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Utopia Selvagem. Saudades da Inocência Perdida Uma Fábula

Darcy Ribeiro sempre terá uma importância especial aqui no site dos Bons Livros para Ler. Esse será o terceiro livro resenhado aqui de Darcy Ribeiro, um dos intelectuais brasileiros mais brilhantes do século XX. Seu livro “Utopia Selvagem − Saudades da Inocência Perdida. Uma fábula” é uma desconstrução de estereótipos nacionais através do universo ficcional que ele criou..

 Para isso, Darcy recorre à peça “A Tempestade”, de Shakespeare, e teoriza a complexa relação entre o colonizador e o colonizado. No caso da peça, a atitude do personagem Caliban (Darcy incorpora esse personagem de Shakespeare para sua história) para com a chegada de Próspero. É fato que “A Tempestade”, de Shakespeare, é uma das mais lidas, relidas e reescritas obras da literatura inglesa, e que pode ser contemplada por uma visão crítica como uma réplica às decorrências sociais e políticas da colonização que se estenderam no período pós-colonial.

Caliban (em “A Tempestade”, de Shakespeare) era o escravo de Próspero, frequentemente referido como um monstro pelos outros personagens. Ele é filho de uma bruxa e o único verdadeiro nativo da ilha a aparecer na peça. Ele é uma figura extremamente complexa e espelha ou parodia vários outros personagens da peça. Em seu primeiro discurso a Próspero, Caliban insiste que ele (Próspero) roubou a ilha dele. Por meio desse discurso, Caliban sugere que sua situação é a mesma de Próspero, cujo irmão usurpou seu ducado. Por outro lado, o desejo de Caliban pela soberania da ilha reflete o desejo de poder que levou Antonio a derrubar Próspero.

Seus belos discursos sobre sua casa na ilha fornecem algumas das imagens mais afetantes da peça, lembrando ao público que Caliban realmente ocupava a ilha antes da chegada de Próspero e que ele pode estar certo ao pensar que sua escravização é monstruosamente injusta. A aparência morena de Caliban, sua servidão forçada e seu status de nativo na ilha levaram muitos leitores a interpretá-lo como o símbolo das culturas nativas ocupadas e suprimidas pelas sociedades coloniais europeias representados pelo poder de Próspero.

No entanto, se na obra ”A Tempestade” (já resenhada aqui,) de Shakespeare, Caliban quer povoar a ilha de Calibans, com isso transmitindo a descendência para não se perder a tradição dos locais, em “Utopia Selvagem” vemos o contrário, ou seja, temos o processo de miscigenação entre Calibã e a monja Tivi na festa da Caapinagem, simbolizando a mistura das raças e das culturas: a dos primitivos e a dos civilizados, e dessa forma afirmando que somos um povo mestiço.

“As gentes estranhas que Colombo e Américo viram viraram colombianos, americanos e bolivianos além de abrasados e prateados e até equatorianos. (...) Esgotados e enjoados do esforço de simular ser quem não somos, aprendemos, afinal, a lavar os olhos e compor espelhos para ver. Neles nossa figura surge debuxada no Guesa, em Macunaíma e, sobretudo, no Grito Antropofágico:

• Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago.

• O instinto Caraíba. Catiti. Catiti.

• Já tínhamos o comunismo. Catiti. Catiti.

• A alegria é a prova dos nove.

• No matriarcado de Pindorama. Catiti. Catiti.

 (Ano 374 da deglutição bispal” (pg 33)

Aqui, uma explícita alusão à miscigenação dos povos, desde a figura do colonizador advindo de outro hemisfério europeu misturando-se com o sangue dos índios nativos, que surge o novo homem: o colombiano, o americano, o equatoriano, o brasileiro.

Em “Utopia Selvagem”, as raças se diluem a partir da indiferenciação, ou seja, aquele conceito que Darcy Ribeiro chama em seu livro “O Povo Brasileiro” de “ninguendade”:  uma desindianização forçada, a desafricanização do negro e a deseuropeização dos brancos, que, despojados de sua identidade, veem-se condenados a inventar uma nova etnicidade. Assim foi concebido, por exemplo, “Macunaíma”, de Mario de Andrade, um personagem mítico criado a partir do imenso manancial poético-folclórico do extremo norte da América do Sul.

“Nosso enigma é muitíssimo mais complicado. Começa com a tenebrosa invasão civilizadora. Mil povos únicos, saídos virgens da mão do Criador, com suas mil caras e falas próprias, são dissolvidos no tacho com milhões de pituns, para fundar a Nova Roma multitudinária. (...)

– Quem somos nós? Nós mesmos? Eles? Ninguém? (...)

– Quem somos nós, se não somos europeus, nem somos índios, senão uma espécie intermediária, entre aborígenes e espanhóis?” (pg 32)

Vamos ao livro?

A enunciação de “Utopia Selvagem”, contudo, não se apresenta a partir dessa voz convencional à narrativa utópica. A primeira linha do romance já denuncia o desvio:

“Aí está o tenente cumprindo sina” (pg13)

 A partir dessa frase, podemos observar que o narrador é exterior ao enredo, e o personagem prepara-se para viver alguns percalços. E esses obstáculos serão vivenciados como uma “sina”.

“Utopia Selvagem − Saudades da Inocência Perdida. Uma fábula”, narra as peripécias do primeiro tenente Gasparino Carvalhal, um gaúcho de ascendência negra, soldado do Exército Brasileiro, conhecido como Pitum, ou ainda, Orelhão, como futuramente será conhecido entre os indios Galibis.

