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Grande Sertão: Veredas

Começar um ano é renovar planos, expectativas, metas e esperanças. E cada um se organiza como sabe ou como pode. Há listas para todos os tipos e perfis. Alguns recorrem a listas em cadernos pautados ou pequenos moleskines, com desenhos e muitas setas, marcando prioridades, outros colocam seu futuro em planilhas de Excel e os antenados carregam suas metas em modernos smartphones, todos “touch”. “On line, on time”. Eu faço listas de livros em blocos pautados com a tradicional caneta BIC, e defino sempre as três primeiras leituras do ano - e sigo. Depois, o tempo se encarrega de me apresentar outras, amigos sugerem títulos e é dessa delícia, de descobertas e encontros literários, que vive um livreiro e todos que gostam de ler.

Porém, na condição de Livreiro que sou, repito: meu objetivo aqui não é fazer análises literárias, mas pontuar os bons livros para ler, afirmo: não há como não indicar algumas obras, não existe a possibilidade de ignorá-las na crença de que “todo mundo sabe que é um clássico...”. Sim, todos nós sabemos. E por isso, inicio este ano de 2013, indicando no topo da minha lista: “Grande Sertão Veredas”, de João Guimarães Rosa. E acho que assim começamos muito bem.  E antes de começar, desejo a todos um bom ano. E vamos lá!

Acredito que quase tudo já tenha sido falado e pesquisado sobre “Grande Sertão Veredas” e sobre seu autor, João Guimarães Rosa. Confesso que quando resolvi ler “Grande Sertão Veredas” me senti entrando em um tipo de atmosfera literária em que eu teria uma imensa dificuldade em ler. A obra trás uma linguagem da qual não sou muito íntimo, a linguagem de Guimarães Rosa não é convencional, é irregular, intimida. Mas tudo isso é passado. Posso dizer com toda a segurança que me senti muito envolvido, muito confortável com a história de Riobaldo, e fascinado com a poesia e a erudição do autor. “Grande Sertão Veredas” é realmente uma obra fantástica.

Meu único contato com a obra de Guimarães Rosa havia sido “A terceira margem” um conto magistral de seu livro “Primeiras Estórias”, e só. Mas foi graças a esse conto que resolvi tomar coragem e “encarar” “Grande Sertão Veredas”.

Guimarães Rosa, desde criança, era um ouvinte das Histórias que lhe eram contadas. Buscou na fala regional do centro norte de Minas Gerais a matriz do seu estilo. Como médico, antes de ser diplomata, percorreu toda a região, atendendo a doentes e ouvindo histórias no reino dos bois , no reino dos vaqueiros e dos contadores. Seu contato e convívio com os narradores orais, trás a marca desse universo dos mestres da narração.

Um conselho eu daria para quem nunca teve contato com a obra: leve uma caneta e anote as passagens que chamarem a sua atenção. Por que digo isso? O romance é irregular, não é convencional e algumas passagens tornam-se imprescindíveis para que o leitor possa prosseguir a leitura. Eu fiz isso, e foi de muita valia.

O livro é simplesmente maravilhoso. Daqueles que não se esquece. Marca o leitor e João Guimarães Rosa não faz por menos, sua forma de contar histórias nos permite fazer parte de um universo totalmente diferente do nosso.

A linguagem é uma mistura de tempos, falas populares, arcaicas e modernas. O autor lança mão da Bíblia, de Dante, de Doutor Fausto e outros tantos personagens modernos, e como não poderia deixar de ser, a literatura brasileira de linhagem sertaneja. Todos viajando e se cruzando pelo Sertão com suas visões do mundo. Uma pequena pitada do romance épico e moderno. O épico sempre ligado ao mundo mítico e heroico das batalhas e das histórias dos bandos de jagunços, um mar de estórias do sertão.

O livro protagoniza líderes como Joca Ramiro, Ricardão, Sô Candelário, Titão Passos, João Goanhá, e Hermógenes contra Zé Bebelo e os soldados do governo. Apanhado, Zé Bebelo antigo companheiro de Riobaldo é sentenciado em um tribunal compostos por todos os jagunços. Graças à intervenção de Riobaldo e a complacência de Joca Ramiro, Zé Bebelo é solto, com a seguinte condição: que volte para Goiás e não retorne mais.

Tudo parece caminhar para uma tranquilidade até quando Gavião Cujo, desesperado, anuncia a morte de Joca Ramiro. Recomeçam as hostilidades contra os assassinos, Hermógenes e Ricardão. Zé Bebelo retorna como gratidão para vingar a morte daquele que o salvou, chefiando o bando de Riobaldo e Diadorim. A segunda guerra termina. E eu não contarei o vencedor para não estragar a viajem daqueles que ainda não leram o livro.

