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Sidarta

Hermann Hess, em um primeiro momento de sua vida, foi um jovem obstinado. Fugiu do seminário em Maulbronn aos quatorze anos, e o seu total desprezo pela educação formal nos fornece algumas pistas para o entendermos. Ele seguiu um programa rigoroso de autoestudo em que a literatura, a filosofia e a história estiveram presentes em seus estudos e quando trabalhou na Livraria Heckenhauer, na cidade universitária de Tübingen. O desejo crônico de viajar ganhou força em razão da sua vida bucólica, que ele não aguentava mais, o que o levou para as Índias Orientais em 1911.

O romance que o levou ao (vamos dizer assim) estrelato, foi “Demian”, que eu ainda não li. Mas com certeza ainda este ano vou ler. A proposta de Hesse em busca de uma autorrealização, juntamente com a sua celebração do misticismo oriental lhe rende um grande número de seguidores entre a contracultura na América na década de sua morte. Hermann Hess continua amado por todos os jovens que estão à procura do autoconhecimento.

Para olharmos para dentro, devemos olhar abaixo do nível do ego, abaixo do nível da personalidade, do nível de predisposição genética, descer até o submundo arquetípico. Hesse sempre esteve convencido de que nós, humanos, podemos alterar a realidade alterando nossas percepções dela. O desespero, a miséria e a degeneração pessoal são o resultado da forma como fruímos a vida, com as nossas atitudes e nossas visões distorcidas da realidade.

Assim como os existencialistas, Hermann Hesse via a humanidade presa em uma armadilha criada por ela mesma. Seguindo um caminho diferente de Camus e Sartre, a solução do impasse da humanidade poderia ser desencadeada por meio de uma transcendência espiritual. E isso envolve a procura. Sidarta, por exemplo, busca o seu caminho não através de uma doutrina. Para ele, a realidade nunca pode ser capturada em uma rede feita de pensamentos, e existe uma diferença entre o conhecer e o desejo de saber. Para ele, o caminho da iluminação é uma estrada de terra fechada ao transporte público. A viagem deve ser feita sozinho e desimpedido, pois a sabedoria não pode ser passada adiante.

Vamos ao livro? O romance começa com uma breve retrospectiva da história familiar do brâmane (casta sacerdotal hindu) de Sidarta, sua educação, sua inocência e a tranquilidade de sua infância.  Simultaneamente, observamos o brâmane ortodoxo, pai de Sidarta, que, com seu filho, realiza o “rito de ablução sagrada e dos sacrifícios rituais” no rio. Govinda, amigo de Sidarta, filho de brâmane, são tão próximos intelectualmente e fraternalmente que parecem ser quase um.

Sidarta recebe todo o amor de sua família, mas algo está errado. Ele se sente miserável por dentro. Ele vive para agradar o seu pai e aqueles ao seu redor em vez de a si mesmo. Ele não vê o mais sábio daqueles ao redor capaz de converter conhecimento em vida. Sidarta sabe que Atman (a Alma suprema universal, a força vital) dentro dele:

“ Já era capaz de perceber no íntimo da sua natureza a presença do Atman, indestrutível, uno com o Universo.” (pg 6)

Sidarta está preocupado com o fato de ninguém – nem os professores mais sábios, nem seu pai, nem as canções sagradas – podem leva-lo à descoberta do Eu. Os professores e as escrituras produziram apenas aprendizado de segunda mão da qual o conhecimento emana.

“Começava a vislumbrar que seu venerando pai e seus demais mestres, aqueles sábios brâmanes, já lhe haviam comunicado a maior parte dos seus conhecimentos; começava a perceber que eles tinham derramado a plenitude do que possuíam no receptáculo acolhedor que ele trazia em seu íntimo. E esse receptáculo não estava cheio; o espírito continuava insatisfeito; a alma andava inquieta; o coração não se sentia saciado. As abluções, por mais proveitosas que fossem eram apenas água; não tiravam dele o pecado; não curavam a sede de espírito; não aliviavam a angústia do coração.” (pg 7)

À medida que os anos foram passando, Sidarta alimentava uma ideia, até que um dia ele dá a notícia de que decidiu se libertar de sua casta hindu predeterminada e planeja deixar seu pai para se juntar aos Samanas (que eram os ascetas capazes de viver na mais absoluta penúria). O pai fica inquieto, mas aceita com a seguinte condição: que busque a bem-aventurança caso a encontre na floresta entre os Samanas. A sombra de Govinda (seu amigo) então aparece e ele se junta a Sidarta.

