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Boca de Ouro

Vamos falar de uma peça maravilhosa do maior dramaturgo brasileiro: Nelson Rodrigues. Os dias de hoje pedem mais do que nunca a leitura desse que, na minha opinião, é o Dostoievski brasileiro. “Boca de Ouro” é o livro de que falaremos hoje.

Não sei se é verdade, mas reza a lenda que o “Boca de Ouro”, de Nelson Rodrigues, foi inspirado em fatos reais. Era um chofer de um ônibus que tinha os 27 dentes de ouro. Segundo o motorista, tratava-se de ouro maciço. Mal sabia o motorista que ele viria a ser personagem de uma das peças mais enigmáticas do autor.

Os disfarces do personagem central “Boca de Ouro” sobre sua personalidade provocam efeitos variados no leitor a partir de cada versão grotesca que se faz sobre o personagem feita por dona Guiomar, conhecida como dona Guigui, sua ex-amante. A personalidade do “Boca de Ouro” é basicamente composta por suas lembranças. A peça tem três atos, e em cada ato ela retrata para o repórter Caveirinha uma personalidade diferente do bicheiro.

 

 A sua presença autônoma acontece apenas na primeira cena: no dentista, quando ele manda arrancar todos os dentes sadios para substituí-los por uma dentadura de ouro. Há nesse pedido por uma dentadura de ouro um simbolismo. Um projeto existencial de poder está presente nessa troca de dentes sadios por dentes de ouro. Uma potencialização do seu poder. Uma invulnerabilidade, uma agressividade e o medo que ele aspira a todos que tentarem cruzar o seu caminho. A boca de ouro é o equivalente a uma coroa de rei do pedaço, ou seja, o rei do subúrbio.

Sua boca de ouro é a referência para os olhos dos outros, daí as suas múltiplas versões que os outros lhe atribuem. A fantasia criada que intimida a todos que circundam a história, dando-lhe uma estatura mítica.

No início, Boca de Ouro é dado como morto. O jornalista Caveirinha é designado para entrevistar a ex-amante do bicheiro, Dona Guigui, para conseguir informações quentes sobre o bicheiro. A partir desse ponto, começam as versões conflitantes: uma tensão estabelecida entre o casal Leleco e Celeste e o lendário bicheiro.

Leleco pede dinheiro ao Boca de Ouro, e receberá o dinheiro com a seguinte condição:

“Leleco: - qual a condição?

Boca de Ouro: - Que tua mãe venha aqui, buscar o dinheiro!

Leleco: minha mulher?

Boca de Ouro: - não és casado?

Leleco: - sou

Boca de Ouro (sempre berrando) – Não tens uma mulher? Então manda a tua mulher aqui! Em pessoa! Quero tua mulher aqui! (pg 31)

Ao entrar na sala do Drácula de Madureira, no meio da discussão Leleco comete um erro vital, e fala que sabe que ele nasceu na pia de uma gafieira. Enraivecido, ele mata o rapaz.

No primeiro ato, Dona Guigui retrata o lado facínora e violento capaz de matar e beber o sangue de quem o desafiasse a lembrar as suas origens. Um homem arrogante e ousado que usa o dinheiro para humilhar as pessoas, um autêntico: Drácula de Madureira, segundo a imprensa marrom.

No segundo ato, Dona Guigui fica sabendo que Boca de Ouro foi assassinado pelo repórter. Seu comportamento muda, fica descompensada e contraditória, e afirma que disse uma série de mentiras, apenas de raiva por ter sido abandonada pelo bandido. Dona Guigui implora que o repórter não publique a entrevista e se empenha em negar a primeira versão.

“D. Guigui: morreu o meu amor! Morreu o meu amor! (pág. 44)

Daí as versões desencadeiam uma lembrança entre Boca de Ouro e um pai de Santo:   

Boca de Ouro (abrindo um sorriso maligno) – Preto, tu me conheces?

 Preto – Conheço, sim, senhor!

 Boca de Ouro – Como é meu nome, preto?

Preto – Vossa Senhoria é o ‘Boca de Ouro’, sim, senhor!

