Os Bruzundangas
No dia em que você tomar coragem e ler “Os Bruzundangas”, de Lima Barreto, tomará um susto quando ler suas críticas à Primeira República. Você chegará à conclusão (como eu cheguei) de que não mudamos muita coisa desde aqueles tempos para os dias de hoje. Está tudo ali. Nossas mazelas, nossos vícios, o nosso atraso, eles não acontecem somente nos dias de hoje. Vem de muito tempo. O livro foi publicado em 1923, suas sátiras são deliciosas e você vai rir muito. E chegará a conclusão de que somos viciados em nossos recorrentes erros.
O livro “Os Bruzundangas” é um diário de viagem de um brasileiro que morou uns tempos na Bruzundanga, uma jovem República que lutava num ambiente de colapso do modelo escravocrata, deposto em 1889, embora ainda persistisse o predomínio dos grupos ligados à grande lavoura. Um país onde proliferavam elites incultas que dominavam o povo, racismo, pobreza, obsessão por títulos doutorais, literatura cheia de enfeites linguísticos.
“A Bruzundanga fornece matéria de sobra para livrar-nos, a nós do Brasil, de piores males, pois possui maiores e mais completos. Sua missão é, portanto, como a dos ‘maiores’ da Arte, livrar-nos dos outros naturalmente menores” (pg 7)
Bruzundangas nos é apresentando como tendo um território rico em recursos naturais, mas habitado por um povo ignorante e com mania de grandeza, e administrado por governantes incompetentes que só se preocupam em encantar os estrangeiros e enriquecer a si mesmos e aos seus vassalos. A nobreza de Bruzundangas se divide em dois grandes ramos: o ramo da Toga e o da Espada, mas também existe a nobreza doutoral.
O livro faz uma crítica à nossa Constituição Republicana, fala de propinas e transações obscuras, fala sobre políticos e eleições. Critica os privilégios da nobreza, o poder das oligarquias rurais, dos sanguessugas do erário, desigualdades, saúde e educação. Mas, se você pensa que o livro é uma análise de cunho sociológico, fique tranquilo. O livro passa longe disso. A prosa de Lima Barreto tem um estilo ágil e sagaz e ao mesmo tempo caricatural e zomba de nossos erros. Mas fique tranquilo, o país não é o Brasil, é Bruzundanga.
Um Grande Financeiro, o capítulo I do texto satírico, mostra como se compõe a classe política na Bruzundanga (Câmara, Senado, Deputados) e como lá também isso é uma cópia de modelos europeus. Enfatiza que, entre senadores e deputados, a única diferença existente é o tempo de duração do mandato.
“A República dos Estados Unidos da Bruzundanga tinha, como todas as repúblicas que se prezam, além do presidente e juízes de várias categorias, um Senado e uma Câmara de Deputados, ambos eleitos por sufrágio direto e temporários ambos, com certa diferença na duração do mandato: o dos senadores, mais longo; o dos deputados, mais curto.” (pg 29)
Mas chamo a sua atenção, querido frequentador deste site, que o compromisso que esse país imaginário tem com o atraso é um vínculo orgânico. Os oportunistas, os apaniguados, retrógados e escravocratas, que sempre estiveram de costas para o povo, estão no imaginário dos nativos de Bruzundanga. E quem são esses nativos de Bruzundangas? São aqueles que sempre se beneficiam dos cargos públicos. Não há políticos, doutores que não se considerem no direito de deixar aos filhos, netos, sobrinhos e primos gordas pensões pagas pelo Tesouro da República. O resto, leia-se a população, fica apenas com os impostos.
A ansiedade existencial de Lima Barreto e sua crítica mordaz trazem as marcas de um mulato pobre e marginalizado, que não teve problema algum de consciência, ao representar análises e descrições da dominação burguesa. Com a chegada da República, o Brasil mudou(?). Mudou a forma de governo, trocou a bandeira, ganhou uma Constituição nova, separou a Igreja do Estado. Só uma coisa não foi alterada: a estrutura social e econômica. Quanto a esse ponto, tudo continuou como sempre foi. Os chefões eram os mesmos de antes, os ricos mantiveram sua exploração, e os pobres a miséria.
Na verdade, a Proclamação da República foi um movimento militar, e não popular. Além de alguns poucos que aplaudiram um regime que ninguém não tinha a menor ideia o que significava, não houve manifestações populares na noite de 15 de novembro de 1889. Instalava-se, pois, por meio de um acontecimento inesperado, rápido, sem derramamento de sangue e puramente militar, mas um regime que excluía o povo.
