Poética
A tragédia, segundo Aristóteles, é uma imitação de uma ação séria e completa, dotada de extensão, em linguagem condimentada para cada uma das partes (imitação que se efetua) por meio de atores e que opera, graças ao terror e à piedade, a purificação de tais emoções. Para o autor, a tragédia é a imitação de realidades dolorosas, e sua matéria-prima é o mito, em sua forma bruta.
A Poética de Aristóteles é o palco em que todos seus pensamentos foram encenados. É oportuno dizer que a teoria ocidental do drama ainda mantém fortes laços com as suas reflexões sobre a poética e ainda continuam oportunas e válidas até os dias de hoje.
A tragédia grega nasceu do culto de Dionísio. Existem muitas lendas sobre o nascimento de Dionísio. A principal é que Dionísio nasceu em Tebas. Ele era filho de Zeus com uma mortal chamada Sêmele, filha de Kadmos (rei de Tebas). Heras, esposa de Zeus, era muito ciumenta por causa do caso entre seu marido e Sêmele. Ela convenceu Sêmele a implorar a Zeus que aparecesse à sua frente com todo o seu poder. Zeus, disposto a agradar a amante, apareceu na frente dela acompanhado por trovões. A casa de Sêmele pegou fogo e ela morreu. Antes da morte dela, Zeus recolheu do ventre da amante o fruto inacabado de seu amor e colocou-o em sua coxa até que completasse a gestação normal.
Quando nasceu a criança, Zeus confiou-a às Ninfas e aos Sátiros do monte Nisa. E numa gruta, cercada de frondosa vegetação, vivia feliz o filho de Sêmele com Zeus. Certa vez, Dionísio colheu cachos de uvas, espremeu as frutas em taças de ouro e bebeu com as Ninfas e Sátiros, que, embriagados juntamente com Dionísio, dançavam do delírio báquico (deus Baco) e caíram por terra desfalecidos.
Os devotos de Dionísio, após a dança vertiginosa, acreditavam sair de si pelo processo do êxtase. Esse sair de si era superar a condição humana, implicava um mergulho em Dionísio, pelo processo do entusiasmo. O homem simples e mortal antropos, em êxtase e entusiasmo, comungando com a imortalidade, tornava-se herói, ou seja, um varão que ultrapassou o metron, que significa transpor a linha invisível que separa o humano do divino.
Podemos dizer que a tragédia só se realiza quando o metron é ultrapassado. É o momento em que o ator se transforma em outro. Um exemplo disso eram as mênades, sacerdotisas do deus, as bacantes, as “possessas”, também chamadas de “furiosas” ou “impetuosas”, que chegavam ao delírio possuídas pelo deus Dionísio.
Os personagens que sofriam de húbris, que é um tema comum na mitologia e nas tragédias gregas, sofriam as consequências da sua transgressão, eram castigados pelos deuses. A tragédia ocorre com a ultrapassagem do metron pelo homem, e isso origina a nêmesis, o ciúme divino, provocando a cegueira da razão do herói. Será subjugado sem apelo pela moira, ou seja, pela loucura.
Feita essa breve introdução, vamos falar do livro Poética, de Aristóteles. Esse livro me foi indicado por uma roteirista muito competente e estudiosa chamada Valéria Mota, já que eu ando interessado pelo assunto. Minha eterna gratidão por essa indicação.
Se eu pudesse fazer uma pequena analogia (bem absurda, por sinal), eu diria que a Poética, de Aristóteles, é um curso de poética para as tragédias gregas, na Grécia antiga. Algo muito semelhante com os cursos de roteiros ministrados por professores como Robert McKee, entre outros, guardadas, (mais uma vez) as devidas proporções. Podemos dizer que a Poética de Aristóteles deve ser compreendida como uma discussão “sobre o modo de composição do poema”.
A Poética de Aristóteles procura abordar os diferentes tipos de poesia, a estrutura de um bom poema e a divisão de um poema em suas partes componentes. O autor define a poesia como um "meio de imitação" que procura representar ou duplicar a vida por meio de caráter, emoção ou ação. Aristóteles define poesia de maneira muito ampla, incluindo poesia épica, tragédia, comédia, poesia ditirâmbica e até alguns tipos de música.
