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O Lobo da Estepe

Herman Hess publicou o “O Lobo da Estepe” em 1927. Esse livro é um mix muito interessante até para os dias de hoje, pois mistura filosofia e psicologia de um autor não conformista, rebelde, que abandonou a sociedade que ele não suportava e por três décadas não havia encontrado um público para as suas histórias. No entanto, “O Lobo da Estepe” encontrou um público diferente entre estudantes universitários que lideravam a revolução cultural na década de 1960. Não foi à toa que um dos hinos da rebelião do rock na década de 1960 – “Born to be wild” – foi gravado por uma banda que descobriu o sucesso depois de mudar o nome de The Sparrows para a famosa banda Steppenwolf.

O romance a princípio não foi muito bem aceito, por exemplo, no Brasil, por uma parte da intelectualidade conservadora que o criticava por descrever detalhadamente o uso de drogas e situações obscenas. Hesse escreveu esse livro enquanto passava por depressão e se sentia sozinho e alienado do mundo. Chegou (segundo relatos) a pensar em suicídio. A semelhança do protagonista Harry Haller com Herman Hesse, ou seja, dois “H” não nos deixa dúvidas.

O romance de Hesse é, do ponto de vista literário, extremamente complexo, imaginativo e inovador para a época em que foi escrito. Para aqueles que ainda não leram, posso dizer que não é um romance fácil. Há muitas ideias contidas no livro sobre autoconhecimento, que influenciou outros autores, entre eles: Paulo Coelho. Sem contar com outros intelectuais americanos.

Vamos ao livro?

A história se passa pouco depois da Primeira Guerra Mundial, provavelmente na década de 1920. O romance é apresentado primeiramente através de anotações, que podemos chamar de diário, de um homem chamado Harry Haller. Essas anotações foram encontradas em seu quarto onde morava, pelo sobrinho da locatária. Através desses escritos, ele faz uma breve introdução no Prefácio do Editor.

O Prefácio é crítico por dois motivos. Primeiro, apresenta aos leitores a estrutura do romance. Este é um manuscrito escrito e deixado para trás por um indivíduo perturbado. O sobrinho adverte os leitores de que o romance consiste nos registros escritos de Harry Haller, preparando-os para a natureza desarticulada e atemporal da obra. A história não possui uma narrativa sustentada por um enredo linear padrão. 

A história também não consiste em elementos da trama na ordem tradicional, ou seja, explicação, ação crescente, clímax, ação decrescente e resolução. Em vez disso, os leitores ficam imaginando quando os acontecimentos ocorrem e quanto tempo dura os eventos descritos. Além disso, os leitores ficam questionando a validade do manuscrito devido ao aviso do próprio sobrinho de que eles são apenas "fantasias parcialmente doentes, belas e pensativas".

O Prefácio do Editor também é importante porque fornece aos leitores a única visão em terceira pessoa de Harry Haller fora do texto. Por outro lado, apresenta aos leitores a visão do sobrinho sobre Haller, o que é importante porque Haller continuamente se descreve como um pária social. É somente através das observações do sobrinho que isso pode ser verificado por nós, leitores.

O narrador se refere a Harry Haller de uma forma cautelosa em outros momentos até como uma pessoa hostil, como se sentisse nele um homem muito incomum, muito diferente de todos os outros. No entanto, a cautela e a hostilidade são substituídas pela simpatia, por uma pessoa que sofre e que não consegue revelar as riquezas de suas forças para o mundo. Essa introversão é descrita como um grande sofrimento que existe no seu interior. É o reflexo do vazio de sua vida.

O sobrinho descreve o Lobo da Estepe como um intelectual distante e "doente". Essa descrição é apropriada, pois o Lobo da Estepe não se associa facilmente a outras pessoas. Sua reclusão se deve à aversão à sociedade burguesa e a tudo o que ela representa. Ele é um elitista, mas também está em conflito. Ele não pode tolerar a conformidade, a mente estreita, o intelectualismo vazio e os prazeres mesquinhos da classe média. No entanto, ele escolhe viver entre a burguesia porque gosta de observá-las. Por exemplo, apesar de sentir desprezo por indivíduos como o sobrinho da locadora, cujo orgulho reside em ter um lar limpo, um emprego bem remunerado e um senso de dever, Haller o observa e conversa com ele porque fica fascinado pela capacidade do sobrinho de encontrar satisfação com essas coisas.

O resto da obra é narrada em primeira pessoa e está dividida em: “Anotações de Harry Haller, só para loucos”, onde o protagonista é descrito como um “lobo da estepe”, expressa seus sonhos, delírios, pensamentos e desentendimentos; “Tratado do Lobo da Estepe, só para loucos”, que é um ensaio filosófico e psicológico que permite ao leitor mergulhar mais profundamente no mundo de Harry e entender sua personalidade. Na dupla disposição, ele se viu na imagem do lobo – um homem selvagem e caótico, guiado por instintos, e ao mesmo tempo como o último cavaleiro do romantismo. 