Os dois primeiros presidentes foram militares, Deodoro da Fonseca e Marechal Floriano Peixoto. O terceiro, Prudente de Morais, um civil, e chegou ao poder graças à oligarquia cafeeira. Época em que o Brasil começou a ter problemas com credores de sua dívida externa, os quais exigiam controle dos gastos públicos, diminuição da inflação, restrição ao crédito às empresas e aumento de impostos. No governo Campos Sales, foi institucionalizada a chamada “política dos governadores”, sistema de dominação política que permitia às oligarquias se perpetuarem e se sucederem no poder sem riscos. Embora houvesse independência entre os poderes, o Executivo federal foi fortalecido.
Quando se estabeleciam as maiorias parlamentares nos legislativos estaduais e federal, tinham que apoiar a política do Executivo (ou seja, o governo central). As oposições ficavam engessadas, tendo uma participação marginal, sem qualquer chance de disputar o poder. O Executivo não ouvia as oposições estaduais. Em troca, as bancadas que iam para o Legislativo federal teriam que apoiar os projetos do presidente da República.
No capítulo cujo título é “Um Mandachuva”, nosso viajante explica que o critério de eleição para presidente pauta-se pela mediocridade, especialmente entre advogados indicados por doutores medíocres, membros de uma nobreza doutoral.
“(...) na Bruzundanga, em geral, o mandachuva é escolhido entre os advogados, mas não julguem que ele venha dos mais notáveis, dos mais ilustrados, não: ele surge e é indicado dentre os mais néscios e os mais medíocres. Quase sempre, é um leguleio da roça que, logo após a formatura, isto é, os primeiros anos de sua mocidade até aos quarenta, quando o fizeram deputado provincial, não teve outro ambiente que a sua cidadezinha de cinco a dez mil habitantes, mais outra leitura que a dos jornais e livros comuns da profissão – indicadores, manuais, etc.; e outra convivência que não a do boticário, do médico local, do professor público e de algum fazendeiro menos dorminhoco, com os quais jogava o solo, ou mesmo o “truque” nos fundos da botica.” (pg 76)
Voltemos a falar de Bruzundanga, dessa vez de seus doutores, que são os que referendam essa ordem irracional e injusta desta terra tão cheia de contrastes. Eles vivem na ignorância como os demais cidadãos, mas tem uma diferença: eles têm um diploma, o que lhes permite almejar e conquistar cargos públicos, gozando de privilégios típicos de uma “celebridade olimpiana” concedidos pela benevolência do Estado e legitimados pela reverência da sociedade. A nação vive através de uma divisão de aparências, sendo o título de doutor uma verdadeira pedra filosofal.
“Não que todo o escritor bruzundanguense pertença a semelhante rito literário; os mais pretensiosos, porém, e os que se têm na conta de sacerdotes da Arte, se dizem graduados, diplomados nela. Digo — "caracteriza", porque, como os senhores verão no correr destas notas, não há na maioria daquela gente uma profundeza de sentimento que a impila a ir ao âmago das cousas que fingem amar, de decifrá-las pelo amor sincero em que as têm, de querê-las totalmente, de absorvê-las. Só querem a aparência das cousas. Quando (em geral) vão estudar medicina, não é a medicina que eles pretendem exercer, não é curar, não é ser um grande médico, é ser doutor; quando se fazem oficiais do exército ou da marinha, não é exercer as obrigações atinentes a tais profissões, tanto assim que fogem de executar o que é próprio a elas. Vão ser uma ou outra cousa, pelo brilho do uniforme. Assim também são os literatos que simulam sê-lo para ter a glória que as letras dão, sem querer arcar com as dores, com o esforço excepcional, que elas exigem em troca. A glória das letras só as tem, quem a elas se dá inteiramente; nelas, como no amor, só é amado quem se esquece de si inteiramente e se entrega com fé cega. Os samoiedas, como vamos ver, contentam-se com as aparências literárias e a banal simulação de notoriedade, umas vezes por incapacidade de inteligência, em outras por instrução insuficiente ou viciada, quase sempre, porém, por falta de verdadeiro talento poético, de sinceridade, e necessidade, portanto, de disfarçar os defeitos com pelotiquices e passes de mágica intelectuais. Tendo convivido com alguns poetas samoiedas, pude estudar um tanto demoradamente os princípios teóricos dessa escola e julgo estar habilitado a lhes dar um resumo de suas regras poéticas e da sua estética” (pg 17)
Desse lugar, o narrador-viajante descreve a educação, a economia confusa, a legislação, a política, o processo democrático, a ciência, o exército. Bate forte na República Velha, escrutina o estilo de ensino, debocha do modelo religioso, escarnece a Academia Brasileira de Letras, menospreza o valor do bacharelismo e o título doutoral e, finalmente, denuncia a profissionalização da política.
