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Submissão

Sem dúvida alguma recomendo este livro para aqueles que não gostam apenas de ler uma boa história, mas que apreciam também uma boa reflexão. O livro “Submissão”, de Michel Houellebecq, me surpreendeu e muito. De cara posso adiantar a todos vocês que nunca me diverti tanto lendo um livro. O lado provocador e cínico de Houellebecq é um fato. Se o leitor deste espaço cair no erro de ler e interpretar ao pé da letra o que está escrito, vai se dar mal.

O romance é muito engraçado, o que nos tempos de hoje podemos dizer que é um fato raro. Por que ele é engraçado? É um humor autodepreciativo. O livro é bem-sucedido porque incomoda, porque cria um mal-estar, porque obriga à reflexão. Nas primeiras páginas já podemos sentir o seu humor quando François, o narrador, diz:

 

“Os estudos universitários no campo das letras não levam, como se sabe, praticamente a nada, a não ser, para os estudantes mais dotados, a uma carreira de ensino universitário no campo das letras – em suma, temos uma situação um tanto cômica de um sistema sem outro objetivo além de sua própria reprodução, acompanhado por uma taxa de não aproveitamento superior a noventa e cinco por cento. Esses estudos, no entanto, não são nocivos e podem até  apresentar uma utilidade marginal. Uma moça que procure um emprego de vendedora na Céline ou na Hermés deverá naturalmente, e em primeiríssimo lugar, cuidar de sua aparência; mas uma graduação ou um mestrado em letras modernas poderá constituir um trunfo secundário que garanta ao patrão, na falta de competência mais aproveitáveis, uma certa agilidade intelectual que pressagie a possibilidade de uma evolução na carreira – a literatura, além do mais, vem desde sempre acompanhada de uma conotação positiva no ramo da indústria do luxo” (pg. 14)


Os primeiros livros de Michel Houellebecq, segundo alguns amigos altamente confiáveis me relataram, eram para cortar os pulsos.  “Partículas Elementares” e “Plataforma”, já publicados no Brasil, por exemplo, chegam a ser sufocantes. “Mapa e território” foi o livro que levou o autor, em 2010, ao Prêmio Goncourt, o mais prestigioso da literatura francesa, e esse livro não tem o peso asfixiante dos anteriores, ele é mais “relax”. Como eu já disse, não li nenhum deles.

O livro “Submissão” foi publicado na França no mesmo dia em que assassinos islâmicos fanáticos dizimaram o conselho editorial da revista satírica francesa Charlie Hebdo. O superaquecido debate sobre o fundamentalismo islâmico e o terror produzido na Europa e em outros lugares tornaram-se indissociáveis da história distópica de Houellebecq, que se passa em um futuro nem tão longe assim na França, em que um presidente muçulmano eleito desencadeia grandes mudanças na sociedade, que passar a ficar longe dos ideais ocidentais.

Este livro, que tornou-se um “case literário”, marca uma coincidência excepcional em que a política e a arte se tocam simultaneamente. Orwell, com menos humor, imaginou “1984”, com elementos stalinistas. Huxley, em seu livro “Admirável Mundo Novo”, levou a lógica de uma sociedade hedonista e científica a um tempo mais distante, um lugar onde o prazer seria total e a paixão, desconhecida. Houellebecq nos aponta para a islamização na França por meios legítimos, ou seja, através de eleições.

A abordagem desse tema polêmico (o Islã) é permeada de humor ácido. O ritmo das frases do personagem central, François, é encantatório no seu desgosto pela vida, e a comicidade do autor é irresistivelmente sombria e melancólica. Ele escolhe a sátira para promover a causa da iluminação. É a iluminação de pessimismo, não do otimismo.

Vamos ao livro? O narrador, François, é um acadêmico de meia-idade, e o romance começa com uma reflexão sobre o escritor Joris-Karl Huysmans (1848-1907), objeto de sua tese de doutorado. Huysmans é contemporâneo de Zola e Mallarmé, cujas crenças variaram entre o niilismo, satanismo e catolicismo como sendo o objeto de sua tese de doutorado.