O tratado, a segunda parte do livro, começa como uma história curta: "Era uma vez certo Harry, chamado de Lobo da Estepe". O tratado afirma que o Lobo da Estepe é incapaz de se contentar porque não se sente totalmente humano. Ele possui duas naturezas – a humana e a natureza de um lobo – e elas estão em constante luta pelo controle de sua personalidade. Sua natureza dual o impede de que ele seja uma pessoa feliz. Ele deseja a liberdade e a individualidade, mas isso só pode ser obtido ao preço do isolamento e da solidão. Como resultado de todos esses conflitos é que ele se torna um suicida potencial.

Ele não tem um emprego fixo. Ele havia economizado dinheiro suficiente para não precisar trabalhar. Ele é um inimigo do poder, mas no banco ele possui muitas ações de empresas industriais, sobre os interesses das quais vive com certa tranquilidade. Harry Haller é um escritor por natureza, totalmente distante dos interesses práticos. Ele nunca trabalha, fica na cama por muito tempo, muitas vezes acorda quase ao meio-dia e passa o tempo entre os livros. 

O grande número de livros são obras de escritores de todos os tempos, de Goethe a Dostoiévski. Às vezes, ele pinta aquarelas, mas sempre de um jeito ou de outro está em seu próprio mundo, não querendo ter nenhuma relação com a grosseria, a falta de cultura reinante que sobreviveu com segurança à Primeira Guerra Mundial.

Ele lê o jornal, lê livros, verifica a correspondência e se perde na rotina monótona. Seu descontentamento com a sociedade, sua insatisfação com a própria vida e sua convicção de que ele tem uma natureza dividida o obrigam a considerar o suicídio.

Harry começa a descrever passeios intermináveis ​​pela cidade, leitura de livros e seu tempo gasto em bares. Durante uma caminhada, ele viu um comercial sobre uma porta que dizia "Teatro Mágico”, onde estava escrito:

Só-Pa-ra Lou-cos! 

O Teatro Mágico é na verdade um lugar afastado de toda a sociedade com suas inúmeras salas temáticas com letreiros absurdamente nonsense, um lugar de entretenimento. É permitido ao Lobo da Estepe ver a si mesmo e suas naturezas. A princípio ele não gosta do que vê.

Depois de algumas noites, ele começa a pensar no teatro e, em seguida, um homem aparece na frente dele carregando uma placa. Harry o para para perguntar sobre o teatro, mas, como o homem não tem tempo, ele apenas deixa um livro desgastado... Sobre quem? Sobre O Lobo da Estepe. É nesse ponto que o leitor descobre que Harry suspeita de que ele é possuidor de uma personalidade múltipla.

Depois de ler o livro, vê que se tratava da a história de sua vida. Enquanto passeia pela cidade, ele se vê em um funeral e avista o homem que lhe dera o livro para ler. Ele pergunta onde poderia se divertir e o homem recomenda um bar.

O romance, na verdade, dá uma guinada positiva quando Harry conhece uma mulher com traços ambíguos, chamada Hermínia. Essa mulher é muito semelhante ao Lobo da Estepe, não apenas porque é o nome feminino de Hermann (Hess), mas parece ser a transfiguração do protagonista em termos de simplicidade, instinto e capacidade de ver os desejos mais profundos de Harry. E em um determinado momento ela diz o seguinte para Harry Haller:

 “- Quero te dizer uma coisa que já sei há muito e que você também sabe, mas que talvez nunca a confessou a si mesmo. Quero dizer-lhe agora o que eu sei de mim, de você, de nosso destino. Você, Harry, sempre foi um artista e um pensador, um homem cheio de fé e de alegria, sempre ao encalço do grande e terno, nunca se contentando com o bonito e o mesquinho. Mas quanto mais despertado pela vida e conduzido para dentro de si mesmo, tanto maior se tornou sua necessidade, tanto mais fundo mergulhou no sofrimento, na timidez, no desespero; mergulhou até o pescoço, e tudo o que no passado conheceu, amou e venerou como belo e santo, toda a sua fé de então nos homens e em nosso elevado destino pode ajudá-lo, tudo perdeu o valor e se fez em pedaços. Sua fé não encontrou mais ar que respirasse. E a morte por asfixia é uma morte muito dura. Não é verdade?

 Eu assentia, assentia e assentia.

