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Soldados de Salamina

Não é fácil encontrar as razões precisas de um sucesso literário, uma vez que a popularidade de um livro não é governada por fórmulas. A coisa não funciona por aí, pelo menos na grande literatura. Muito menos se esse livro for capaz de atrair elogios de um escritor como Mario Vargas Llosa, Prêmio Nobel de literatura e um dos gigantes da literatura contemporânea. “Soldados de Salamina”, de Javier Cercas, é um desses livros que marcam o leitor e ao mesmo tempo deixam algumas pulgas atrás da orelha. Falaremos delas nesta resenha.

Mas, antes de falarmos sobre esse romance, é preciso que o leitor não familiarizado com a história da Guerra Civil Espanhola entenda o contexto em que parte essa história é narrada. A Guerra Civil Espanhola ocorreu nos anos de 1936 a 1939. Havia dois lados.  De um lado, os republicanos, composto por setores democráticos e de esquerda, como os anarquistas e comunistas. Do outro lado, estavam as forças de direita, que se articularam em torno da Falange Espanhola tradicionalista e setores das Forças Armadas lideradas pelo general Francisco Franco.

O país vivia mergulhado desde o início do século XX em sucessivas crises políticas, econômicas e sociais. A monarquia, incapaz de resolver as dificuldades, reprimia duramente o movimento sindical e os partidos de esquerda. Em 1923, General Primo Rivera instaurou uma ditadura tipo fascista, mas que foi derrubada graças à pressão popular em 1930. Em 1931, os republicanos venceram as eleições municipais. E graças a um movimento popular, a monarquia espanhola foi deposta, e a família real foi exilada na Itália.

Em 1936, a Frente Popular, que reunia vários setores democráticos e de esquerda – socialistas, comunistas, anarquistas, liberais –, elegeu Manuel Azaña como presidente. Após as eleições, o Exército, sob a liderança do general Francisco Franco, se rebelou contra o novo governo. Começava a Guerra Civil Espanhola. Franco trazia o apoio de Adolf Hitler, que usou a Espanha como experimento de novas armas de guerra.

A razão dessa pequena introdução serve para aqueles que porventura não conhecem o contexto histórico de parte do livro. Mas essa é uma história ficcional? Sim e não. A maioria dos personagens são figuras históricas, ou seja, são reais. E o narrador, assim como o autor, é um escritor chamado Javier Cercas.

Tudo começa com uma entrevista de Javier Cercas (autor e protagonista do romance) com um homem chamado Rafael Sánchez Ferloso, filho de Rafael Sánchez Mazas (outro protagonista do romance). É assim que Javier Cercas se interessa pela história de Rafael, tentando descobrir como ele poderia escrever uma história real. Todo o romance foi criado graças às entrevistas feitas com muitas pessoas que viveram ou gostam de saber coisas sobre a guerra, como Jaume Figueras, Miguel Aguirre, Trapiello, Maria Ferré etc. O filho de Rafael Sánchez Mazas foi preso por ser um dos maiores falangistas da época e que pertencia ao Partido de la Falange.

“Soldados de Salamina”, de Javier Cercas, é construído em três partes. A primeira parte do livro chama-se “Os amigos do bosque”, cujo narrador, que tem o mesmo nome do autor, Javier Cercas, conta de forma autodepreciativa e espirituosa seus próprios fracassos como escritor de ficção e como esposo, além de ter perdido seu pai. Poucas alternativas sobraram, a mais em conta era tentar ressuscitar sua carreira anterior de jornalista.

Certa vez, ao pesquisar um artigo que comemorava o 60º aniversário da Guerra Civil Espanhola, Javier ouve uma lenda interessante: o herói nacionalista Rafael Sánchez Mazas, (personagem real), fundador do Partido Falange de direita e ex-ministro do gabinete de Franco, foi capturado por forças inimigas. Em um dia trágico, Lister (general de seu pelotão) mandou fuzilar todos os prisioneiros. Foram levados para um matagal e todos se prepararam para serem fuzilados, pois tudo aquilo não era um passeio inocente na campina, estavam conscientes disso. Os soldados se prepararam para atirar e só esperavam a voz do comandante. Quando o comando foi dado, os tiros aniquilaram os que estavam ali presentes, com exceção de uma pessoa: Raphael Sánchez Mazas. Ele correu para o mato, e não pôde ir muito longe, pois estava exausto, faminto e, para piorar, ainda era míope e não enxergava muito bem, ficando escondido no máximo que pôde. Foi quando surgiu um miliciano do nada, que olhou para ele (Sánchez Mazas) e agiu como se estivesse anistiando por conta própria, ou não. Fingiu que não o viu, poupando sua vida.

 

“Mas o tiro não chega, e Sánchez Maza, como se já estivesse morto e desde a morte recordasse uma cena de sonho, observa sem incredulidade o soldado avançar lentamente em direção à borda da cratera sob a chuva que não para e o rumor dos soldados e carabineiros à sua procura, dar uns passos apenas, o fuzil apontado sem ostentação para ele, o gesto mais indagador que tenso, como caçador novato a ponto de identificar sua primeira presa, e no momento exato em que o soldado alcança a borda da cratera, um grito vizinho trespassa o rumor vegetal da chuva:

- Tem alguém aí?

