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O Primeiro Homem

“O Primeiro Homem”, de Albert Camus, foi descoberto, reza a lenda, nos destroços do carro em que Camus foi morto em um acidente, em 1960. A razão pela qual não foi publicado na época deveu-se ao fato de estar incompleto. Um outro motivo é que todos temiam a ira da esquerda, na época totalmente a favor da independência da Argélia, caso fosse publicado, como a ira da direita contra a independência da Argélia. A posição da esquerda era de apoio ao terrorismo; e da direita, de apoio ao contraterrorismo. Mas Camus, que nasceu na Argélia, opôs-se ao extremismo e à violência de ambos os lados. Ele sonhava como uma Argélia multicultural e preferiu permanecer em silêncio sobre as questões que ele sentia distorcidas pela ideologia. Embora Camus tivesse ganhado o Prêmio Nobel de Literatura pouco antes, a intelectualidade francesa não acreditou em sua voz de moderação.

Camus, como vocês poderão ver nessa história, através das opiniões de Jacques Cormery (alter ego dele), era um francês criado na Argélia, um pied noire, pobre sem raízes que adotou essa terra devido à sua família. Este é um romance áspero e incompleto, mas excelente, que nos mostra um profundo apego do autor à Argélia de sua infância e adolescência, onde estão suas raízes e seus laços mais significativos. Revela um Camus que nunca se sentiu em casa na França. O simples pensamento em Paris lhe dava uma sensação de aprisionamento.

Vamos à história?

O título “O Primeiro Homem” sugere a busca de uma identidade ligada à busca do pai desaparecido. Quando Jacquesvisita o túmulo de seu pai no cemitério militar na Bretanha, ele observa o fato de que, aos 40 anos de idade, ele era mais velho do que seu pai quando este foi fatalmente ferido na cabeça por estilhaços aos vinte nove anos de idade. Sem pai, percebe que ele também não tinha pátria. Henri Cormery (seu pai) quase não viveu a vida. Jacques Cormery, agora mais velho, viaja para a Argélia, de volta ao bairro pobre onde ele cresceu, na capital da Argélia, Argel, e onde Lucie, sua mãe, ainda vivia.

Uma vez que ele está de volta ao bairro, ele tem longas sessões de flashbacks sobre sua infância. Na verdade, a maior parte do romance é sobre a infância de Jacques Cormery. Em meio às lembranças da infância, Jacques tenta obter informações sobre Lucie e sobre Henri (seu pai). Mas Lucie (sua mãe) não se lembrava de nada, e os outros não tinham respostas.

Jacques Cormery cresceu em uma família completamente analfabeta em estado de extrema pobreza, sem eletricidade ou água corrente, Jacques não sente pena de si mesmo. Ele encontra grande prazer em jogar futebol, nadar na praia ou ir à caça com seu tio surdo. Quando Jacquesentra na escola, sua vida muda drasticamente ao encontrar uma figura paterna num professor que reconhece os sinais de alta inteligência e talento nele. Este professor nomeia Jacques para receber uma bolsa de estudos para frequentar a escola secundária e se oferece para ser o tutor dele para ajudá-lo a passar no exame de admissão. Isso fornece um dos principais temas do romance, ou seja, que a educação pode transformar vidas.

Jacques é inteligente e seu professor reconhece isso. Ele passa num exame especial para entrar no Lycée, uma escola secundária avançada no centro de Argel, onde aprende a conviver com colegas que têm mais dinheiro do que sua família. Ele se torna um jovem sensível, que observa as pessoas e lugares ao seu redor, e a situação das relações árabe-europeias. Ele também é selvagem e se mete em problemas na escola.

No meio de suas memórias de infância, um adulto Jacques conforta Lucie quando explodem bombas terroristas na rua. Ele também vai visitar Solferino, a aldeia onde nasceu. No entanto, ninguém sabe de sua família; em particular, seu pai. Ninguém pode ajudá-lo em sua busca por Henri Cormery.

À medida que vai se destacando como estudante, a necessidade de Jacques Cormery de ir cursar a universidade vai sendo amadurecida. Ele deixa a pobreza e vai morar na França, onde sua atuação como filósofo e escritor alcança notoriedade internacional. Ele percebe todas as experiências de sua vida, tanto as boas como as ruins, incluindo o fato de ser órfão de pai, que acabou moldando-o como pessoa. Ele é o primeiro homem.

Sua solidariedade com a Argélia de sua juventude é outro lado de seu profundo apego à sua mãe analfabeta e surda, a quem ele amava com um amor sem palavras. Ele continuou a apreciar emocionantes lembranças da vida de pobreza que ele compartilhava com ela, um irmão, um tio inarticulado e uma avó espanhola severa em um dos bairros deserdados de Argel. Apesar de sua eventual celebridade e do conforto material que ele desfrutava, Camus nunca se afastou emocionalmente do que ele descreve como o mundo quente e inocente dos pobres.

“A memória dos pobres já é por natureza menos alimentada que dos ricos, tem menos pontos de referência no espaço, considerando que eles raramente saem do lugar onde vivem, e tem também menos pontos de referência no tempo de uma vida uniforme e sem cor. É claro que existe a memória do coração, que dizem ser a mais segura, mas o coração se desgasta com as dificuldades e o trabalho, esquece mais depressa sob o peso do cansaço. Só os ricos podem reencontrar o tempo perdido. Para os pobres, o tempo marca apenas os vagos vestígios do caminho da morte. E, além disso, para poder suportar não convém lembrar muito, é preciso ficar muito perto de cada dia, de cada hora, como fazia sua mãe, já que essa doença que tivera quando moça ( segundo a avó, fora de fato uma febre tifoide. Mas uma febre tifoide não deixa tais sequelas. Talvez tifo. Ou o quê? Aí, também, tudo eram trevas), já que a doença da mocidade a deixara surda e com dificuldade para falar, depois a impedira de aprender o que se ensina até os menos afortunados, e portanto a forçara a resignação muda, mas fora também a única maneira que ela encontrara de enfrentar a vida, e o que mais podia fazer, quem no seu lugar teria feito outra coisa? Ele gostaria que ela se entusiasmasse para lhe descrever um homem morto quarenta anos atrás e cuja vida ela compartilhara (teria realmente compartilhado?) durante cinco anos. Ela não podia, e ele nem mesmo tinha certeza de que ela tivesse amado apaixonadamente esse homem, e de qualquer modo ele não podia perguntar-lhe, diante dela também ficava mudo e doente à sua maneira, no fundo nem queria saber o que houvera entre eles, e era preciso, e era preciso desistir de descobrir qualquer coisa por seu intermédio.” (Pg 71, 72)

A voz de Camus em “O Primeiro Homem” é pessoal, e revela um senso de decência que impressiona, recusa-se a tornar-se cúmplice dos acontecimentos, o que não significa que ele fosse alheio, indiferente às realidades da história. Mas tem a plena consciência de que as fricções das placas tetônicas da história podem se tornar algo opressor, uma arma que pode ser disparada pelos ideólogos desse mundo. Nem herói e nem santo, proclama que não há vergonha na felicidade, que um mundo sem amor é um mundo morto. “O Primeiro Homem”, de Camus, é um livro que merece um lugar de honra na estante.


Data: 10 abril 2017 | Tags: Romance


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O Primeiro Homem
autor: Albert Camus
editora: Nova Fronteira

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