A Relíquia
“A Relíquia”, de Eça de Queirós, chegou ao leitor brasileiro em 1887 como folhetim publicado pelo periódico Gazeta de Notícias, que circulava no Rio de Janeiro no período de 1875 a 1942.
A história carrega todas as características do Realismo de um Eça de Queirós severo e sarcástico. Satiriza a Igreja e revela a hipocrisia que acontece nas relações pessoais e espirituais de sua época.
A Lisboa da época recebia profundas influências francesas, e a síndrome de país periférico, que passava ao lado das grandes nações, figura no romance de Eça como um retrato do século XIX. A obra foi escrita em 1887, trazendo a crítica do autor à sociedade portuguesa. É rica em detalhes, os quais promovem o estilo realista, por descrever paisagens, personagens.
Eça utiliza a figura de personagem narrador da história, Teodorico Raposo, e em especial seus pensamentos e ações para compreendermos sua índole íntima, que mostram a máscara social usada pela sociedade da época, através dos comportamentos.
“A Relíquia” possui fortes características da escola literária à qual pertence, como críticas e tom sarcástico em relação à sociedade da época, permeada por valores católicos.
Eça de Queirós busca associar o atraso de Portugal à religião. Seu ceticismo em relação à religiosidade, através do protagonista Teodorico Raposo, que se finge de religioso, era o retrato dessa decadência. Era assim que Eça enxergava a religião em si mesma.
Teodorico é, na realidade, um personagem voluptuoso, que sonha em viajar para Paris, cidade que simboliza a vida de riquezas, belezas e luxúria que ele almeja, além de representar a revolução, tão odiada pelos conservadores católicos portugueses.
Seus monólogos interiores promovem uma visualização e uma compreensão dos sentidos, sentimentos e intenções do personagem e do autor e a utilização da sátira que expõe fatos que contrapõem a realidade. As narrativas são descritas minuciosamente. É nessas minúcias que os demônios se escondem.
O protagonista da obra é Teodoro Raposo, um menino que nasceu na Sexta Feira da Paixão e que perdeu sua mãe no dia seguinte. Sete anos depois, seu pai veio a falecer, deixando-o órfão. No entanto, acaba sendo adotado por uma tia por parte de mãe, Dona Maria do Patrocínio, também chamada de Dona Patrocínio das Neves, e, com mais frequência, de Titi, uma mulher extremamente religiosa e muito rica, sempre envolvida com os ritos religiosos. Uma caricatura das devotas católicas da época. Descrita pelo seu sobrinho como uma mulher hedionda, extremamente mesquinha, que condenava todas as formas de amor.
A trama se desenvolve a partir de duas personalidades opostas: a poderosa Dona Maria do Patrocínio, caricatura de uma beata, e, por outro lado, seu sobrinho Teodorico Raposo, conhecido como Raposão.
Uma beata que sempre repudiou as relações sexuais. Sua personalidade era de uma mulher extremamente severa. Quando Teodorico completou nove anos, o enviou para um internato e o via poucas vezes ao mês. O tempo foi passando até que Teodorico saiu do colégio interno em direção à Universidade de Coimbra para estudar Direito e continuar seus estudos. Lá, ele vivia numa mistura perfeita de bebidas e mulheres. Envolvia-se com prostitutas, mulheres casadas, e tinha vários casos amorosos ao mesmo tempo. Vivia em um ambiente devasso. Resumindo, podemos dizer que a história divide-se em duas personalidades: de um lado, o moralismo beato e, do outro, a devassidão.
Só que, numa dessas aventuras amorosas, Teodorico conheceu Adélia e se torna seu amante. Por ironia do destino, ela acaba desprezando-o. O motivo? Teodorico, para obedecer à sua tia, precisava chegar em casa na hora estipulada por ela. Desobedecê-la criaria problemas para o seu plano do herdeiro. Adele o trai e acaba sendo amante do Padre Negrão. Traduzindo em miúdos, Teodorico provou do próprio veneno – a traição.
Refletindo sobre o seu futuro, que envolvia um grande rival chamado Jesus Cristo, concluiu que, se insistisse em reconquistá-la, poderia perder a herança. Com medo de que a senhora morresse e deixasse os bens para a Igreja, Raposão dava o seu melhor para convencer a tia de que ele era, afinal, um bom homem. A partir desse momento começou a frequentar mais as missas e a vida religiosa. Com isso, Adélia pouco a pouco foi saindo de seus pensamentos.
Voltou para Coimbra, conseguiu se formar como doutor (advogado) e acabou ganhando de presente um cavalo, roupas novas e uma mesada. Raposão tenta convencer a sua tia a enviá-lo para Paris para seguir sua vida. Mas sua tia conhecia os relatos de Paris, um ambiente oposto às suas crendices. Paris para ela tinha algo degenerado, despudorado, imoral. Ela acaba oferecendo para ele outra viagem muito mais adequada à sua visão de mundo, de sua fé.