“ Grande Sertão Veredas” é um romance sobre as memórias e recordações de Riobaldo sobre os tempos de jagunço, seu amor por Diadorin, os acontecimentos de sua vida,  dos afetos e desafetos,  sobre sua visão de mundo e de seus demônios.

Seus demônios íntimos participam de sua interioridade e que fazem desse herói um ser complexo e que vive debruçado sobre o fluxo do tempo vivido.

O ódio pousa na gente por umas criaturas” (pg170)

O diabo está misturado em tudo. Tudo é lido e interpretado pelas lentes do misticismo primitivo. A mandioca mansa que se come e a mandioca brava que mata, “raças de pedras venenosas” que o diabo dentro delas dorme. O diabo está na cobra, no porco, gavião e na ambiguidade dos seres, ele está em todos os lugares e coisas. Riobaldo fala até do pacto que fez com o diabo:

O Pacto! Se diz – o senhor sabe, Bobéia. Ao que a pessoa vai, em meia noite, a uma encruzilhada e chama fortemente o Cujo – e espera. Se sendo, há-de-que vem um pé de vento, sem razão, e arre se comparece uma porca com ninhada de pintos, se não for uma galinha puxando barrigada de leitões. Tudo errado, remendante, sem contemplação... O senhor imagina percebe? O Crespo a gente retém – então dá um cheiro de breu queimado.”(pg48)

Riobaldo é um contador de “causos” que procura ilustrar a sua preocupação com seus demônios. O demônio é um objeto explícito e constante em sua interpretação de mundo. Ele está inserido em tudo,  e a presença dessa entidade é um dado cultural do lugar e reflete a crença de um povo. Os limites instáveis do sertão faz com que o diabo se misture às rotinas, e no primeiro parágrafo já podemos sentir a sua presença entre os que moram nessas regiões:

- Nonada. Tiros que o senhor ouviu foram de briga de homem não, Deus esteja. Alvejei mira em árvore, no quintal, no baixo córrego. Por meu acerto. Todo dia isso faço, gosto; desde mal em minha mocidade. Daí vieram me chamar. Causa dum bezerro: um bezerro branco, erroso, os olhos de nem ser – se viu -; e como máscara de cachorro. Me disseram; eu não quis avistar. Mesmo que, por defeito como nasceu, arrebitado de beiços, esse figurava rindo como pessoa. Cara de gente, cara de cão: determinaram – era o demo. Povo prascóvio.” (pg1)

Nesse primeiro trecho do livro ouvimos a voz de Riobaldo, o ex-jagunço que assume a narrativa e protagoniza uma conversa com um interlocutor. Esse interlocutor ouve essas histórias e escreve para nós leitores, fazendo a ponte entre o narrador Riobaldo e nós leitores.

Em um livro chamado, “João Guimarães Rosa e a saudade”, de Susana Lages, a autora consegue definir muito bem a relação entre Riobaldo e o seu interlocutor quando diz:

A fala de Riobaldo, porém enquanto fala, oralidade, diz também de sua fraqueza, de sua impossibilidade de abranger a vida em seu contínuo fluir e mesmo de capturar o instante primordial das origens. Mas a fala de Riobaldo não é uma fala é um texto escrito que encena uma situação de fala”, “uma fala escrita”. (pg 74)

Também consegui encontrar outra boa referência em “O narrador”, de Walter Benjamin. Ele se refere à experiência coletiva que se transmitia oralmente como a fonte que todos os narradores extraíam suas histórias.

“Quem viaja tem muito a contar”, assim como quem permanece em seu país onde para sobreviver tem que conhecer as suas histórias e tradições. Os representantes mais antigos desses protótipos são os marinheiros e os agricultores. O narrador é aquele que tem uma ligação com o povo em suas camadas artesanais, quer sejam marítimas quer sejam camponesas.

Muitos narradores visavam à aplicação prática daquilo que narravam e esse era o traço característico de sua narrativa. Ou seja: havia uma finalidade objetiva, direta ou indireta, como se o narrador fosse o conselheiro do ouvinte. E o que Benjamin entendia por aconselhamento são as experiências coletivas que conferiam a possibilidade de repetir uma regra de vida, uma forma de cultivar a terra, uma  norma moral, uma regra de vida e por aí vai.

No ato de narrar não havia apenas o desempenho da voz, precisava-se das mãos para apoiar o que a voz emitia, do olhar, de todo um ritual corporal que mantinha o narrador e ouvintes envolvidos e deleitados com o prazer da narrativa, favorecendo a recordação e estimulando a memorização daquele momento e mensagem. Através dessa memória ampla e coletiva, podia-se absorver os acontecimentos. Não é por acaso que os autores épicos tinham sua musa Mnemosina, aquela que se recorda.