Ele encontra-se numa hipotética guerra contra a Guiana, e acaba se perdendo de sua tropa quando subitamente entra numa outra dimensão, ou numa terceira margem, e se vê com as lendárias amazonas, as Icamiabas guerreiras, que o transformam em macho reprodutor dessa comunidade exclusivamente feminina. Deslumbrado a princípio com a possibilidade de ter cada noite uma mulher na sua rede, ele fica desconfiado de sua situação, já quem não há homens e nem meninos na tribo.

Essa é a primeira parte do livro, que se chama “Bandas e Lados”. Na segunda parte, “A Margem Plácida”, se vê envolvido agora com duas “monjas” missionárias cristãs e passa a viver com elas o dia a dia da aldeia. Pitum se defronta com uma outra realidade com os ideais de uma sociedade utópica. A última parte se chama “Desbunde”. Nessa última parte ocorre a integração dos três “civilizados” ao desregramento selvagem, tudo isso sob os auspícios de uma bebida indígena chamada “cauinagem”, onde se estabelece um confronto entre a razão ordenadora e os instintos numa ilha flutuante. A artilharia da razão é contra-atacada por cargas de fezes atiradas com as mãos contra as armas da razão.

Bem, Pitum enfrentará muitas provas e acidentes de percurso em  um romance cheio de aventuras. No entanto, não será ele o narrador. Ele dá o seu depoimento a um narrador que comenta e descreve as sociedades encontradas pelo protagonista (Pitum):

- Eu tudo via e entendia, mas não me mexia. Mesmo para pra piscar e lubrificar os olhos era uma trabalheira. (pg24)

À medida que Pitum vai descobrindo novas sociedades, novos mundos, o narrador comenta os mundos apresentados pelo nosso protagonista como possíveis utopias:

“Sejamos sérios, leitora. Já é hora de darmos um balanço crítico nesta história. Na boa literatura ficcional, enredo é indispensável, mas não basta. Alguma ensaística filosófica é também necessária. Aí vamos

Segundo penso e professo, selvagem para ser autêntico tem é que fazer selvageria, tal como cristão tem de viver em misericórdia e na caridade. Quando se contaminam a Civilização fica selvagem e a Selvageria cristã. O que só pode dar em desgraça de cristãos asselvajados e selvagens pios.” (pg 127 e pg 128)

 Aqui vemos o narrador dando suas opiniões e celebrando seus juízos sobre as sociedades visitadas pelo herói. A conversa do narrador com o leitor persiste por todo o romance. O capítulo intitulado “Próspero” já se inicia com uma recomendação, como se pode constatar:

Amigo, amiga, me desculpe, mas tenho outra vez de me intrometer em sua leitura. É verdade que, como sempre, em seu benefício. Agora, para proporcionar informações complementares, quiçá decisivas para o desenvolvimento desta fábula. Reconheço, porém, que este capítulo é meio chato e não me ofendo se você quiser saltá-lo. (, p. 147).

Próspero representa alegoricamente as estruturas do poder, de onde decorre a Utopia Burguesa Multinacional, sonhada há séculos. Para concretizar o “ideal utópico”, diz o narrador, o poder supremo é simbolizado na pessoa sagrada do Imperador Impoluto. Em Utopia Selvagem, o narrador preconiza a programação do “Homo Ciberneticus” que recolonizará os mundos. A visão do homem na pós-modernidade percorre os meandros do capítulo “Próspero”.

No livro “Utopia Selvagem”, chama a atenção o caráter crítico às figuras das monjas Uxa e Tivi, personagens que representam a estupidez crítica ao modo de vida selvagem. Essas personagens vivem na tribo Galíbia, que é composta por homens, mulheres e crianças. Essas duas monjas se empenham em converter o chefe Caliban. A mais velha, Uxa, procura sempre confeccionar roupas para esconder os órgãos sexuais dos índios. Ela é o superego, pois não aceita conviver com aquela nudez explícita.

No momento em que Pitum chega à aldeia dos Galibias, ele é reconhecido pelas monjas como um brasileiro nato, apesar de ele ser preto. No entanto, Uxa tenta enquadrar Pitum, que já havia incorporado os costumes indígenas, como andar pelado. Podemos concluir que as monjas representam a repressão do branco sobre o indígena, a imposição da cultura europeia sobre todas as etnias.

Orelhão (ex-Pitum, ex-tenente Carvalhal), as monjas e os índios seguem suas vidas em novas formas, percebendo as mudanças do mundo da ilha onde vivem:

"A ilha sobe, mais e mais, sobe mais ainda pra todo mundo ver, lá de cima como o mundo é. Ou não é?” Todos olham pasmados. Lá vão os rios correndo transparentes, brilhantes, para o horizonte, onde as águas acumuladas sobem formando o céu azul, estrelado. Voando, voando na ilha voadora, veem, pasmados, nuvens negras recheadas do fogo do trovão: Tupã, Tupã. Subindo, subindo, a ilha mostra, de um lado a cabeceira do mundo na morraria altíssima; e do outro, os pés do mundo, enormes, enormíssimos.”(pg 199)

Darcy Ribeiro nos conduz a uma reflexão sobre os valores que nos foram socialmente estabelecidos. E fico por aqui. “Utopia Selvagem − Saudades da Inocência Perdida. Uma fábula”, de Darcy Ribeiro, é um livro que deve ser lido com a máxima atenção. Espero que esta resenha possa de uma forma ou de outra ajudá-lo na leitura desse livraço, que merece um lugar de HONRA na sua estante.


Data: 03 agosto 2020 | Tags: Romance


< Macunaíma o herói sem nenhum caráter Soldados de Salamina >
Utopia Selvagem. Saudades da Inocência Perdida Uma Fábula
autor: Darcy Ribeiro
editora: Record

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