Um dos conceitos recorrentes do livro e o mais antigo da estética ocidental é a mimese. A mimese, em todas as fases de sua evolução, tem sido uma variável mais complexa e um conceito mais complexo que sua tradução convencional de “imitação” pode transmitir. Esse conceito não é de forma alguma um conceito estático de representação artística. A mimese gerou muitos modelos diferentes da arte, abrangendo um espectro de posições, do realismo ao idealismo.
Sob a influência dos paradigmas platônicos e aristotélicos, a mimese tem sido um ponto crucial de debate entre os defensores de teoria da representação “refletindo o mundo” e “simulando o mundo” nas artes visuais e musicais e poéticas.
Aristóteles nunca faz uma análise explícita do termo "imitação". Ele tirou o termo de Platão, que acreditava que a arte era a cópia da cópia, duas vezes removida da verdade. A concepção de imitação de Aristóteles é um corretivo para Platão. A arte imita o mundo da mente do homem. A arte não é mera imitação. É uma recriação. "A poesia é algo mais filosófico e de importância mais grave do que a história, pois suas afirmações são da natureza e não universais, enquanto as da história são singulares".
Aristóteles afirmava que a mimese é feita principalmente como uma maneira de aprender e de adquirir o conhecimento e as habilidades necessárias. E aprendemos de acordo com nossa estatura individual: "homens de caráter mais venerável imitavam ações bonitas e as ações de tais homens; os homens mais ignóbeis imitavam as ações de personagens depravados". Essa força motriz da imitação é poderosa, uma vez que o aprendizado "não é apenas muito agradável para os filósofos, mas da mesma maneira para outras pessoas, embora participem dela, mas em pequeno grau".
A forma de poesia à qual Aristóteles dedica mais atenção na Poética é a tragédia, mas o que ele tem a dizer sobre essa forma foi, durante séculos, o paradigma de todas as formas de narrativa. A tragédia, segundo Aristóteles, veio dos esforços dos poetas para apresentar os homens de maneira “mais nobre” ou “melhor” do que na vida real. A comédia, por outro lado, mostra um “tipo inferior” de pessoa e revela que os humanos são piores que a média. A poesia épica, por outro lado, imita homens nobres como a tragédia, mas só tem um tipo de mediador – ao contrário da tragédia, que pode ter vários – e é narrativa.
Existem algumas diferenças entre a tragédia e o épico, no entanto. Um poema épico não usa música ou espetáculo para alcançar seu efeito catártico. Os épicos geralmente podem ser apresentados em uma sessão, enquanto as tragédias costuma usar outras formas de mediadores para alcançar os ritmos da fala de diferentes personagens.
Existem seis elementos na tragédia: o enredo é “a alma” da tragédia, porque a ação é fundamental para o significado de um drama, e todos os outros elementos são subsidiários. Uma plotagem deve ter começo, meio e um fim; também deve ser universal em significado, ter uma estrutura determinada e manter uma unidade de tema e propósito. Em outras palavras, para se criar uma boa tragédia, é preciso que se mantenha a unidade da trama. E isso significa uma sequência bem organizada de eventos necessários ou prováveis. O começo não deve seguir os eventos anteriores, e o fim deve amarrar todas as pontas soltas e não produzir as consequências necessárias ou prováveis.
Outro ponto ao qual Aristóteles dá uma grande importância é a trama. A trama é a alma da tragédia, e o personagem vem em segundo plano. Completando sua classificação: pensamento significa o que um personagem diz em uma determinada circunstância, seguido por dicção musical própria para o espetáculo. Os elementos da trama incluem completude, magnitude, unidade, estrutura determinada e universalidade.
