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A vida invisível de Eurídice Gusmão

 Resenha: A Vida invisível de Eurídice Gusmão

Estou saindo direto das páginas do livro “A Vida Invisível de Eurídice Gusmão”, da escritora Martha Batalha, para o toctoctoctoc do teclado do meu computador. Eu poderia dizer que foi uma leitura fascinante. A escritora Martha Batalha domina o ofício da escrita como ninguém e é dona de um estilo único. Mais do que isso, sua escrita é musical, dando-nos aquela sensação de quase vertigem.

“A música deve ser administrada na dose certa, pois uma vida sem melodias carece de sentido, e uma vida com muitas melodias pode resvalar em excessos. Artistas são pessoas de vida irregular e moral ambígua, artistas são os outros.” (pág. 64)

O livro virou filme, mas eu ainda não assisti. Melhor assim. Posso assistir ao filme agora com mais tranquilidade, já que terminei o livro. Para que vocês tenham uma ideia, esse romance já foi vendido para várias editoras estrangeiras. Ele já chegou ao Brasil com o selo de qualidade internacional.

A obra de Martha Batalha, publicada em 2016, conta a história de Eurídice Gusmão e de sua irmã, Guida Gusmão. Essas duas irmãs optam por caminhos diferentes, alguns por más escolhas (Guida), outros pela falta de controle sobre a própria vida (Eurídice). Somos vítimas de nossas escolhas tanto para o bem quanto para o mal. Vamos falar delas mais adiante. Mas uma outra coisa que me chamou a atenção é que os personagens secundários na sua grande maioria são mulheres.

A narradora da história faz questão de deixar claro que as histórias de outras mulheres bacanas não serão contadas, como é o caso da empregada de Eurídice:

“Mas esta não é a história de Maria das Dores. Maria das Dores inclusive só aparece por aqui de vez em quando, na hora de lavar uma louça ou fazer uma cama. Esta é a história de Eurídice Gusmão, a mulher que poderia ter sido” (Batalha, 2016, p. 38).

Uma forma para tentar encontrar sua visibilidade é mostrá-las. Em sua grande maioria, os chamados personagens periféricos são também mulheres:

“E aqui o leitor se pergunta: será que todas as mulheres nessa história são tristes e amargas? De jeito nenhum. Algumas conhecidas de Eurídice tiveram sorte. Isaltina gostava de bordar e tinha o privilégio de rir com dentes perfeitos, o que ela fazia com bastante constância, porque tinha um marido com quem gostava de conversar e que era capaz de pagar a conta do dentista. Margarida era viúva e muito feliz, porque Deus lhe tomou o marido, mas deixou-lhe a pensão, e que alívio que não foi o contrário. Celina não se casou, mas teve boa herança. Também tinha um amigo que via às quartas e sextas feiras” (pág. 47)

 

Pessoalmente o livro fala de um bairro que vivi parcialmente ao longo da minha infância e do início da minha juventude, a Tijuca. Passava as férias na Tijuca, na casa de minha avó. Reconheci no livro vários personagens, como, por exemplo, dona Zélia, que destila na vida alheia suas frustrações.

“Zélia a vizinha da casa ao lado. Zélia era uma mulher de muitas frustrações. A maior delas era não ser Espírito Santo para tudo ver e tudo saber. Zélia estava na verdade mais para o Lobo Mau do que para o Espírito Santo, porque tinha olhos grandes para ver melhor, uma boca muito grande, que distribuía entre seus vizinhos as principais notícias do bairro...”. (pág. 15)

Quando acabei de ler o livro que fala sobre o sentimento de invisibilidade de Eurídice Gusmão, a primeira coisa que me veio à cabeça foi a invisibilidade nos dias de hoje, quando, em reuniões, as pessoas ficam obcecadas por seus smartphones. A revolução digital isolou a maioria de nós em nossos próprios mundos.