Sidarta tem como objetivo erradicar o ego. E continua durante a sua busca aprendendo muitas coisas novas. Mas ele chega à conclusão de que quanto mais você tenta perder o Eu, mais voltamos a ele. Começa a se questionar se ele não está andando em círculos e se enganando em encontrar “o essencial, o Caminho dos Caminhos”. Ele chega à conclusão de que não existe aprendizado – apenas conhecimento.

“Os samanas ensinavam muita coisa a Sidarta e ele aprendia numerosos métodos de separa-se do eu. Trilhava a senda da desindividualização, através da dor, através do tormento voluntário e do triunfo sobre o sofrimento, sobre a fome, a sede, o cansaço. Desindividualizava-se, mediante a meditação, tirando do seu espírito toda e qualquer representação, até deixa-lo vazio. Aprendia a percorrer esse e outros caminhos, saindo inúmeras vezes do próprio eu e conservando-se no não eu, hora e dias a fio. Mas por mais que os caminhos o afastassem do eu, ao fim sempre o reconduziam a ele. (pg 15)

O caminho da abnegação não oferecia uma solução permanente para ele. Sidarta ressalta que os Samanas mais velhos viveram essa vida por muitos anos, mas ainda não atingiram a iluminação espiritual. Foi quando conhecem Gautama, o Buda, que atingiu a iluminação espiritual, ou seja, o Nirvana. Govinda convence Sidarta a deixar os Samanas e a seguir Gotama (que no livro é o Buda)

Inicialmente Sidarta se identifica com Gotama e, juntamente com Govinda seguem o mestre. Nesse ponto há uma dúvida por parte de Sidarta. Ele percebe uma contradição nos ensinamentos de Gotama:  Sidarta exalta a doutrina de Gotama (Buda) de compreender o mundo como uma cadeia completa, ininterrupta e eterna de causa e efeito. No entanto, Sidarta aponta que a doutrina da salvação não pode ser mostrada nem provada. Para isso, seu questionamento é o seguinte: como abraçar a unidade de todas as coisas como Buda propõe se todos são instruídos a superar o mundo físico? Sidarta percebe que o budismo não lhe dará a resposta a essa indagação. Enquanto Govinda segue com Gotama, Sidarta segue o seu caminho sem nenhuma instrução religiosa.

Embarca em uma vida livre da meditação e das buscas espirituais que vem perseguindo e, em vez disso, busca aprender com os prazeres do corpo e do mundo material. Em suas andanças acaba conhecendo um barqueiro amigável, que vive feliz sua vida simples. Sidarta cruza o rio do barqueiro e chega a uma cidade. Aqui ele conhece uma bela cortesã chamada Kamala que o deixa entrar. Ele sabe que ela seria a melhor pessoa que poderia ensiná-lo sobre o mundo do amor, mas Kamala não o aceitará a menos que ele prove que pode se encaixar no mundo material. Ela o convence a seguir o caminho do comerciante Kamaswami, e ele começa a aprender o ofício. Sidarta aprende a sabedoria do mundo dos negócios e começa a dominar as habilidades que Kamaswami lhe ensina.

