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Doutor Pasavento

Enrique Vila-Matas é um premiadíssimo escritor catalão, nascido em Barcelona, numa data que nos remete a momentos institucionais difíceis na vida brasileira, ou seja, 31 de março; só que o ano não coincide, graças a Deus. Enrique Vila-Matas nasceu em 1948. Exilou-se em Paris na época em que o franquismo dava as cartas políticas para o que de pior a Espanha poderia oferecer ao mundo. Instalou-se em um apartamento de Marguerite Duras, que já era bastante conhecida. Passou anos de sua vida vivendo e sobrevivendo em pequenos trabalhos como jornalista trabalhando para a revista “Fotogramas”,  e chegou como figurante em um filme de James Bond. Autor de diversos livros. Fiquem certos que, prometo, todos serão lidos. Falo isso, pois simplesmente adorei “Doutor Pasavento” e não tenho dúvidas que os outros obedecem ao mesmo critério de qualidade. Uma coisa que me alegrou muito foi saber que o livro de um escritor brasileiro maravilhoso, Leandro Müller, “Pequeño Tratado sobre Efectos de Superfície” (em português: “Pequeno Tratado sobre Efeitos de Superfície”) ainda não traduzido no Brasil, foi prefaciado por esse autor que corre um sério risco de ser um dos meus preferidos.

Esse livro, “Doutor Pasavento”, foi indicado por um amigo muito querido, e também Livreiro da Travessa, Lucas Silvério Porto. Apesar de desconhecer autor e obra, sabia apenas ser ele um dos escritores “tops” da literatura espanhola, eu o levei para aquela "pilha"  de livros - aquela pilha que todo bom leitor tem ao lado da cama, quase como uma pendência que nos fala todas as noites "Precisamos ser lidos!". Até que um fim de semana, depois de chegar de mais um dia de trabalho, missão cumprida, fui a assistir à série “Breaking Bad” que havia comprado todas as temporadas. Foi quando senti uma pontada em minhas costas. Era um pequeno aviso. No dia seguinte, eu estava que não me aguentava mais. Médicos, acupunturistas, além de verdadeiras bombas para amenizar as dores nas costas.

Confesso que foi nesse momento que falei comigo: “vai ser agora”. E comecei a ler e a me apaixonar pela obra. Um livro fantástico. Devo a ele os únicos momentos bons que tive com toda a dor e a ausência de uma posição confortável na cama, em pé, ou sentado. Esse livro foi um alívio. Logo nas primeiras páginas o autor coloca na boca do personagem os seguintes dizeres:

“Lembro-me especialmente de um escritor dessa seção angélica, que num filme chamado “Em um lugar à parte” vivia num hotel cujo quarto tinha uma grande janela que dava para um abismo e o mar, numa cidade sem nome. Lembro também que sempre desejei algum dia ser como o protagonista daquele filme e viver em algum lugar que tivesse o mesmo encanto daquele hotel diante do abismo.”

“Não Lugares” é um livro de Marc Augé, onde ele define o conceito de “não lugar” como algo diametralmente oposto ao lar, ou seja, são os espaços públicos de rápida circulação, como, por exemplo, aeroportos, hotéis, supermercados, enfim. Os habitantes do “não lugar” travam com esses espaços uma relação meramente simbólica. Símbolos que permitem o acesso comprovam a identidade, autorizam deslocamentos impessoais.

Esse “não lugar” que Enrique Vila-Matas nos apresenta é algo diferente, um “não lugar” cinematográfico: uma utopia? Um estranho desejo,  podemos dizer.  Doutor Pasavento é um romance que discute numa perspectiva metaficcional, ou seja,  é um tipo de texto que identifica conscientemente os mecanismos da produção literária e que não deixa o leitor esquecer que está diante de uma obra fictícia. É a história de um escritor tensionado entre o excesso de visibilidade pelo sucesso e seu desejo de desaparecimento. O autor se cerca de citações múltiplas que vão revelando e ajudando a construir um personagem bem complexo. Como assim?, perguntaria o leitor dessas mal traçadas linhas.  Ele encarna uma multiplicidade de “eus”, que se desdobra na construção dessa subjetividade, coisa que, convenhamos, não é algo fácil de fazer.

Um narrador e leitor compulsivo, que vive o desespero de um sujeito desfocado em um ambiente asfixiante. Um homem na sua solidão, no desamparo da perda de si mesmo e morte, e que convive com os seus medos de viver no meio de uma multidão de desamparados que lhe servem de espelho.

O protagonista potencializa essa perspectiva do sujeito contemporâneo totalmente descentrado. Seus “eus” inventados através de vários personagens transitam  por cidades, ruas e manicômios, desenhando uma cartografia afetiva incongruente e contraditória em sua busca desesperada em desaparecer. De celebridade, assume a identidade de doutor Pasavento, mais adiante, um médico psiquiatra doutor Pynchon, depois confunde-se com um fantasma chamado doutor Ingravallo,  e ainda ensaia um pacto com o diabo.

Persegue o caminho percorrido por Robert Walser, um escritor suíço que se ausenta da vida durante 27 anos de sua vida em um manicômio e pelo qual nutre uma admiração apaixonada. Diferentemente de Walser, continua escrevendo microtextos com uma caligrafia cada vez menor. Escreve para buscar sentido, escreve para desaparecer para o público ávido de notoriedade, para se encontrar em um lugar à parte, um “não lugar”, em frente de seus “eus” dispersos ou reencontrados. Escreve para driblar a morte e para recriar a vida, com todas as suas precariedades. Escreve para lembrar sua filha Sofia morta por overdose de heroína.

Doutor Pasavento admira Walser porque o autor modernista suíço, cujas obras são cults, conseguiu passar desapercebidamente até a sua morte. A aventura do doutor Pasavento termina quando ele não é aceito como paciente por um diretor na vida real, o Dr Kaigi.

Paro por aqui. Posso dizer que esse livro foi muito bom em meu período de restabelecimento físico e mental. Talvez físico seja um exagero. Mas mental com certeza foi.


Data: 08 agosto 2016 | Tags: Romance


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Doutor Pasavento
autor: Enrique Vila-Matas
editora: Cosac&Naify
tradutor: José Geraldo Couto

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