta chamar a atenção de Helena, mas ela o repele.

Helena: “...Por que vocês homens, não são capazes de olhar uma mulher com indiferença, a não ser que seja a própria? Porque o doutor tem razão: há o demônio da destruição em cada um de vocês. Não poupam as florestas, nem os pássaros, nem as mulheres, nem uns aos outros. (pg33)

Dr Astrov está ligeiramente bêbado, e Sônia (filha do professor) é secretamente apaixonada por ele. Ela implora para que ele não beba. Ele concorda, mas ele não percebe os sentimentos dela em relação a ele.

Algo acontece que Sônia e sua madrasta (que não é muito mais velha que ela) encontram-se e conversam logo depois que o médico sai, e elas parecem compartilhar de alguns sentimentos e pensamentos em comum, que as aproximam.

“Helena: Você sempre achou que eu me casei com o seu pai por interesse. Bem, juro que foi por amor. Fiquei deslumbrada pela aura dele de sábio, pela fama dele. Não era um amor de verdade, tudo artificial, mas para mim era verdadeiro. Não me sinto culpada. Mas, desde o dia em que me casei, tenho sido acusada por você.

 Sônia: Por mim?

Helena: Por esses olhos tão vivos e desconfiados.

 Sônia: Mas agora, a Paz! Foi tudo esquecido

Helena: tem que confiar nos outros. Ou a vida é impossível.

(pausa)

 Sônia: Me diz francamente, como amiga: você é feliz?

 Helena: Claro que não.

 Sônia: Eu sabia. Outra pergunta. Com franqueza, também! Você não gostaria de ter um marido mais jovem?

 Helena: Claro que sim! (Ri) Pergunte mais. Pergunte mais!

 Sônia: Você gosta do doutor?

 Helena: Gosto muito.

 Sônia Você deve estar me achando com cara de idiota, não está? Ele já foi embora, mas continuo ouvindo a voz dele, os passos dele e vejo o rosto dele refletido nessa janela escura. Eu quero lhe contar tudo sobre ele..., Mas fico envergonhada. Mas fala alguma coisa sobre ele.

 Helena: O que você quer que eu fale?

 Sônia: Ele é tão inteligente, não é? E ele pode tudo! Cura os doentes, planta as matas...

 Helena: Minha querida, isso não é mais importante, sabe? Ele é muito mais do que isso. Você tem que entender é o talento dele. Um talento que para mim significa audácia, liberdade de espírito, amplitude de visão. Quando ele planta um arbusto, sabe o que resultará disso em mil anos, está pensando no fundo da terra. Ele bebe. Chega a ficar desagradável. Mas que tem isso? Um homem com esse talento não atravessa a vida sem cicatrizes. Imagine a vida que leva esse doutor! Estradas infinitas cheias de lama, gente grosseira, pobreza, doença. Trabalhando nessas condições, é quase impossível para um homem chegar aos quarenta anos puro e sóbrio (beija Sônia). Desejo de todo o coração que você seja feliz. Você merece. (levanta-se) Quanto a mim, sou apenas uma personagem insípida e secundária. Na música que estudei, na vida de meu marido, em tudo e em toda parte eu sou só isto; secundária. Realmente, Sônia, é bem fácil perceber que sou uma mulher muito infeliz. (ainda agitada). A felicidade desse mundo não foi feita para mim. Nunca! Está rindo de quê?” (pág. 54, pág. 55; pg56)

Sônia diz que é louca pelo Dr Astrov, mas ele não a nota porque ela não é bonita. Helena promete saber o que ele pensa, e Sônia fica nervosa com a perspectivas de saber a verdade.

Helena fica a sós com o Dr Astrov, e pergunta se ele ama Sônia. E a resposta não a surpreendeu. Ele diz que não ama Sônia, mas a própria Helena. Ele tenta chegar perto para beijá-la, quando aparece Vânia e vê que os lábios tanto de Astrov como de Helena estão próximos. Helena surta e quer sair daquela casa imediatamente e voltar para a cidade o mais rápido possível.

