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O mestre e margarida

A relação entre os homens e o diabo encontra-se na literatura em diversos momentos. Na epígrafe já temos uma citação: “ - Quem é és afinal? - Sou a parte da força que eternamente deseja o mal e eternamente faz o bem”.

O romance é fortemente influenciado por Goethe. Parte do seu brilho está nos diferentes níveis em que pode ser lido, como pastelão hilário, alegoria filosófica profunda, mordendo a sátira sócio-política ao sistema soviético, mas também através da superficialidade e vaidade embutidas na vida moderna em geral.

Explico: o humor contido nessa obra é um exemplo de que em situações, mesmo as de mais extrema crueldade, podemos encontrar a capacidade de fazer rir. A possibilidade de fazer humor na era Stalin não devia ser algo fácil, levando-se em conta a crescente capacidade de vigilância, delação, censura prisão, exílio, execução em massa, que dera o tom durante os seus momentos de Czar no comunismo.

O mestre e Margarida não podemos dizer que foi um diabo que fez de Moscou um caos, mas uma trupe. No romance de Bulgákov existem três histórias que se desenvolvem em momentos diferentes, ele utiliza a estrutura de uma história dentro de outra história, com três linhas entrelaçadas que são mutuamente esclarecedores: uma visita a Moscou por Satanás; uma história de amor faustiana de um escritor e sua Margarida; e da condenação de Jesus por Pilatos até sua execução.

A história começa com Mikhail Aleksándrovitch Berlioz, editor de uma volumosa revista de arte e presidente do conselho administrativo de uma das maiores associações literárias de Moscou, abreviadamente denominada Massolit, conversando com o poeta Ivan Nikoláievitch Ponyriov sobre a questão da existência real de Jesus, quando subitamente o diabo aparece para os dois e se junta à conversa, o suficiente para ser considerado um "estrangeiro".

Existe uma relação complexa entre Jerusalém e Moscou. Bulgakov para fugir da censura do regime Stalinista utiliza seu talento narrativo e estilístico adotando uma estratégia no mínimo curiosa. Inverte a Moscou revolucionária dando a esse lugar caracteríristicas mitológicas por onde bruxas e demônios circulam pelo céu dessa cidade cenário.  Em segundo, a Jerusalém, dos tempos de Jesus ganha um rigor histórico (reforçado pela decisão do autor de usar a grafia original dos nomes — Yerushalaim, Yeshuaha-Notzri). Para entender essa inversão de uma Moscou mitológica e uma Jerusalém histórica basta entender que na Jerusalém histórica aparecem as condenações sumárias, complôs políticos, torturas. Na Moscou mitológica, as prisões de inocentes passam por desaparecimentos misteriosos, mas não por questões políticas como de fato aconteceu, mas como atos de bruxaria.

Os temas de covardia, confiança, traição, a abertura, curiosidade intelectual e redenção são proeminentes. A Jerusalém histórica é mostrada por Wooland, que desafia o ateísmo de ambos. Nesse ponto, o leitor defronta-se com a introdução da história de Pilatos e a condenação de Jesus. Wooland conta que já discutiu aquele ponto com o próprio Kant, filósofo e garante que Jesus existiu. E que sabe disso porque viu a audiência do Nazareno com Pôncio Pilatos, episódio que passa então a narrar em detalhes. Na medida em que a narração de Wooland vai se materializando, uma estranha sensação de irrealidade aparece para Berlioz e Ivan, que pareciam ter voltado de um sonho.

O ponto alto da primeira parte é a apresentação no Teatro de Variedades, que começa com uma chuva de dinheiro sobre a platéia e farta distribuição de roupas e jóias para as mulheres. Tudo ilusão, como o diabo gosta — a “revelação total” prometida expõe não os segredos da magia negra, mas a hipocrisia e a ganância do público. Os homens saem sem dinheiro, e as mulheres que adquiriram suas roupas sofisticadas aparecem peladas após a apresentação atrás de um táxi.

Bulgákov introduz um dos temas centrais do livro, sugerido nas conversas entre Pilatos e Jesus sobre a natureza da bondade. Essa reflexão é elaborada ao longo de toda a obra, em especial no discurso de Wooland no desfecho da trama, quando Bulgákov, num último ato de ironia, faz Jesus e o diabo expressarem, em momentos distintos, uma mesma visão: não há Bem ou Mal absoluto, e covardia é a pior das fraquezas humanas.

A música permeia algumas ações no livro, as explosões roucas da polonaise da ópera Yevgeny Onegin Aleluia, de Vincent Youmans, aparece em toda a história. Ó deuses, deuses... Este refrão, que aparece como uma espécie de fio condutor de dez vezes ao longo do romance é uma interpretação da citação de ópera de Giuseppe Verdi, Aida.

O tom da narrativa oscila livremente entre o jargão burocrático soviético, o tom sarcástico e o lírico. É uma obra-prima que Zoia Prestes soube traduzir com muita maestria. Recomendado para não-stalinistas!

E quando terminar de ler esse livro, talvez vc possa fazer o memo link que eu fiz com os Rolling Stones. E fica uma pergunta: não estariam as travessuras de  Wooland reencarnadas, décadas depois, nesta música?

 

 

 


Data: 08 agosto 2016 | Tags: Sátira


Um leão chamado Christian >
O mestre e margarida
autor: Mikhail Bulgákov
editora: Alfaguara
tradutor: Zoia Prestes

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