Boca de Ouro (ri) – E que mais? Preto – O povo também diz que ‘Boca de Ouro’ paga o caixão dos pobres! (pg 46)

No diálogo acima, vemos uma nova versão de Boca de Ouro, como uma espécie de amigo do povo, pai dos pobres, sendo inclusive definido por dona Guigui como o Robin Wood do subúrbio.

Neste segundo relato. Boca de Ouro é mais humano e até paternal, o casal Leleco e Celeste surge de maneira distinta. Se no primeiro Leleco era um rapaz frágil, nesse segundo relato ele é um gigolô, um pária, muito violento.

 “D. Guigui (para o Caveirinha com soluços): - Meu filho, vou te pedir, sim? Não me publica nada do que eu disse, te peço! (baixo) Te dou um dinheirinho por fora para uma cervejinha!” (pág. 45)

Seu atual marido, Agenor não vê com bons olhos toda essa revelação de dona Guigui sobre o criminoso frio e violento de Boca de Ouro, capaz de fazer as mais variadas maldades.  

 D.Guigui: Não fala do Boca de Ouro que eu te bebo o sangue. (pág. 45)

A mulher muda a versão perante o repórter, diz que uma comissão de grã-finas veio falar com Boca de Ouro sobre uma “Campanha Pró-filhos dos cancerosos. Nessa nova versão, as grã-finas se insinuam junto a ele rotulando-o como um tipo neorrealista, que De Sica ia adorar, e o jornal Luta Democrática chama-o de Drácula de Madureira”.

 “Primeira Grã-Fina: - o Boca não é meio neorrealista?

Segunda Grã-Fina: - É um tipo.

Terceira Grã-Fina: -   O De Sica ia adorar o “Boca”!

 Primeiro Grã-Fina: - Você é meio neorrealista! É, sim, “Boca”, pode crer que, é!”. (pg 58)

A presença das grã-finas ia correndo bem até que elas o questionam sobre a história de seu nascimento em uma pia de banheiro de gafieira.

“(Silêncio. “O Boca de Ouro” levanta-se. Recebeu um choque com a pergunta. Por um momento, seu riso é um rito de choro.)

Boca de Ouro: (para a primeira grã-fina) Madame, se a Senhora fosse homem, eu dava-lhe um tiro. (pg 60)

Ao dar murros no próprio peito, parece intentar desafiar o mundo. O ressentimento de Boca por ter sido humilhado naquilo que era o seu núcleo mais frágil irá resultar em um obstinado desejo de vingança. Ele vai incitar as grã-finas por meio da vaidade e da ambição pelo dinheiro.

O Boca de Ouro acaba promovendo um inusitado concurso no qual a vencedora, “dona dos peitinhos mais bonitos”, será premiada com um valioso colar de pérolas. A leviandade das grã-finas não recebe a menor complacência por parte do dramaturgo. Celeste quer disputar também o colar, ao que Boca retruca:

“Boca de Ouro: - A que tiver os peitinhos mais bonitos ganha esse colar!” (pág. 62)

Numa terceira e última versão, Dona Guigui conta que Leleco surpreende Celeste sendo beijada por um homem dentro de um táxi, e que esse homem era o Boca de Ouro, seu amante. Leleco, querendo vantagens financeiras, recorre cobrar do Boca de Ouro, que havia ganho no jogo do bicho ao jogar no milhar e na centena do número do táxi em que Celeste e ele estavam. No decorrer da discussão, Boca de Ouro derruba Leleco com uma coronhada e incita Celeste a matá-lo, o que ela faz enfiando-lhe várias vezes o punhal.

Boca de Ouro: (para celeste) - chega aqui!

(Celeste aproxima-se, lentamente, com um sentimento de medo)

Celeste: - Morto?

(Boca de Ouro empurra, com pé, o corpo de Leleco.)

Boca de Ouro: - Quase.

 Celeste: - E nem vai morrer?

Boca de Ouro: - Depende

Celeste: - Como depende?

Boca de Ouro: - De ti!

 Celeste (com medo): - Por que de mim?

 Boca de Ouro: (com uma doçura ignóbil e quase sem voz)

- Quero que tu digas: “Mata!” Aí eu mato! No mesmo instante!