“A obtenção de uma memória comum, que se transmite através das histórias contadas de geração em geração, é hoje destruída pela rapidez e violência das transformações da sociedade capitalistas. Agora o refúgio da memória é a interioridade do indivíduo, reduzido às sua história privada, tal como ela é reconstruída no romance”.

Apesar de ser um contador de “causos” Grandes Sertão Veredas” do “Grande” Guimarães Rosa, me perdoem o trocadilho, não é uma história oral “é um texto escrito que encena uma situação de fala” como pontua Suzane Lages.

Neste trecho de Grande Sertões Veredas”, Riobaldo diz a seu interlocutor:

Ah, mas falo falso. O senhor sente? Desmente? Eu desminto. Contar é muito dificultoso. Não pelos anos que já quase passaram. Mas pela astúcia que têm certas coisas passadas – de fazer balance, de se remexerem dos lugares. O que eu falei foi exato? Foi. Mas teria sido? Agora acho que nem não. São tantas horas de pés, tantas coisas em tantos tempos, tudo miúdo recruzado”.(pg 184)

Ele mesmo explica as dificuldades encontradas de expor os movimentos das suas lembranças. Não há uma sequência linear na narrativa de Riobaldo, tudo que nos é dito segue a sentimentos, impressões, ressentimentos e fatos que só o narrador através da sua memória afetiva pode relatar. Seus personagens possuem uma voz fictícia a medida que o narrador recorre à oralidade, ao fazer comentários e questionamentos.

Riobaldo não é um narrador tradicional, no sentido em que Walter Benjamin traduziu, que ao longo de sua vida acumulou uma longa experiência na ação e no convívio com outros homens, mas através de suas andanças pelo sertão ele expõe sua narrativa, não com o objetivo de passar uma experiência, no sentido em que Benjamim coloca o épico, ao contrário, Riobaldo conta a sua história a fim de compreendê-la, dar sentido a si próprio, contar para si mesmo a sua  trajetória errante, seus passos se misturam com à vasta poesia do sertão. O romance não se restringe a história de sua vida, mas outras pequenas histórias sobre a vida no sertão se misturam a um passado tradicional, que pode ser considerada essa “memória coletiva” - a memória da vida no sertão. Sertão esse que é ficcional, construído em um universo literário. E essa linguagem é a imitação do mundo que serve de referência ao interlocutor. E podemos ver essas memórias em passagens figurativas e poéticas que  Guimarães Rosa nos oferece. Cunhei algumas que considerei muito belas e representativas, como:

“O sertão é do tamanho do mundo”. (pg 73)

O Sertão é o penal, criminal. Sertão é onde o homem tem de ter a dura nuca e mão quadrada”. (pg110)

O sertão é bom. Tudo aqui é pedido, tudo aqui é achado...” O sertão é confusão em grande demasiado sossego”. (pg454)

O sertão não chama ninguém às claras; mais porém, se esconde e acena. Mas o sertão de repente se estremece, debaixo da gente”. (pg522)

O sertão me produz, depois me enguliu, depois me cuspiu do quente da boca...O senhor crê minha narração?" (pg585)

Um cenário vasto e lindo rodeado por significados variados que são visualizados pela escrita do interlocutor (Guimarães Rosa) para o leitor no decorrer do livro, nos ajudando a conhecer e viver nesse universo. A fala do narrador traz para o presente e para o mundo urbano as peculiaridades de uma região distante, imersa em um tempo totalmente diferente do nosso.

Outro ponto que me chamou a atenção é que ao longo do romance, Riobaldo se transmutará em diversos personagens. Em cada fase de sua vida, um novo personagem surge: o menino, o professor, o jagunço Tarantana, o chefe Urutu Branco, o fazendeiro na velhice. Riobaldo é uma mistura. Diadorim é uma mistura e o sertão é uma grande mistura.

O herói do romance é incapaz de dar um bom conselho, não segue os cânones tradicionais de Walter Benjamin.

O grande conselho final, que fica disso tudo, e que ficou para mim depois dessa leitura é:

Porque aprender-se a viver é que é viver mesmo”. (pg.585)

“Grande Sertão Veredas” é uma história contundente, mítica, “o sertão é o sozinho”; “o sertão está dentro da gente,” ...”sertão é sem lugar”.

“Grande Sertão Veredas” é um livro que não pode faltar em sua estante. Certamente, você o identificará com os próprios sertões existentes que cada um de nós carrega.

Comece seu ano colocando essa leitura na sua lista de livros. Caso já tenha lido, presenteie a alguém. É um livro que merece ser lido por muitas gerações.


Data: 08 agosto 2016 | Tags: Romance


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Grande Sertão: Veredas
autor: João Guimarães Rosa
editora: Nova Fronteira

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