Oferece ao sobrinho, uma peregrinação a Jerusalém, para que ele colocasse suas ideias em ordem e se aproximasse de sua fé. Ela ainda lhe recomenda uma relíquia, algo original com o qual ele pudesse presenteá-la. Teodorico fica muito chateado com esse oferecimento, mas acaba aceitando, Afinal, uma viagem como essa era uma forma de ter contato com outras mulheres em de cada local onde se hospedasse.
A história mantém o tom herético. O objetivo de Eça é dessacralizar as escrituras, os textos bíblicos, através do escárnio, do riso e da ironia. Quando Teodorico Raposo chega às planícies de Canaã, encontra um lugar extremamente desértico e desolado e se surpreende quando o historiador alemão (seu colega de viagem) Topsius explica que aquela região fora próspera e verde até que um dia o Altíssimo arrasou tudo. Teodorico pergunta ao historiador alemão o motivo pelo qual Deus faria uma coisa daquelas, o que o cientista alemão responde: “Birra, mau humor; ferocidade”. Topsius tem um olhar da ciência frente à religião e desemprenhará o papel de desconstruir as crenças de Teodorico.
Teodorico confirma em Jerusalém real, bem distante de suas oníricas imaginações, a expectativa que formara em Lisboa acerca da Terra Santa. Seu desinteresse só foi quebrado por um bilhar e, um pouco antes, pela descoberta de uma suposta árvore de espinhos, de onde teria saído o galho que forjara a verdadeira coroa de espinhos de Jesus crucificado.
O seu amigo Topsius, que écientista, historiador e conhecedor dos detalhes mais íntimos daquela região de uma forma bastante sarcástica, dirá a Teodorico que aquele galho de espinhos era de Jesus. Através desse episódio, fica patente a representação e crítica ao fanatismo religioso, responsável pelo secular comércio de relíquias falsas, muito comum ainda no século XIX em Portugal.
Os principais acontecimentos bíblicos, sejam do Velho ou do Novo testamento, serão retratados por Raposão de uma forma desalentada, muito triste e diferente daquilo que se conhece dos verdadeiros relatos bíblicos. Algo semelhante a você comprar uma passagem para um lugar que na fotografia é paradisíaco, ou sagrado, e, quando chega nesse lugar fotografado, não é nada daquilo.
Fazia tudo para agradar a tia; afinal, ela tinha uma fortuna, era necessário ser bom e agradá-la sempre, além de vários momentos em que seu comportamento não condizia com o que se passava em seus pensamentos. Um exemplo de sua dissimulação foi a indignação que teve ao ver o decote de uma senhora, em um evento operístico, mas na verdade desfrutou com o olhar.
Raposão era possuído de uma alma jovem vibrante, fascinado pelo amor carnal, instintivo aguçado sob os cuidados das inflexíveis regras de sua tia Titi. Os fios do enredo, como já foi dito acima, denunciam as hipocrisias dos jogos de cena, lê-se a astúcia estratégica de Raposão, sempre rápido e cuidadoso a administrar seus movimentos para atender aos apelos de sua idade e, ao mesmo tempo, mostrar-se casto aos olhos de sua tutora. Espera a morte da tia para usufruir de sua riqueza. E para isso faz todos os sacrifícios para ocultar seus verdadeiros desejos amorais e, por que não dizer?, também perversos.
Fico por aqui, Não posso seguir adiante, pois seria um spoiler desnecessário e que faria perder o sentido aos futuros leitores desse livraço. O romance ”A Relíquia” é um bom exemplo de que o emprego adequado da ironia torna uma temática séria algo divertido, até mesmo humorístico. Ao contrário das demais obras de Eça de Queirós, essa obra prima pelo espírito de graça e humor.
Eça de Queirós mostra, através da hipocrisia de Teodorico, bem como através da própria hipocrisia de Dona Patrocínio das Neves e de outros personagens, representantes do clero católico, que o discurso irônico tem a função não só de sátira e galhofa, mas de lançar uma crítica mais profunda a determinados costumes, valores e práticas da sociedade portuguesas do século XIX. Portanto, a leitura dessa obra requer uma atenção da narração irônica que abrange a religiosidade medíocre e fanática. A teologia cristã dará passagem à teologia do riso.
Pode ficar tranquilo que você, leitor, encontrará bons motivos para dar boas risadas, mas vou logo avisando que não são risadas fáceis. Ao contrário, é o humor como uma forma de reflexão. Raposão imprime um tom sério, quase científico às suas reflexões, e, ao fazê-lo, acaba sendo cômico, burlesco. Suas representações são excessivas e o leitor só será enganado se quiser.
O final é simplesmente o máximo. Querem saber qual a relíquia santa trazida por Teodoro de Jerusalém para sua tia? Uma coroa de espinhos de Jesus Cristo para conquistar de vez o coração de sua tia? Ou alguma lembrança de Maria Madalena? Não deixem de ler essa obra-prima. Um livro que merece um lugar especial na sua estante.