Celeste: - E você me dá os seiscentos contos do milhar?

 Boca de Ouro (com um espanto divertido): - Diz outra vez.

 Celeste: - Quero o dinheiro pra mim! Você paga?

 Boca de Ouro: - Mato teu marido?

Celeste: - E você me dá os seiscentos contos?

(Boca de Ouro puxa Celeste por um braço)

 Boca de Ouro: - Vem cá! Tive uma ideia, uma big ideia! (ri pesadamente) Quero ser assassino contigo! Tu vais ser assassina comigo!

 Celeste: - Não!

 (Boca de Ouro dá-lhe o punhal.)

 Boca de Ouro: - Toma!

 Celeste: (apanhando o punhal) – Pra quê?

Boca de Ouro: - Vem! Anda, mete o punhal! ( pg 90, pg 91) 

 

Esse mito é uma criação da imprensa que até onde eu li está presente em algumas obras de Nelson Rodrigues, como “O Beijo no Asfalto”. Essa é que me vem à mente, mas existem outras que não vêm à memória. Boca de Ouro é rei, ele é o centro das atenções. É importante lembrar ao leitor que essa peça foi escrita em meados de 1959 e estreou em São Paulo em 1960. Nesse período no jornalismo ocorre um fenômeno que se chamava e ainda se chama (pois esse tipo de imprensa ainda não sumiu) sensacionalista. Nos dias de hoje, damos um nome em inglês para designar “fake news”. Existe diferença entre Sensacionalismo e Fake News? Quanto mais bizarra for a manchete, mais jornais são vendidos. Boca de Ouro é um produto dessa imprensa. Mitos são forjados na mesma noite em que são jogados ao mar do esquecimento.

“Secretário (no telefone) – Mataram o Boca de Ouro?

 Repórter- o bicheiro?

Secretário – Agorinha nesse instante!

Repórter- ou é boato?

 Secretário – O Duarte telefonou! Está LÁ O Duarte! Encontrado na sarjeta, com a cara enfiada no ralo!

Repórter- até que enfim que encestaram o “o “Boca de Ouro”!

Secretário -Encestaram! (aflito) Corre, voa! Toma um táxi! Secretário está empurrando o repórter.)

Repórter – Estou duro!

 Secretário – Vem cá. Espera. Primeiro tenho que saber a posição do jornal.

 Jornalista - mas ontem elogiamos o “Boca”!

Secretário – Sei lá! Sou macaco velho! Deixa eu falar com a besta do diretor!  A Estas hora está na casa da amante!” (pg13, pág. 14)

As três versões sobre o mesmo personagem (o bicheiro) expressam uma realidade a que todos nós estamos sujeitos. O Knorr dessa leitura a meu ver está nas mudanças de versões ao sabor do momento feitas por dona Guigui, o que dá margem a muitas interpretações. Boca de Ouro assassinou Leleco na segunda versão. Para preservar o casamento, dona Guigui monta uma nova história, e a história se torna uma obra aberta, onde a dúvida é o que prevalece.

Os personagens de “Boca de Ouro” estão chafurdados em suas paixões. Aliás, esse é o grande mote de suas peças. A morbidez dentro normalidade, essa a forma encontrada pelo autor de abrir as comportas do inconsciente que coexistem com a normalidade.

 A morte de Boca de Ouro (encontrado na sarjeta sem sua dentadura dourada) nos faz duvidar de que personagem estamos falando. Pelo menos a mim deu a impressão de ser um criminoso comum endeusado pela mídia. Ou quem sabe nos fala da ascensão e queda de um contraventor do subúrbio carioca, feitas pelas tradicionais instâncias de opinião pública, mostrando como são construídos e supervalorizados os fatos e como é falsa a neutralidade desses órgãos.

Fico por aqui. Indico “Boca de Ouro”, de Nelson Rodrigues, como um livro que merece um lugar de honra na sua estante.


Data: 03 novembro 2021 | Tags: Teatro


< A vida invisível de Eurídice Gusmão Após o anoitecer >
Boca de Ouro
autor: Nelson Rodrigues
editora: Nova Fronteira

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