“Completude” refere-se à necessidade de uma tragédia de ter começo, meio e fim. Um começo é definido como uma origem pela qual algo naturalmente acontece. "Magnitude" refere-se simplesmente ao comprimento (duração) – a tragédia deve ter um "comprimento (duração) que possa ser facilmente abraçado pela memória". “Unidade” refere-se à centralização de toda a ação da trama em torno de um tema ou ideia comum. “Estrutura determinada” refere-se ao enredo e à sequência de eventos causais e imitativos. Universalidade refere-se à necessidade de um personagem de agir de acordo com a forma como os seres humanos agiriam ou reagiriam em determinada situação.
O herói trágico, na visão de Aristóteles do drama, não é um homem eminentemente "bom" nem ruim. Ele deve ser um modelo de virtude que é derrubado pela adversidade, cuja origem está na sua própria “fragilidade” ou falha, que está evidente desde o início de uma peça, que o público deve ser capaz de se identificar. A desgraça é provocada por um erro de julgamento. Édipo é o seu exemplo de herói que sofre essa reversão e, portanto, tem um autorreconhecimento catártico.
“Reviravolta, conforme dissemos, é a modificação que determina a inversão das ações, e esta deve se dar, retomando a nossa fórmula, segundo o verossímil ou necessário como ocorre em Édipo: o mensageiro chega pensando que vai reconfortar Édipo e libertá-lo do pavor que sente em face de sua mãe, mas à medida que revela quem de fato era Édipo, produz, justamente, o inverso...” (pg 105)
Aristóteles considera a catarse uma forma de redenção. Embora o reconhecimento de Édipo seja trágico, ele ainda o redime: ele não está mais vivendo na ignorância de sua tragédia, mas em vez disso aceitou o destino. E a redenção não é o único resultado da catarse; o público também passa por uma espécie de catarse em um bom drama. A catarse do herói induz piedade e medo na plateia: piedade pelo herói e medo de que seu destino possa nos acontecer.
Aristóteles observa na tragédia dois momentos importantes. Em primeiro lugar, a ação crescente, que leva ao clímax, conhecida como complicação. Em segundo lugar, o desenlace ou o desenrolar que segue o clímax. Esse movimento duplo segue a teoria da unidade poética. A complicação leva à revelação da unidade no cerne da obra. Após essa revelação, tudo se encaminha para o desenlace, em que o significado e as ramificações da unidade são explorados e resolvidos.
Uma epopeia deve lidar com um único evento. A ação deve ser única, completa, ou seja, com começo, meio e fim. Como a tragédia, a epopeia também pode ser dividida em dois grupos: simples e complexo. O épico simples se volta para o caráter moral do herói, enquanto o épico complexo se volta para o sofrimento e a paixão. O hexâmetro heroico (é uma forma de medida poética literária consistindo de seis pés métricos por verso, em que os quatro primeiros pés podem ser dátilos ou espondeus; e onde o quinto pé será dátilo, e o sexto, espondeu − como na Ilíada) é o medidor certo para um épico. Um poeta épico deve falar o mínimo possível em sua própria pessoa. Em uma epopeia, o elemento do maravilhoso deve ser introduzido. As possibilidades prováveis devem ser preferidas às possibilidades improváveis.
Sobre a crítica, Aristóteles diz que o poeta deve visar à representação da vida: e existem formas de representação – como são, ou como se diz que são ou parecem ser, ou como deveriam ser. Na poesia, improbabilidades podem ser justificadas desde que a arte atinja seu verdadeiro fim. Também podem ser justificadas pelo fato de que os poetas idealizam a realidade. Eles também podem ser poeticamente verdadeiros, embora não sejam verdadeiros.
Na última seção da Poética, Aristóteles discute os méritos relativos da Epopeia e da Tragédia. A Epopeia é livre da vulgaridade e do agir; enquanto na tragédia, a vulgaridade é culpa dos atores. Aristóteles insiste que a tragédia é a melhor forma de arte, pois tem todos os elementos da epopeia. Além disso, também possui música e espetáculo. Seu efeito é mais compacto e concentrado, e também tem mais unidade que o poema épico. Por isso ele conclui que a tragédia é a melhor forma de arte.
A Poética, de Aristóteles, é um livro essencial para todos aqueles que, assim como eu, querem se aventurar em contar uma boa história. Por isso recomendo a Poética como um livro que merece um lugar de honra na sua estante.