Especificamente no livro “Às avessas”, de Huysmans, o personagem Des Esseintes, um decadente, rico, frívolo, alheio aos problemas do mundo, vê a decadência de sua família ligada à nobreza como um sintoma da decadência da civilização francesa sob a modernidade implacável. Houellebecq faz o seu personagem François estabelecer uma relação interessante entre o século XIX, através da vida e obra de Huysmans, e o nosso tempo.

Ao expor a decadência da França através dos seus políticos pobres de ideias e ideais, da despolitização das massas, do fim de todas as ideologias, da agonia dos partidos políticos, da industrialização, da criminalidade e dos meios de informação sob suspeita, vemos um cenário não tão distante da realidade, e fica difícil dizer que Houellebecq esteja errado em seu diagnóstico. O autor faz Rediger, um amigo de François, dizer:

 

 

“Na base dos mimos, carícias e cafunés vergonhosos nos progressistas, a Igreja Católica se tornara incapaz de se opor à decadência dos costumes. De rejeitar claramente, vigorosamente, o casamento homossexual, o direito ao aborto e o trabalho das mulheres. Era preciso se render à evidência: tendo chegado a um grau de decomposição repugnante, a Europa ocidental já não estava em condições de se salvar por si mesma – assim como não estivera Roma antiga no século V de nossa era. A chegada maciça de populações imigrantes impregnadas de uma cultura tradicional ainda marcada pelas hierarquias naturais, pela submissão da mulher e pelo respeito devido aos mais velhos constituía uma chance histórica para o rearmamento moral da Europa, abria a perspectiva de uma nova idade do ouro para o velho continente. Às vezes essas populações eram cristãs; mas via de regra, devia reconhecer muçulmanas.” (pg. 232)


Em um cenário em que satiriza e ao mesmo tempo joga com possiblidades nem tão impossíveis assim, Houellebeccq visualiza uma conjuntura política polarizada entre a Frente nacional (partido da extrema direita de Marie Le Pen) e o recém-formado partido Fraternidade mulçumana, que visa representar os mulçumanos franceses. A Fraternidade Mulçumana é liderada por Mohamed Ben Abbes, um homem afável, não radical e que vence os socialistas e a ala de centro-direita no primeiro turno das eleições por uma pequena margem de pontos. No entanto, para conseguir a vitória no segundo turno das eleições terá que negociar com os partidos que não conseguiram se eleger para garantir a hegemonia.

O presidente Mohamed Bem Abbes propõe uma aliança com todos os partidos, ou seja, com os socialistas e o partido de centro-direita, para barrar a Frente Nacional. E como se dará essa aliança? Simples, querem saber? Infelizmente vou ter que parar por aqui.

“Submissão” é um livro islamofóbico? Não é. É uma sátira ao Iluminismo Francês, ao secularismo e à decadência da França. Houellebecq não tem os poderes de Cassandra cujas previsões pessimistas realizavam-se à luz dos fatos.

Mas convenhamos que, para as pessoas que viveram e prosperam em determinado sistema social, imaginar o ponto de vista dos que nunca tendo tido nada a esperar desse sistema, encaram sua destruição sem nenhum terror especial (trecho tirado do livro “Submissão”). Isso é um fato a se pensar.

As premonições desse “enfant terrible” francês podem parecer um soco na cara do leitor, mas tudo vai depender do olhar de cada um. Afinal, “A ideia assombrosa e simples, jamais expressada antes com essa força, de que o auge da felicidade humana reside na submissão mais absoluta” (pg219)

Você concorda com essa máxima? Houellebecq é um romancista muito hábil, que diz coisas polêmicas e inteligentes, muito difíceis de serem ignoradas. Por isso, indico “Submissão”, um livro que merece um lugar de destaque na sua estante.

 


Data: 08 agosto 2016 | Tags: Sátira


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Submissão
autor: Michel Houellebecq

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