Basta entrar em um metrô, por exemplo, e vocês irão ver todos obcecados entretidos em seus smartphones. Essa invisibilidade acontece em reuniões em volta da mesa onde quase sempre vemos (principalmente os jovens e algumas vezes os adultos também)) muitas vezes rindo de uma piada no WhatsApp ou vendo o TikTok, ou mesmo o Facebook, ou o Instagram para ver quantas curtidas recebeu em uma postagem.

Hoje, por incrível que pareça, com o advento das mídias sociais, todos se mostram com opiniões, fotos, frases de efeito e seguidores. E, claro, há vigilância sobre os seus passos, graças aos rastros digitais deixados. Ser invisível nos dias de hoje talvez tenha alguma serventia, mas isso é outro papo, outro assunto.

A invisibilidade de que nós falaremos aqui é outra. É uma invisibilidade mais antiga, ambientada no Rio no início do século XX, e narrada em terceira pessoa, como Martha Batalha antes de começar o livro faz questão em dizer:

“Mas o mais real deste livro está na vida das duas protagonistas, Eurídice e Guida. Elas ainda podem ser vistas por aí. Aparecem nas festas de natal, onde passam a maior parte do tempo sentados, com guardanapinhos nas mãos. São as primeiras a chegar e as primeiras e as primeiras a ir embora. Comentam sobre temperos do bolinho de bacalhau, sobre os calores ou a chuva do dia, sobre o vinho que tomam, mas não muito, não muito. Perguntam se o marido está bem, se a sobrinha-neta já tem namorado, se o sobrinho-neto está encaminhado. Algumas precisam de ajuda para sair do sofá e se sentar na mesa do jantar. Muitas já perderam o apetite, e encaram com desinteresse as fatias de peru. Outros se animam na hora da sobremesa, porque as rabanadas são sempre bem-vindas. Voltam quietinhas para o sofá e olham os jovens abrindo os presentes, com um jeito de quem só conseguem ver o passado.

Eurídice e Guida foram baseados na vida das minhas, e das suas avós.” (pág. 8))

“A Vida Invisível de Eurídice Gusmão” é um pequeno mostruário de todas as mulheres que são invisíveis, que, para manter um lar, foram obrigadas a esconder seus sentimentos verdadeiros para manter o equilíbrio emocional dentro de uma família. Para isso a necessidade de se reinventar é uma estratégia fundamental para romper com as barreiras da opressão.

A protagonista da história é Eurídice Gusmão, filha de imigrantes portugueses, casada com Antenor Campelo, que a chamou de vagabunda por não ter sangrado na primeira relação nupcial. Tiveram dois filhos: Cecília e Afonso. Antenor, um homem de hábitos e rotinas, se enroscava com a mulher com o objetivo de um sexo também rotineiro. Eurídice não queria saber de mais filhos, por isso resolveu ter indisposições também rotineiras cada vez que Antenor a procurava.

Mas, após a relação na noite de núpcias, as coisas se acalmaram e Antenor chegou à conclusão de que não devia se separar por causa disso. Graças à sua capacidade de se tornar invisível, Eurídice aceitou o golpe. Afinal, admitia que era casada com um homem bom, que colocava dinheiro em casa e não levantava a mão para ela, e mantinha uma boa relação com as crianças.

Não tinha uma autoestima muito desenvolvida. Vamos ser claros, ela não se sentia com valor.

“Ninguém vale muito quando diz ao moço do censo que no campo profissão ele deve escrever as palavras “Do lar”. (pág. 11)

O peso de Eurídice começou a se estabilizar com a rotina familiar, quando seu marido Antenor ia para o trabalho, e os filhos começaram a ir para escola, Eurídice ficava em casa moendo carne e remoendo pensamentos aleatórios que faziam parte de sua vida infeliz.

