Every time we say goodbye, Domingos…
02 dezembro 2019
Não posso terminar este ano de 2019 sem falar sobre Domingos Oliveira, um artista multifacetado, diretor de cinema, roteirista, autor de teatro, ator, poeta, colunista de jornal e, acima de tudo, uma personalidade inspiradora tanto por sua inteligência quanto por sua generosidade em compartilhar ideias, sua visão de mundo, conversas, holofotes e palcos. Fiquei pensando sobre a sorte que tive por conhecê-lo, cruzar com ele por alguns desses bastidores da vida, mas também sobre a falta que ele faz. Domingos partiu este ano.
“No meu tempo, o homem e a mulher iam para a cama e a terra tremia, e hoje eu reparo que se faz sexo, mas não há envolvimento, e está tudo normal”. Parodiando Baumann, o amor perdeu a concretude e ficou líquido. A vida e os filmes retratam isso. Mas Domingos Oliveira foi ao mesmo tempo protagonista e testemunha de uma época na qual o amor desfilava suas alegrias e flagelos em grande estilo – com arte e emoção – e não havia vida, nem nada além da vida que não fosse esse sentimento.
Lembro-me muito bem da primeira vez que eu o vi em cena, no teatro Cândido Mendes, em Ipanema. Eu tinha uns vinte e sete anos, década de 1980, com a cabeça fervilhando com mil ideias, vivendo intensamente o momento político do Brasil, e parei na montagem “O Inimigo do Povo”, uma peça de Ibsen.
Domingos gostava de trabalhar entre amigos e fazia do palco e de qualquer cenário sua casa. Sentado na plateia, eu estava tão envolvido com a peça e a forma como Domingos Oliveira e Priscila Rozembaum conduziam o texto junto aos outros atores que já me sentia parte da história. Em determinado momento, o personagem vivido por Domingos, Thomas Stockmann, olhou para a plateia, fixou o olhar na minha direção e perguntou: “Alguém tem algo a dizer, senhores?!”. Eu estava tão envolvido, tão dentro de tudo aquilo que por muito pouco, mas muito pouco mesmo, eu não reagi e gritei “Eu tenho muito a dizer!”. Nunca mais esqueci aquele olhar penetrante a me indagar. Certa vez, conversando com Carlos Gregório, ator de teatro e tv, , que também assistiu à peça, em outro momento, ele confessou ter tido a mesma reação. Não estava sozinho. Domingos arrebatava almas na plateia.
Anos depois, quando fiz parte do cenário musical da cidade, ele e Priscila, sua mulher, me ofereceram uma carona num final de festa em que estávamos. Na carona, conversa vai, conversa vem, eu revelei, em ato quase confesso: “Vocês dois quase me fizeram pagar o maior mico da minha vida, na peça ‘Inimigo do Povo’”. Expliquei o momento da cena em que o personagem dizia “Alguém tem algo a dizer?” e que por muito pouco eu não respondi. Priscila deu gargalhadas ao volante, e Domingos me respondeu com aquela elegância que sempre foi a sua marca: “Fez bem você não ter dito nada. Você iria me deixar numa situação embaraçosa”. E a carona prosseguiu em clima de final de noite. Cenas cariocas.
Tivemos outros encontros casuais; O Rio de Janeiro é uma cidade onde pessoas se cruzam entre esquinas, ruas e, por vezes, tudo e todos ficam muito próximos. Domingos sempre muito simpático e generoso.
E vou contar um momento meu com Domingos, lembrança esta que me fez parar tudo e escrever, antes que a memória apagasse.
Anos 1990, eu subia ao palco do Rio Jazz, uma casa de shows no Leme, com a banda da qual participava na época, como compositor e vocalista, “Inimigos do Rei”. O formato do show era enxuto, recebíamos público e amigos. E nos xperimentávamos durante o show levando nossas escolhas pessoais para o palco. No último dia, eu levei e cantei uma das músicas que considero mais lindas, “Everytime we say goodbye” (Todos os dias dizemos adeus), de Cole Porter. Para mim, um dos maiores compositores do mundo, dono de uma elegância musical ímpar. Bem, eu subi ao palco e interpretei com alma cada verso dessa linda canção. Recebi aplausos, me senti feliz. A temporada terminou naquela noite.
Semanas depois, lá fui eu ver Domingos, mais uma vez no palco, dessa vez dirigido por Aderbal Freire. Não lembro o nome da peça, me perdoem a falha. Ele mais uma vez magistral em cena. No final da noite, conversa de camarim, ele veio falar comigo: “Vi você cantando Cole Porter...”. Eu me surpreendi, não sabia que ele havia ido lá no Rio Jazz, e continuou: “É preciso ter alma para cantar aquela música como você cantou...”. Agradeci envaidecido, outras pessoas entraram na conversa e, como tudo, a vida seguiu seu fluxo.
Nossos encontros ocasionais, após esse “evento”, nunca mais foram os mesmos. Todas as vezes que nos encontrávamos, Domingos vinha em minha direção e cantarolava, em qualquer lugar que estivéssemos, “Everytime we say goodbye”, de Cole Porter... E assim celebrávamos a arte do encontro e da boa música. Domingos amava viver.
Sim, agora sou eu que canto para você, meu querido dramaturgo artista e poeta...
“Every time we say goodbye, we die a little, Domingos…”