A Rainha Ginga
Quando acabei de ler a última página do livro “A Rainha Ginga”, do escritor José Eduardo Agualusa, confesso que senti um gosto de “quero mais”. O livro é ótimo. E eu, que já gosto de romances históricos, fiquei fascinado com o relato do padre Francisco José da Santa Cruz (personagem fictício criado por Agualusa) sobre esse personagem real. Não é à toa que o livro está tendo uma repercussão muito positiva. As pessoas estão maravilhadas. Falo isso em função da minha profissão de livreiro, pois tenho contato direto com o público leitor. E foi esse público que me fez ler essa obra.
Como já disse, “A Rainha Ginga” não é um livro sobre um personagem fictício. Fala sobre um personagem real. Ela de fato existiu. E sua importância histórica repercute na África até os dias de hoje. Foi mais do que uma rainha.Transformou-se em um mito cultuado por alguns intelectuais na Europa e nos EUA.
Existe uma unanimidade entre os historiadores europeus e americanos que estudam a África em classificar Dona Ana de Sousa ou Ngola Ana Nzinga Mbande ou Rainha Ginga (nomes que foram dados a essa rainha) como uma mulher brilhante, uma mulher com força de homem, uma heroína do continente, além de ser uma hábil negociadora, uma libertária. Sua força como sedutora rainha não media esforços, possuía um harém de 50 homens, aos quais se referia como as “minhas mulheres”, e os vestia como se fossem suas concubinas.
O livro é baseado em fontes do autor, que, a partir dessas pesquisas vai construindo o enredo. Ginga nasceu em 1582, filha do rei Ginga Mbandi Ngola Kiluanji. Foi rainha do povo Bundos, um grupo do povo Bantu, que hoje pertence à República de Angola, anteriormente conhecido como Ndongo-Ngola, depois Reino de Angola. Sua história começa com a morte de seu pai e a luta sucessória com seu irmão Ngola Mbandi, que já era rei antes do pai morrer. Seu irmão ambiciona suas terras. Com a morte do sobrinho de Ginga, por Ngola Mbandi, seu irmão que não quer herdeiros, ela organiza um pequeno exército, e assalta fronteiras do reino do irmão apoderando-se de gados, mulheres, homens, marcando seu estilo ameaçador.
Com os portugueses batendo as portas atrás de terras e de escravos, Ginga obtém uma trégua com seu irmão Ngola Mbandi e vai negociar com os portugueses, tornando-se embaixadora em Luanda. Foi recebida pelo governador geral. Em troca de terras, Ginga deixa-se batizar no catolicismo e se converte, recebendo o nome de D. Ana de Sousa. Sua eloquência, fluência de raciocínio e propriedade de linguagem impressionam de tal forma os portugueses que encantam o padre Francisco José da Santa Cruz, o narrador da história, que a vê como algo sobrenatural, uma pessoa excepcional com uma mente brilhante, uma revelação verdadeiramente talentosa de superioridade africana.
Com o tratado de paz desrespeitado pelos portugueses, uma situação de desordem reina em Ngola. A guerreira, diante da situação caótica, mata seu irmão e comanda a resistência à ocupação das terras de Ngola e Matamba. Não conseguindo a paz com os portugueses, renega a fé católica juntamente com o narrador, o padre brasileiro Francisco José da Santa Cruz, que descobre um mundo totalmente novo e começa a questionar sua própria fé quando se apaixona por uma das mulheres da corte da Rainha Ginga, renunciando ao seu ofício como padre a tornando-se o tradutor da rainha. O Tribunal do Santo Ofício considera o padre Francisco José da Cruz um homem morto.
Ela torna-se a rainha do Ndongo e de Matamba e funda o modelo de resistência e de guerra que constituía o quilombo. Com uma política agressiva, a rainha Ginga monta uma poderosa coalizão com diversos estados africanos, e comanda uma resistência que será reforçada com os holandeses da Companhia das Índias Ocidentais.
Fico por aqui. Mas antes vale um momento em que o autor nos apresenta um diálogo em que o narrador Francisco José da Santa Cruz estabelece com Maurício de Nassau após todo o ocorrido dessa história cheia de aventuras:
“Uma tarde conversei sobre esta tragédia (ocorrida com os holandeses na ilha de São Tomé), e sobre outras idênticas, com João Maurício de Nassau. Disse-me então:
- Talvez nos tenhamos enganado ao pensar que a natureza não mais seria mais madrasta para nós, brancos, os ocidentais, do que para os portugueses e os levantinos. A verdade é que os portugueses sempre foram mais africanos que os europeus.” (pg. 196)
O livro é permeado por histórias, lendas e mitos, tudo isso reunido nesse romance delicioso, no qual quem ganha é o leitor
“Há mentiras que resgatam e há verdades que escravizam.” (pg. 115)
“A Rainha Ginga”, de José Eduardo Agualusa, é um livro simplesmente genial. Um livro que merece as estantes de todo o mundo ocidental. Direcionar nossos olhares para a África e suas histórias é o convite que o autor nos faz. E você não pode perder o bonde dessa história. Livraço!!
“... o cético acha que se o final é feliz, talvez ainda não seja o final. O que tem fé sabe que não existe final – tudo são começos.” (pg. 202)