- Você trazia no íntimo uma imagem da vida, uma fé, uma exigência; estava disposto a feitos, a sofrimentos e sacrifícios, e logo aos poucos notou que o mundo não lhe pedia nenhuma ação, nenhum sacrifício nem algo semelhante; que a vida não é nenhum poema épico, com rasgos de heróis e coisas parecidas, mas um salão burguês, no qual se vive inteiramente feliz com a comida e a bebida, o café e o tricô, o jogo de cartas e a música de rádio. E quem aspira a outra coisa e traz em si o heroico e o belo, a veneração pelos grandes poetas ou a veneração pelos santos, não passa de um louco ou de um Quixote.  pg 153)

Um bar iluminado por uma luz azul onde um músico de jazz chamado Pablo lhe oferece cigarros e bebidas com substâncias que alteram a mente. Em seguida, ele lhe oferece um “elixir” que lhe permitirá ver uma outra realidade escondida dentro dele, e pela qual ele tanto anseia. Pablo segura um pequeno espelho e ajuda Haller a ver no espelho não apenas um “Lobo da Estepe”, mas uma pessoa com muitos rostos. Assim, com a ajuda do lugar mágico, Harry obtém uma oportunidade de se livrar de sua personalidade anterior, que não é genuína. 

Para se abandonar, o Lobo da Estepe deve olhar nesse espelho pequeno e rir de si mesmo. Ele faz isso e o espelho fica preto e opaco. Pablo saúda a decisão e o convida a olhar no grande espelho na parede. O Lobo da Estepe vê inúmeras imagens de si próprio em todas as idades. Alguns dos Harrys saltam do espelho, enquanto outros seguem em direções diferentes. Harry de quinze anos pula pela porta com a etiqueta.

No Teatro Mágico, Haller se familiariza com outros Hallers, que são familiares e estranhos, além de se ver em todas as idades e status. O lugar mágico faz com que ele compreenda essa pluralidade e, ao mesmo tempo, a integridade que subjaz ao eu. 

O Teatro Mágico é a personificação do tempo e da infinidade místicos, inspira Haller a sonhar com uma possível penetração nele. No entanto, é difícil alcançar esse objetivo porque, para se conseguir tal façanha, é preciso que a pessoa se desvencilhe da seriedade e adquira a propriedade do riso.

Portanto, a metáfora do Teatro Mágico ajuda a entender a essência geral do romance, cuja ideia é a de que todos os seres humanos precisam se esforçar para ter uma perspectiva filosófica e não perceber tudo muito a sério. O riso no romance transformou-se no símbolo dos imortais, iluminação e eternidade. O humor é o instrumento para superar o tempo que ele usa e alcança a transcendência.

Além disso, o maior riso começa na ironia em relação a si mesmo. No Teatro Mágico isso revela a verdade suprema sobre o significado das coisas do mundo. A seriedade é necessária apenas às coisas que merecem, enquanto outras precisam se tornar objetos de riso. Isso significa que apenas as coisas que uma pessoa considera substanciais e significativas merecem os sofrimentos. Pelo contrário, aquelas coisas que não dependem das pessoas devem ser percebidas como piadas da vida que provocam a reação irônica das pessoas.

Harry criou seu próprio mundo solitário, apesar de sua esmagadora busca pela independência, com o tempo se separando cada vez mais do mundo burguês que ele despreza. O sofrimento de Haller terminará não por suicídio, mas somente quando ele puder expandir sua alma para incluir todos os aspectos de sua personalidade – e quando ele aprender a aceitar a vida e as outras pessoas como elas são. Ao fazer isso, ele pode se tornar um dos imortais, aquelas almas que reconhecem a unidade de toda a humanidade e que veem o humor da vida, apesar de sua feiura.

“O falso e infeliz conceito de que o homem seja uma unidade duradoura já é conhecido pelo senhor. Também já sabe que o homem é formado por um número incalculável de almas, por uma multidão de egos. Dividir a unidade aparente do indivíduo nessas numerosas figuras é algo que passa por loucura; a ciência encontrou a designação para esse fenômeno de esquizofrenia. A ciência está certa, até certo ponto, quando afirma que nenhuma pluralidade pode conduzir-se sem uma direção, sem uma certa ordem e agrupamento. Mas, por outro lado, não tem razão ao imaginar ser possível somente uma ordenação única, encadeadora, perpétua, para a multidão de egos subordinados. Esse erro da ciência acarreta consequências desagradáveis; sua única vantagem reside na simplificação do trabalho dos mestres e dos educadores a serviço do Estado, poupando-lhes os trabalhos do pensamento e da experimentação. Em consequência desse erro, muitos homens passam por “normais”, e até mais valiosos membros da sociedade, são loucos incuráveis, e, por outro lado, muitos que passam por loucos são verdadeiros gênios. Por isso é que completamos aqui a imperfeita psicologia da ciência com o conceito a que denominamos a edificação da lama. Aqui demonstramos aos que experimentaram a destruição de seu próprio eu que podem a qualquer instante reordenar os fragmentos e com isso conseguir uma variedade infinita no jogo da vida. Assim como o dramaturgo cria um drama a partir de um punhado de personagens, assim construímos, com as peças de nosso eu despedaçado, novos grupos com novos jogos e atrações, com situações eternamente novas” (pg 195, pg 196)

