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A Alma Encantadora das Ruas

“A Alma Encantadora das Ruas” foi escrito por um dos maiores cronistas da cidade do Rio de Janeiro durante o governo Rodrigues Alves, quando ocorreu uma verdadeira revolução urbana na cidade. O prefeito Pereira Passos, cuja reforma começou em 1903, ficou conhecido pelo apelido ”bota abaixo”, pois muitas casas foram demolidas para se fazer uma nova cidade. Nome esse inspirado pelo Barão de Haussman, o superprefeito de Paris, que remodelou a cidade e ficou conhecido como “o artista da destruição”. Remodelou Paris, tornando essa cidade uma obra de arte, uma autêntica cidade-luz.

O poeta francês Charles Baudelaire viveu na Paris oitocentista durante a reforma urbana, tendo seus melhores trabalhos pertencidos exatamente ao período em que, sob a autoridade de Napoleão III e a direção de Haussmann, a cidade estava sendo remodelada e reconstruída de forma sistemática. Viveu as tensões dessa transformação urbana através da flânerie, ou seja, se deixam levar pela multidão, tornam-se incógnitos, fazem da rua a sua casa, usufruindo de seus prazeres e horrores, deixando-se embriagar na solidão populosa do labirinto da cidade.

Assim como o prefeito de Paris, a ideia de Pereira Passos não era apenas sanear a cidade do Rio, seu projeto também era ambicioso. E qual era o seu projeto? Modificar o modo de vida da população carioca, introduzindo novos hábitos e costumes. Durante o período em que foi prefeito, estabeleceu várias medidas restritivas em relação ao comportamento do cidadão nos espaços públicos.

Tudo tem um preço e um deles foi que várias habitações foram demolidas, como os cortiços e as ruas estreitas, que foram substituídas por grandes avenidas, como a Avenida Central que hoje se transformou em Rio Branco.

E é com um olhar típico de quem conhece as ruas que João do Rio apreende a psicologia urbana e o espírito dessa época, com o olhar fixo no presente como um espectador deslumbrado, captando as novas relações sociais que se desenham naquela cidade que mais tarde seria chamada de Cidade Maravilhosa. O livro conta esse período de uma cidade em transformação, no qual coabitam personagens e espaços que ao mesmo tempo sobrevivem, mas já não era como antes.

João Paulo Alberto Coelho Barreto, o João do Rio, é conhecido e apreciado por críticos e leitores por compor um dos mais válidos retratos de uma época: o universo urbano do Rio de Janeiro no contexto de efervescências da Belle Époque. O autor carioca escreveu peças de teatro, romances e contos. Entretanto, sua produção mais vasta foram as crônicas escritas para a imprensa, onde o jornalismo e a literatura interagem de uma forma absolutamente original. Dialogando com os limites propostos pela crônica e a reportagem, temas variados ligados ao imaginário da cidade múltipla e provisória são recorrentes em seus textos.

João do Rio, com a chegada da modernidade, acrescenta em sua escrita jornalística e midiática o discurso literário, revolucionando o fazer jornalístico, revelando uma nova consciência crítica. A duplicidade do narrador que adere às máscaras ora do dândi frequentador dos requintados salões, ora do flâneur das escuras ruas do submundo carioca suscita discussões fecundas que reivindicam lugar de direito no estudo de sua obra.

Para João do Rio, flanar é tão somente ter “o vírus da observação ligado ao da vadiagem”:

“Para compreender a psicologia da rua não basta gozar-lhe as delícias como se goza o calor do sol e o lirismo do luar. É preciso ter espírito vagabundo, cheio de curiosidades malsãs e os nervos com um perpétuo desejo incompreensível, é preciso ser aquele que chamamos flâneur e praticar o mais interessante dos esportes — a arte de flanar”. (pg 27)

Criando novos usos para o tempo, o flâneur não se preocupa com o relógio, deixando que a vertigem o guie por caminhos que nem mesmo sabe onde vão dar. A sua meta é o novo e, com ele, pode-se deparar tanto com uma avenida, quanto uma esquina ou num beco. Sem o andar objetivado do trabalhador – que vai de manhã para o trabalho, que volta à noite para casa e que no dia seguinte recomeça tudo de novo –, o flâneur simplesmente vagueia pela cidade, colhendo aqui e ali impressões que vão formar quadros de contornos nem sempre nítidos.

O ócio transporta o flâneur para um mundo de sonhos em que o “eu” mistura-se com a multidão, tão bem ilustrado nas palavras de Fausto Fawcett: “O ego dissolvido na matéria em movimento”, fazendo com que haja uma fusão entre a imagem da cidade e a imagem da memória. Nessa viagem para dentro do “eu”, ele volta enriquecido com as experiências interiores – resíduos de uma memória coletiva –, que farão do seu percurso pela cidade uma aventura em que o novo se abre em infinitas possibilidades.