“Porque Eurídice, vejam vocês, era uma mulher brilhante. Se lhe dessem cálculos elaborados ela projetaria pontes. Se lhe dessem laboratórios ela inventaria vacinas. Se lhe dessem páginas em branco ela escreveria clássicos. Mas o que lhe deram foram cuecas sujas, que Eurídice lavou muito rápido e muito bem, sentando-se em seguida no sofá, olhando as unhas e pensando no que deveria pensar. (pg 12)

Não pensar era a única alternativa para sua vida, mesmo que para isso ela se mantivesse sempre ocupada todas as horas e os dias. Sabia que nunca seria engenheira, nem cientista, nem ousaria escrever versos, mas pelo menos poderia abrir um livro de receitas. Mas mesmo assim suas proezas culinárias não faziam sucessos com seus filhos. Eles viviam a fase do macarrão, quem nunca?

Antenor consegue domar o ímpeto de Eurídice e faz com que ela desista  de  fazer seu livro de receita, mas a multifacetada Eurídice  decide aprender a costurar e, depois de muita insistência, consegue convencer o marido a lhe comprar uma máquina de costura. Ela costura para os de casa e para a vizinhança. Sua fama de costureira passa a ganhar o Rio de janeiro e o dinheiro começa a entrar na conta.

Mas Antenor proíbe Eurídice de continuar costurando para fora, mesmo que o dinheiro ajude no pagamento das contas da casa. Mas o marido não admitia isso, considerava-se o provedor da família. Apesar da renda extra gerada. O machismo de Antenor a impedia de alçar voos mais altos. No fundo, se sentia ameaçado. Hoje vivemos em uma sociedade em que é impossível um trabalhador viver apenas com a sua própria renda, a mulher precisa trabalhar.

Na época o objetivo dessa negação ao trabalho feminino era manter as regras implícitas que a sociedade imprimia. E para isso os chefes de família eram os provedores da família.

Entre várias tentativas a que se submeteu, tentou se enquadrar na obviedade da sociedade tijucana da época, como uma mulher multifacetada que era. De tanto olhar a estante de sua casa, descobre um universo onde Tolstoi, Flaubert, Shakespeare, entre outros, estavam disponíveis no escritório de seu marido. Bem, era hora de se apossar dele, com direito a uma máquina de escrever. E os tectectec da máquina tornou-se o seu ritmo preferido.

Guida, irmã de Eurídice, se apaixonou por um estudante de medicina chamado Marcos, que vinha de família riquíssima. Fugiu de casa. O pai nunca a perdoou. A família de Marcos não queria o casamento. Por outro lado, Marcos era um estudante de medicina que passou colando e não sabia bulhufas sobre a profissão de médico. Seu único remédio para todos os seus pacientes era a penicilina. Era um homem fraco. Seu fracasso profissional o levou a perder pacientes e resolveu fugir de sua mulher, deixando-a com um filho na barriga.

Rejeitada pelo pai quando voltou para casa, acabou se mudando para o Estácio, onde conseguiu um emprego como caixa de um mercadinho, onde conheceu Filomena, uma prostituta aposentada que cuidava de crianças do bairro em uma creche que mantinha em casa. Seu patrão sempre a tratou com o respeito. Guida e Filomena tornaram-se, vamos dizer, sócias. Ela ajudava a organizar a vida de Filomena.

Após a falecimento de Filomena, Guida teve que lidar com o filho doente, falta de dinheiro, passou a trabalhar em um armarinho da senhora Amira, que a humilhava diariamente. Sem dinheiro, teve que aguentar tudo em silêncio. Isso sem contar com o farmacêutico que cobrava por favores sexuais como pagamento pelos medicamentos caros necessários à sobrevivência de seu filho. Fico por aqui.

Apesar de ler esse livro após quase cinco anos após o seu lançamento, eu me sinto com a alma lavada. Foi um dos grandes livros que eu li neste ano de 2021. Bem, agora vamos ver o filme. Uma coisa quero dizer para vocês: “A Vida Invisível de Eurídice Gusmão”, de Martha Batalha, é um romance que merece um lugar de HONRA na sua estante.


Data: 28 outubro 2021 | Tags: Romance


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A vida invisível de Eurídice Gusmão
autor: Martha Batalha
editora: Companhia das Letras

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