O Teatro Mágico é um lugar simbólico, onde acontecem eventos místicos fantásticos. Na minha opinião, para Hesse, é um símbolo de dimensões transcendentes da vida humana. Toda a cena da história é dirigida no Teatro Mágico, que torna os eventos irreais acessíveis aos indivíduos e dá a eles a chance de sentir tudo sozinhos. No entanto, nem todo mundo é capaz de compreendê-los porque "o preço da admissão é a sua mente". Portanto, o Teatro Mágico é um lugar simbólico, onde o racional não é significativo, porque o intelecto mágico irracional entra em vigor após a perda de consciência sob a influência de drogas. Como resultado, as portas para a eternidade e o infinito se abrem.

Harry abre muitas portas desse teatro mágico onde havia letreiros escritos e aqui estão as portas que Harry gradualmente se viu abrindo:

Todas as mulheres são tuas! Entrada: Um Marco.

Caçada alegre! Montarias em automóveis.

Guia para a Formação da Personalidade. Êxito garantido.

Quintessência da Arte. Transformação do Tempo em espaço. Lágrimas Ridentes. Gabinetes de Humor.

A Solidão ao Alcance de todos. Valioso substituto para todas as formas de sociabilidade.

Maravilhosa Doma do Lobo da Estepe.

Como se mata por amor.

Execução de Harry.

Falando brevemente de algumas dessas salas, por exemplo: “Caçada Alegre! Montaria em automóveis”. É uma sala onde uma guerra entre homens e máquinas está em curso. A cena apocalíptica, cheia de chamas e morte e derramamento de sangue de uma forma imprudente e gratuita. Ou numa sala onde o letreiro anuncia: “Guia para formação da personalidade. Êxito Garantido”. Lá dentro, um homem que se parece com Pablo pede que coloque peças de sua personalidade no tabuleiro de xadrez e mostra como reconfigurá-las infinitamente. Quando termina, Harry coloca essas peças maravilhosas no bolso.

A terceira porta que Harry escolhe está marcada como “MARAVILHOSA DOMA DO LOBO DA ESTEPE”. Por dentro, Harry observa um homem humilhar um lobo amuado fazendo-o se comportar como um homem. E o homem e lobo trocam de posição. Na quarta sala, Harry entra: "TODAS AS MENINAS SÃO TUAS ", e ele aproveita todas as mulheres que já desejou em sua vida. Cada uma dessas amantes o prepara para seu encontro final com Hermíne.

No Teatro Mágico, Pablo como mediador conhece Harry e o ajuda a ver no espelho não um Lobo da Estepe     , mas uma pessoa com muitos rostos. Assim, com a ajuda do lugar mágico, Harry obtém uma oportunidade de se livrar de sua personalidade anterior, que não é genuína. Como Pablo diz a ele: “Estamos em um teatro mágico; um mundo de imagens, não realidades. Veja que você escolhe pessoas bonitas e alegres e mostra que realmente não está mais apaixonado por sua personalidade altamente questionável ”.

Para resumir, no romance analisado, o autor não sugere o algoritmo da solução do problema, mas mostra apenas as variantes possíveis. A obra de ficção chega à sua conclusão lógica, afirmando que é a vida que traz alívio, enquanto a morte é impotente. Para aprender a viver, é necessário começar a entender e aceitar todos os traços pessoais, rir das bobagens e banalidades do mundo e rir de si mesmo. Portanto, somente através desses estágios, uma pessoa pode alcançar a harmonia interior, apreciar o mundo e alcançar o reino dos imortais. Essas verdades se tornam evidentes para Harry apenas no Teatro Mágico, que encarna o absurdo da vida e, ao mesmo tempo, sugere ações necessárias com a ajuda da sabedoria e do riso. 

Fico por aqui. Apenas acrescentando que Hesse vê que, além da negatividade e suas dificuldades da vida, existe o universo imortal superior que abrange o espírito, a arte e o riso, que apresenta um mundo positivo contra o mundo irracional do lobo. Este não é o livro de um homem desesperado. É um livro de um homem que renascerá. Um livro que merece um lugar de HONRA na sua estante.


Data: 20 fevereiro 2020 | Tags: Romance


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O Lobo da Estepe
autor: Hermann Hesse
editora: Record
tradutor: Ivo Barroso

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