A aristocracia doutoral é constituída pelos cidadãos formados nas escolas, chamadas superiores, que são as de medicina, as de direito e as de engenharia. Em Bruzundanga, um cidadão que possui tão nobre título (doutor) obtém privilégios especiais através das leis consignadas nos costumes.
“Há nessa nobreza doutoral uma hierarquia como em todas as aristocracias. O mandarinato chinês, ao qual muito se assemelha essa nobreza da Bruzundanga, tem os seus mandarins botões de safira, de topázio, de rubi, etc. No país em questão, eles não se distinguem por botões, mas pelos anéis. No intuito de não fatigar os leitores, vou dar-lhes um quadro sintético de tal nobreza da Bruzundanga com a sua respectiva hierarquia colocada em ordem descendente. Guardem-no bem.
Ei-lo, com as pedras dos anéis: Médicos (Esmeralda)
Advogados (Rubi)
Engenheiros (Safira)
Engenheiros militares (Turqueza)
Doutores Engenheiros geógrafos (Safira e certos sinais no arco do anel)
Farmacêutico (Topázio)
Dentista (Granada)” (pg 43)
Lima Barreto, através de personagens caricatos que habitavam a vida política de sua época, como Venceslau Brás e o Barão do Rio Branco, descasca a sua ironia mais ferina. Lima Barreto fala abertamente da importância que é dada aos “sábios”, chamados de doutores, algo equivalente a um título da antiga monarquia.
“Sobre os sábios (a desenvolver)
Os engenheiros, tanto os civis como os militares, mais estes que aqueles, julgam-se geométricas. Não o são absolutamente; os melhores são simples professores. Os médicos da Bruzundanga imaginam-se sábios e literatos. Pode-se afirmar que não são nem uma cousa nem outra. É sábio, na Bruzundanga, aquele que cita mais autores estrangeiros; e quanto mais de país desconhecido, mais sábio é. Não é, como se podia crer, aquele que assimilou o saber anterior e concorre para aumentá-lo com os seus trabalhos individuais. Não é esse o conceito de sábio que se tem em tal pais. Sábio, é aquele que escreve livros com as opiniões dos outros. Houve um que, quando morreu, não se pôde vender-lhe a biblioteca, pois todos os livros estavam mutilados. Ele cortava-lhes as páginas para pregar no papel em que escrevia os trechos que citava e evitar a tarefa maçante de os copiar. Há mais de século que se estudam nas suas escolas superiores, as altas ciências; entretanto os sábios da Bruzundanga não têm contribuído com cousa alguma para o avanço delas. Em toda a parte, os sábios, de qualquer natureza, são homens de recursos medianos, modestos, retraídos, pouco mundanos, mesmo quando ricos. Na Bruzundanga, não; os sábios são nababos, têm carros e automóveis de luxo, palácios; freqüentam teatros caros, durante temporadas completas; dão festas suntuosas nos seus hotéis, etc., etc. Não há médico afreguesado que não seja considerado um sábio pela gente da Bruzundanga, e, para firmar tal reputação, não fabrique uma compilação escrita em sânscrito. O médico sábio não pode escrever em outra língua que o sânscrito. Isto lhe dá foros de literato e aumenta-lhe a clínica. Com a vida dos sábios da Bruzundanga ninguém poderia escrever Os Mártires da Ciência. Têm eles a precaução preliminar de inaugurarem a sua sabedoria com um casamento rico.” (pg 159)
Fico por aqui, mas tem muito mais. “Os Bruzundangas”, de Lima Barreto, continua atual. Sofremos dos mesmos males. Nossa República foi um fato político relevante, com certeza. O único problema é que nunca conseguimos sair do atoleiro de nosso subdesenvolvimento estrutural e mental.
“Os Bruzundangas” é um livro que merece um lugar de HONRA na sua estante.