Stoner
John Williams é um escritor completamente desconhecido do público brasileiro. Stoner, seu terceiro livro, escrito em 1965, só agora chega ao Brasil. O primeiro foi Nothing But the Night e o segundo, Butcher Crossing. Stoner alcançou certo sucesso de crítica na revista New Yorker, mas parou por aí. Seu livro Augustus, escrito em 1972, dividiu o prêmio US National Book Award com o escritor John Barth. Reza a lenda que ele nem compareceu na entrega do prêmio. Desconheço a razão. Apesar de seu sucesso de crítica, seus livros não conseguiram atingir uma plateia. Alcançou a sua imerecida invisibilidade, até que veio a falecer em 1994.
Mas, como diz o ditado, o mundo dá voltas. Cinquenta anos depois, o livro se tornou um best-seller na Europa. E confesso de coração a todos vocês que frequentam este espaço: ele tem “TUDO” para alcançar o merecido sucesso entre nós, leitores de língua portuguesa. John Williams não é só um autor desconhecido entre nós, brasileiros; ele continua desconhecido nos Estados Unidos, até hoje.
Antes de entrar na história do livro, devo contar a vocês como este livro chegou às minhas mãos. Tenho muitos clientes amigos na livraria. E muitos dos livros que posto aqui neste espaço foram recomendações desses amantes da boa leitura. Essa dica veio de forma inusitada.
Esse amigo estava passando pelo shopping Leblon e resolveu subir só para me dizer o seguinte: “Pare as máquinas e vá ler Stoner”. Confesso que na hora me assustei com o tom inquisidor (no bom sentido, é claro) dele. E a primeira coisa que fiz foi comprá-lo sem hesitações. Muito embora eu receba muitos livros das editoras, esse não podia esperar. Fiquei nervoso. Gosto desse tipo de iniciativa, aprecio os intensos que, quando encasquetam com alguma coisa, querem logo dividir com todos. Eu sou assim. E foi exatamente isso que fiz. Serei eternamente grato a esse amigo. O livro é ótimo. É do tipo “esqueça tudo e vá ler Stoner”. O livro já te pega na primeira página.
Vamos a ele? William Stoner é um garoto de fazenda, filho de agricultores pobres, um filho da terra, possuidor de duas características em sua personalidade: seriedade e sinceridade. É enviado para a Universidade do Missouri em 1910, ele se move totalmente despreparado à cidade para estudar ciências agrárias. O motivo, dessa escolha é mais do que óbvia, ou seja, tocar a fazenda de seus pais e modernizá-la com as novas técnicas de agricultura que aprenderia na Universidade.
No entanto, as coisas mudam quando assiste a uma aula de literatura inglesa , em que seu professor lê um soneto de William Shakespeare sem olhar para o seu livro:
“ele recitou o poema de novo, e sua voz ficou mais profunda e suave, como se as palavras e os sons e ritmos tivessem se tornado por um momento ele mesmo (o professor Sloane):
“Podes em mim ver o tempo sombrio
Das poucas folhas secas que pendentes
Tremem nos ramos trêmulos de frios,
Coro em ruína, os pássaros ausentes.
Em mim a luz que se desfaz do dia
E no ocaso se extingue e encontra pouso
E ao qual a noite aos poucos alicia,
Morte segunda, que em tudo é repouso.
Em mim tu vês a chama ainda arder:
Na juventude em cinzas, quase expira
No último leito onde vai morrer
Consumida naquilo que nutrira.
Tudo o que vês, mais forte amor preserve
No amor a quem tu vais deixar em breve.” (pg. 18)
Perguntado pelo professor Sloane o que esse soneto significa, William Stoner relutantemente diz: “Significa”, “Significa” e não consegue terminar o que começou a dizer. Sem dúvida, a partir daquele momento, algo acontece ao nosso protagonista. Abandona o curso de Ciências Agrárias. Sem amigos, e tendo pela primeira vez a consciência dessa solidão, começa a frequentar a biblioteca.
“O passado avolumava-se da escuridão onde jazia, e os mortos se erguiam para viver à sua frente, e juntos, fluíam para o presente entre os vivos, e assim, por um intenso instante, ele tinha a sensação de unir-se a eles numa única e densa realidade da qual não podia escapar, e da qual não tinha o menor desejo de escapar. Tristão, Isolda a bela, caminhavam a sua frente; Paolo e Francesca rodopiavam na escuridão fulgurante; Helena, o brilhante Paris, seus rostos graves de amargura, erguiam-se da treva. E Stoner se sentia mais próximo deles do que de seus colegas que iam de aula em ala, hospedados numa grande universidade em Columbia, no Missouri, e que caminhavam distraídos em meio ao ar do Midwest.” (pg. 22)
Ele percebe que existe algo lá fora que pode liberar a sua humanidade e que a literatura é um poderoso instrumento de libertação. A literatura é a verdadeira religião de Stoner, e é isso que, em última análise, redime sua vida. William Stoner aprende latim e grego, transforma-se em um aluno do primeiro time da literatura inglesa da Universidade e recebe seu diploma de Bacherelado em Letras da Universidade do Missouri. Seus pais compareceram à cerimônia numa carroça emprestada. Quando souberam que seu filho havia desistido das Ciências Agrárias e seguido Literatura Inglesa, ficaram decepcionados. Não era o plano que tinha sido combinado anteriormente. Sua mãe chorou, mas seu pai, desapontado, aceitou a decisão do filho.
Antes de sua graduação, um de seus professores, Archer Sloane, sentindo seu amor pela literatura, sugere que Stoner continue seus estudos e obtenha um diploma de mestrado e doutorado. Ele aceita a sugestão.
A Primeira Guerra Mundial começa, dois de seus amigos se alistam, David Masters e Gordon Finch. Eles pedem que Stoner vá com eles, mas Stoner decide ir contra eles, principalmente após a consulta a seu mestre Archer Sloane. Ele chega à conclusão de que o conflito armado é a antítese da criatividade e da obra civilizadora do intelectual. Seu grande amigo, o mais brilhante, David Masters, é morto em combate. No fim da guerra Stoner conhece Edith, que torna-se sua mulher, e uma filha nasce desse casamento. Paro por aqui. Não tenho o direito de estragar a leitura de vocês.
Stoner é um livro que fala da loucura, das fraquezas humanas, da inadequação, de traição, decepções, mas sem ilusões, sem desesperos. Existem derrotas e vitórias da raça humana que não são militares e nem registradas nos anais da história. A tristeza de Stoner é algo muito particular. Não é uma tristeza operística, nem muito menos uma tristeza sociológica. É uma sensação menos literária, mais pura e mais perto da verdadeira tristeza da vida. Muitos que lerem Stoner se lembrarão de suas próprias histórias pessoais. Este livro pode nos ajudar a entendermos melhor a vida. Esse espaço sagrado da leitura está cada vez mais ameaçado pelas disfunções da vida contemporânea, das interferências, da vigilância das câmeras de celulares sobre o indivíduo. Quem sabe se, por trás de toda essa loucura em que vivemos, algo poderoso nasça e o romance volte a ocupar um lugar importante em nossas vidas, levando-nos ao descobrimento dessas ações humanas. Acho que cada um deve descobrir por si mesmo.
Stoner é um romance envolvente, profundo, exasperante e altamente recomendado. John Williams nos mostra o invisível das relações humanas em todos os seus triunfos e suas tragédias cotidianas. Stoner é um romance iluminado, que merece um lugar de destaque em sua estante.