À medida que os anos passam, a perspicácia empresarial de Sidarta aumenta. Logo ele se torna um homem rico. Ele joga, bebe e dança, e tudo o que pode ser comprado no mundo material está à sua disposição. Sidarta está separado dessa vida, ele sabe que tudo isso não passava de um jogo. E quanto mais ele obtém do mundo material, menos isso o satisfaz, e ele é pego em um ciclo de infelicidade do qual tenta escapar engajando-se ainda mais em jogos de azar, bebidas e sexo. A desilusão com o mundo material aparece na forma de sonhos:

"O mundo apanhara-o nas suas malhas, o prazer, a cobiça, a inercia e, finalmente, também aquele vício que sempre lhe afigurava, o mais estúpido de todos: a avareza. Também a posse os bens materiais, a riqueza haviam-se apoderado dele, cessando de representar para ele um brinquedo uma bagatela e transformando-se em grilhões e cargas. A essa derradeira dependência, à mais vil de todas, chegara Sidarta por um caminho curioso e pérfido: pelo jogo de dados. Desde aqueles dias em que, no fundo do coração, desistira de ser samana, dedicava-se ele com crescente fervor e paixão a esse jogo por dinheiro e por objetos preciosos" (pg66)

Na medida em que a desilusão começa a dar sinais, Sidarta se vê em completo desequilíbrio, Ele percebe que o mundo material está matando-o, sem fornecer a iluminação que ele estava procurando. Foi quando ele sonha com um pássaro:

“Numa gaiola de ouro, Kamala guardava um passarinho canoro, muito raro. A visão do bichinho apareceu diante de Sidarta. O pássaro, que normalmente cantava nas primeiras horas do dia, parecia mudo. Como se esse fato lhe chamasse a atenção, ele aproximou-se da gaiola e viu que o passarinho jazia no chão, morto, enrijecido. Retirou-o; por um momento segurou-o na mão e, em seguida, atirou-o na calçada da rua. Mas logo se assustou terrivelmente. O coração doía-lhe como se ele houvesse jogado fora não só o cadáver da ave, como também tudo que fosse bom tivesse valor.

Despertou bruscamente. Sentia-se invadido de profunda tristeza. Atormentava-o a impressão de ter levado uma existência vil. Miserável, insensata.” (pg 68)

Sidarta abandona a sua vida e, com o coração doente, vagueia até encontrar um rio. Enquanto ele dorme, Govinda aparece, agora ele é um monge budista. Protege o sono dele contra as cobras. Ele observa as transformações de Sidarta desde os seus dias com os Samanas. Sidarta reconhece Govinda e deseja se tornar alguém novo. Govinda parte em sua jornada, e Sidarta senta-se à beira do rio e considera aonde sua vida o levou.

Sidarta encontra o mesmo barqueiro que conheceu anos antes. O barqueiro, que se apresenta como Vasudeva, irradia uma paz interior que Sidarta queria alcançar. Sidarta expressa o desejo de conhecer o rio e começa a obter dele uma iluminação espiritual diferente de qualquer outra que ele já conheceu. Enquanto ele está sentado à beira do rio, ele contempla a unidade de toda a vida, e na voz do rio ele ouve a palavra “Om”.

Sidarta estuda o rio por anos, e Vasudeva ensina Sidarta como aprender os muitos segredos que o rio tem para contar. E ao contemplar o rio, Sidarta tem uma revelação: assim como a água do rio flui para o oceano e é devolvida pela chuva, todas as formas de vida estão interconectadas em um ciclo sem começo ou fim. Nascimento e morte fazem parte de uma unidade atemporal. Vida e morte, alegria e tristeza, bem e mal − são todas partes do todo e são necessárias para compreender o significado da vida.

Quando Sidarta aprendeu todas lições do rio, Vasudeva anuncia que sua presença no rio havia acabado. Ele retira-se para a floresta, deixando Sidarta sozinho navegando o rio como barqueiro.

O romance termina com o reencontro com Govinda. E Sidarta chega à conclusão de que ninguém pode ensinar a sabedoria porque as explicações verbais são limitadas e nunca podem comunicar a iluminação completa. E termino por aqui.

“Sidarta”, de Hermann Hess, é um livraço que merece um lugar especial na sua estante.


Data: 17 agosto 2020 | Tags: Romance


< Soldados de Salamina Brida >
Sidarta
autor: Hermann Hess
editora: Civilização Brasileira
tradutor: Herbert Caro

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