O soldado olha para ele; Sánchez Mazas também, mas seus olhos deteriorados não entendem o que veem; sob o cabelo empapado, a testa larga e as sobrancelhas pontilhadas de gotas, o olhar do soldado não expressa compaixão, nem ódio, nem desdém, mas uma espécie de uma secreta e insondável alegria, algo no limite da crueldade e resistente à razão, mas que tampouco é instinto, algo que está no sangue persiste em seus dutos e a terra em sua órbita inamovível e todos os seres, algo que esquiva às palavras como água do riacho e todos os seres em sua teimosa condição de seres, algo que se esquiva das pedras, porque as palavras só estão feitas para expressar-se a si mesmas, para expressar o dizível, quer dizer, tudo, é este soldado anônimo e derrotado que olha esse homem cujo corpo quase se confunde com a terra e a água marrom da cratera, e que grita com força para o ar sem deixar de olhá-lo:

- Por aqui não tem ninguém!

Então dá meia-volta e se vai” (pg 103, pg 104)

Essa é a grande incógnita (ou a pulga atrás da orelha) do romance. Depois de sobreviver a esse tormento, Sánchez Mazas tentou escapar de tudo e de todos os seus perseguidores. Foi nesse momento que encontrou uma casinha onde vivia uma família normal e comum, na qual lhe deram comida e um pouco de fogo para se aquecer. Maria Ferré morava nessa casa com seus pais, e Sánchez Maza encontrou o conforto que precisava para se recuperar., ficando lá por muito tempo, até que conheceu dois irmãos e outro rapaz uniformizados com traje de combate. Seus nomes eram Pedro e Joaquim Figueras e Daniel Angelats.

Javier Cercas pede ao jornal onde trabalha permissão para começar a traçar a sua história real, que seria chamada de “Soldados de Salamina”.

O filho de Sánchez Maza confirma a história, mas Javier Cercas não tinha dados para comprovar a veracidade daquela história. Não sabia até que ponto era verdade ou mentira, e daí surge a ideia de escrever sobre isso, não em forma de romance, mas uma história verdadeira baseada em eventos e personagens verdadeiros.

Na segunda parte do livro, chamada “Soldados de Salamina”, Cercas explica a história de Sánchez Mazas. Ele morou em Bilbao na juventude, viveu em Roma por sete anos, quando se converteu ao fascismo. Ele acreditava que o fascismo era o instrumento para restabelecer a antiga hierarquia de poder. Em 1929, ele deixou Roma e foi para Madri, onde escreveu e participou de ações que apoiaram o partido fascista. Ele ficou preso no navio Uruguay, uma prisão flutuante em Barcelona em novembro de 1937. Foi acusado de ser chefe da quinta coluna em Barcelona (o que era falso) e de incitar a rebelião (que era verdade). No entanto, ele acabou não sendo condenado à morte. Com os outros presos, chegou ao santuário de Santa Maria del Collell. Quando a guerra civil estava quase acabando, houve um tiroteio. Mazas sobreviveu com ajuda da família Ferré e os amigos do bosque por muitos dias.

Na terceira parte do livro, “Encontro marcado em Stockton”, o narrador começa a escrever a história, mas faltava-lhe algo importante, e ele não poderia terminar o livro durante a licença do jornal, precisava de mais tempo. A terceira parte retorna à Primeira Parte, ou seja, após reler o romance, o narrador percebeu que o romance era uma porcaria: estava faltando algo importante que ele não conseguia identificar. Percebemos que a Segunda Parte é o romance em questão. Desesperado, Javier Cercas volta ao jornal mais uma vez. E consegue uma entrevista com o escritor chileno exilado Roberto Bolaño, que tinha um velho amigo que participou de um pelotão de fuzilamento. O nome desse amigo era Miralles, que passou a vida inteira lutando em várias frentes, não só na guerra civil espanhola, mas durante a Segunda Guerra Mundial na África e na França. E talvez fosse este o soldado que salvara a vida de Mazas− ou seja, este era o elemento que estava faltando para que Javier Cercas costurasse a história. No entanto, o velho não admite que era o homem que tinha salvado Mazas, mas sabia que era um verdadeiro “Soldado de Salamina”.

O narrador se depara com as memórias subjetivas, já que as lembranças dos seus entrevistados não são precisas. O tema dessa história é uma busca interior. “Soldados de Salamina” reúne reflexões sobre temáticas universais. A guerra e os heróis, e o papel cruel da memória para legitimar a existência humana.

“Ninguém se lembra sequer por que morreram, por que morreram, por que não tiveram mulher e filho e um quarto com  sol; ninguém, e menos que ninguém  as pessoas por quem lutaram...

...Ah, mas eu me lembro, ora não me lembro, ora se não me lembro., me lembro de todos, de Lela e de Joan e de Odena e de Cardos e de Pipo e de Brugada e de Gudayol, não sei por que faço isso, mas faço, não passo um dia sem pensar neles...

...Ele se lembra porque, embora faça sessenta anos que se foram, ainda não estão mortos, precisamente porque ele se lembra deles. Ou talvez não seja ele que se lembra deles, mas eles que se agarraram a ele para não estar mortos. Mas quando Miralles morrer completamente, porque não haverá ninguém que se lembre deles para que não morram” (pg 204, pg 205)

O livro é um processo investigativo realizado pelo narrador-escritor, que também se confunde com a história que deseja narrar, mas combina ficção com acontecimentos reais, em ambas as situações. Graças a um soldado anônimo que o autor que sempre desconfiou de sua escrita e de si mesmo criou uma excelente história.

“Soldados de Salamina”, de Javier Cercas, que também se coloca como personagem do livro nos surpreende muito. Um livro que merece um lugar de HONRA na sua estante.


Data: 12 agosto 2020 | Tags: Romance


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Soldados de Salamina
autor: Javier Cercas
editora: Biblioteca Azul
tradutor: Wagner Carelli

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