Serebryakov, o dono da propriedade, anuncia que está com problemas financeiros e planeja vender a casa e investir o seu dinheiro em uma nova casa na Finlândia. Vânia se desespera e lembra a Serebryakov que ele, Sônia e sua mãe estão trabalhando de graça, cuidando de sua propriedade e que as consequências dessa venda serão terríveis para ele, para a filha do próprio Serebyryakov (Sônia) e para a mãe de Vânia.

Tiros são disparados, Vânia está enlouquecido. Helena aparece e informa a Vânia que seu marido está disposto a se reconciliar com ele e promete que não venderá a casa. Sônia sai com o seu tio Vânia. Helena e Astrov se despedem discretamente. O médico faz uma última tentativa de convencê-la a ficar: Helena se recusa. Os outros membros da casa aparecem. Tio Vânia e Serebryakov se reconciliam. Tudo voltará ao que sempre foi. Helena compartilha o último adeus a Tio Vânia. Todos se retiram, inclusive o Dr Astrov. E sobram apenas Sônia, Tio Vânia, e sua mãe Maria. Sônia vira-se para o seu Tio Vânia e diz:

“Sônia: Que é que se pode dizer, tio Vânia? Continuar vivendo. (pausa)Nós vamos continuar vivendo, titio. Vamos atravessar uma fileira interminável de dias tediosos. E noites tediosas. Vamos aceitar com toda a paciência, as provações que o destino nos impuser. Trabalharemos os outros, agora, e mesmo quando formos velhos. Jamais descansaremos. Quando chegar a nossa hora, aceitaremos a morte com resignação e, de outro lado, além da morte e além do túmulo, contaremos tudo que sofremos, tudo que choramos, tudo que provamos com amargura... E Deus terá piedade de nós. Aí querido tio Vânia, nós dois juntos conheceremos uma via luminosa, feliz e harmoniosa. Teremos então, a plenitude e olharemos a nossa infelicidade de hoje, com um sorriso de ternura – e aí descansaremos. Eu acredito nisso, meu tio, acredito fervorosamente. Apaixonadamente... nós descansaremos. (Teléguine toca suavemente). Ouviremos os anjos e contemplaremos todos os céus cravejados de diamantes. E toda a maldade terrena, todos os nossos sofrimentos, serão varridos pela misericórdia que cobrirá o universo. E a vida será pacífica, gentil e suave como um carinho. Eu acredito! Eu acredito! Pobre tio Vânia! Coitado do tio Vânia, está chorando... (também chorosa) O Senhor não conheceu as alegrias da vida, tio Vânia, mas espera...Espera um pouco. Nós descansaremos. Descansaremos. (Maria Vassiliévna toma nota à margem do panfleto que lê.).

 Sonia: Nós descansaremos!

A peça aborda vários temas como a estagnação existencial no interior da Rússia. Tema esse que também foi abordado em “As Três Irmãs” (já resenhada aqui). Quase todos os personagens lutam por uma mudança, mas nada ocorre, mesmo quando tio Vânia atira em direção a Serebryakov, onde ocorre o clímax, nada acontece e tudo volta ao normal.  Tio Vânia vivia na ilusão de que poderia ter sido um grande escritor, mas não conseguiu. O tempo tem um efeito corrosivo. Ele passa sem aviso prévio até que um dia todos acordam. Como é o caso de Sônia, que perdeu seus anos envolvida com um amor não correspondido pelo Dr. Astrov. Vânia olha para atrás com pesar por ter a chance de se casar com Helena e a deixa escapar, além de perder o seu tempo em função de um professor ingrato. O Dr Astrov passou a vida toda evitando o desmatamento, mas perde a guerra. Ele chama a sua vida de uma vida estúpida, sem gosto, sem sal. Sônia sobrevive focando na vida após a morte. Todos se sentem inquietos e estagnados. O que sobra são as queixas, as desilusões, e a repetição dos mesmos padrões.

Fico por aqui e indico com toda a convicção “Tio Vânia”, de Anton Tchekhov, que merece um lugar de HONRA na sua estante.


Data: 28 abril 2022 | Tags: Teatro


< Tartufo O Poder da Comunicação >
Tio Vânia
autor: Anton Tchékhov
editora: Autêntica
tradutor: Arildo Barros e Eduardo Moreira

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