“Talvez. Flanar é a distinção de perambular com inteligência. Nada como o inútil para ser artístico. Daí o desocupado flâneur ter sempre na mente dez mil coisas necessárias, imprescindíveis, que podem ficar eternamente adiadas. Do alto de uma janela como Paul Adam, admira o caleidoscópio da vida no epítome delirante que é a rua; à porta do café, como Poe no Homem da Multidões, dedica-se ao exercício de adivinhar as profissões, as preocupações e até os crimes dos transeuntes. É uma espécie de secreta à maneira de Sherlock Holmes, sem os inconvenientes dos secretas nacionais. Haveis de encontrá-lo numa bela noite numa noite muito feia. Não vos saberá dizer donde vem, que está a fazer, para onde vai. Pensareis decerto estar diante de um sujeito fatal? Coitado! O flâneur é o bonhomme possuidor de uma alma igualitária e risonha, falando aos notáveis e aos humildes com doçura, porque de ambos conhece a face misteriosa e cada vez mais se convence da inutilidade da cólera e da necessidade do perdão”. (pg 28)

Ao nível inconsciente, o flâneur vê o tempo como ruína e é por isso que, ao andar por uma cidade que se modifica, o seu inconsciente é ativado levando-o a ver o “agora” sobre o escombro do passado. E é esse olhar que João do Rio dirige à cidade do Rio de Janeiro no momento em que a obra de Pereira Passos transforma o Rio antigo em ruínas. Um olhar que lhe mostrava uma imagem de uma cidade bastante diferente da qual ele guardava na memória, despertando-lhe a melancolia do tempo transformado em ruína e por analogia de outros tempos que no passado tornaram-se ruínas. Nessa vivência do tempo como ruína, o passado torna-se presente visto pelo flâneur.

“Um cavalheiro notável, ao entrar comigo certa vez na Rua Senador Dantas, não se conteve: — É impossível passar por aqui sem lembrar que a velhice começa a chegar. Quando vim da província, esta rua tinha apenas duas casas no antigo jardim do Convento, e eu tomava chopps no Guarda Velha a três vinténs!” (pg 30)

Vivendo em um mundo inteiramente diferente que seus pais haviam conhecido, João do Rio não apostava, por exemplo, na eliminação das “crendices” populares como forma de ajudar o país a civilizar-se. João do Rio não considerava reviver o passado, como fica clara a sua entusiasmada adesão às novidades trazidas pela modernidade. Sendo um homem de seu tempo, o saudosismo não lhe caía bem. No entanto, não havia como negar que, no interior de um tempo que marchava inexoravelmente para o futuro, havia algo que atravessava os tempos:

Talvez que extinto o mundo, apagados todos os astros, feito o universo treva, talvez ela ainda exista, e os seus soluços sinistramente ecoem na total ruína, rua das lágrimas, rua do desespero — interminável rua da Amargura. (pg 46)

De dentro da perspectiva do flâneur, os textos de João do Rio mostram aquilo que sobrevive apesar de todas as transformações históricas da humanidade. O sentimento de carência que sobrevive nos sonhos que cada época vê nascer é o que liga a humanidade dos seus primórdios até os tempos atuais.

Modificada pelos condicionamentos temporais, cada época constrói seus mitos de acordo com os valores que a orientam. Mas, no interior das variações formais, a estrutura do mito permanece intacta, apresentando de uma maneira sintética a problemática do homem diante do seu destino, o seu tamanho diante de forças poderosas e o desejo de transcendê-las, que têm sido desde sempre objeto de sua representação artística.

João do Rio consegue ver nas pequenas coisas e acontecimentos do dia a dia da cidade o elemento eterno surgindo no meio de um cotidiano banal. Um exemplo que ele nos mostra é quando ele vê as tabuletas das lojas comerciais de produtos que dizem muito mais do que o produto anuncia:

“Os pintores de tabuletas resignam-se. Eles, os escritores desse grande livro colorido da cidade, têm a paciência lendária dos iluministas medievos, eles fazem parte da grande massa para que o Reclamo foi criado — são pobres. Talvez por isso, um mais ousado, de acordo com certo açougueiro antigo da Praça da Aclamação, pintando uma vez o letreiro Açougue Pai dos Pobres, pôs bem no meio uma cabeça de boi colossal, arregalando os olhos, que Homero achava belos, como o símbolo de todas as resignações... E é decerto este o lado mais triste das tabuletas – brasões da democracia, escudos bizarros da cidade.” (pg 90)

O andar do flâneur pela cidade é sempre movido por uma curiosidade, o que o leva muitas vezes a se apossar de um tempo desaparecido. E esse conhecimento se dá por narrativas orais, forma pelo qual o passado era transmitido geração por geração nas sociedades tradicionais. A cultura oral é um tesouro para o flâneur. Ele vê o passado atravessado no tempo, repetindo-se em um novo formato, o formato moderno que enaltece como se tudo fosse uma grande novidade:

“A musa urbana! Ela é a canção, começa com os povos na história, e talvez tivesse, como o homem, a sua pré-história. Contar-lhe a idade é tentar um mergulho intérmino na clássica noite dos tempos. O primeiro homem, para dar a expressão à ideia, deu-lhe o ritmo; a primeira tribo, para exprimir os sentimentos mais complexos, descobriu a cadência. A civilização é a apoteose do verso popular, porque mais nitidamente acentua a facilidade de exprimir da massa ignorante. Os gregos faziam modinhas a todo o instante e a todo o propósito, e davam para cada uma denominação especial. Antes de saber ler tinham o sentimento do metro poético, e é o grave Aristóteles que nos faz sentir esta ridente idéia: canção e lei eram uma mesma palavra entre os helenos. A modinha é o instinto bárbaro de independência e de maravilha no homem. Louva aos deuses, incita à guerra, canta a mesa, chora desejos de carne, e — ó coisa admirável! — foi ela que trouxe desde Atenas para os superficiais prazeres de civilização esses sons frívolos que nos cafés-cantantes nos fazem tanto bem, foi ela que modificou a onomatopeia selvagem, no delicioso tralalá Quando a musa anônima inventou o tralalá, jocunda insignificância, mais vasta, mais profunda que um etc. na conversa de um embaixador, a musa assegurara para todo o sempre a imortalidade, e vémo-la zurzir os césares em Roma e bajulá-los também; vêmo-la em plena Idade Média esconder-se nas pedras das catedrais e florir sob as espadas nuas dos cavaleiros; vêmo-la irradiar pelo universo início de literaturas, semente de grandes idéias, e nos tempos modernos fazer-se clava destruidora, bomba revolucionária, impondo a fórmula — igualdade, liberdade, fraternidade. A canção é a sobrevivência alegre de um gênero comprido e lúgubre chamado poema épico, que já entre nós não tem cultores; a musa do povo tem esse aspecto infinito — é o contínuo epítome da história” (pg 212)

O indivíduo moderno desconhece a conexão que existe com o cosmo. que no mundo grego e também na Idade Média orientava a conduta dos homens. Para ele, a verdadeira expressão do homem moderno se dirige contra a sociedade onde ele se encontra em total dissonância moral.

“Os grandes poetas não fazem mais versos para toda gente — o nível intelectual da classe média subiu assim como a proporção geométrica da sua pretensão, e os vates são parnasianos, são simbolistas, procuram a forma sensível e a essência oculta.” (pg 216)

João do Rio vê na poesia das modinhas populares um manancial lírico feito a partir de elementos banais da realidade urbana. Nessa banalidade reside e ainda sobrevive a verdadeira expressão da alma humana em situações muitas vezes miseráveis. E a modinha é cantada como uma forma de superar a dor da realidade cotidiana.

“Oh! o lirismo das modinhas! Como é possível na miséria da urbs, no pó, na secura, na sujeira das vielas sórdidas, nas escuras alcovas das hospedarias reles, vibrar tamanha luz de poesia?

O lirismo é uma torrente, uma catadupa a escachoar espumante entre as idéias dos bardos. Todos os estilos da veia lírica do povo soluçam e choram nas calçadas. Não é possível deixar de sentir uma infinita amargura, quando nos becos sórdidos, à porta de miseráveis casas, os soldados consentem que os trovadores cantem, loucos de amor, a pureza da mulher transviada.”( pg222, pg223)

Podemos resumir a obra “A Alma Encantadora das Ruas” dizendo que João do Rio viu entre as ruínas do passado de uma cidade destruída pela modernidade o registro do que sobrou, aquilo que estava desaparecendo para dar lugar ao novo. No entanto, quando em 1908 as obras de Pereira Passos foram concluídas, a cidade era o que o Cazuza explorou com tanto apuro e inteligência: “um museu de grandes novidades”. Apesar da modernização, ainda permanece na cidade as relíquias do passado em uma nova metrópole.

O novo transformou a cidade em relíquia no momento em que seus monumentos foram inaugurados. A grande contradição é que o antigo permanecia no novo. A cidade não nasceu com o caráter revolucionário do novo; ao contrário, a sensação é de um eterno retorno.

Fico por aqui e indico esse livro que vai virar meu livro de cabeceira. Devo dizer que essa leitura me motivou a ler um outro livro, a obra de Walter Benjamin: “Charles Baudelaire, um lírico no auge do capitalismo”.

“A Alma Encantada Das Ruas”, de João do Rio, merece um lugar de HONRA na sua estante.


Data: 15 julho 2021 | Tags: Crônica


< Um País Chamado Favela Os Bruzundangas >
A Alma Encantadora das Ruas
autor: João do Rio
editora: Martin Claret

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