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Ao Farol

Antes de falarmos sobre o livro “Ao Farol” de Virginia Woolf escreverei um brevíssimo comentário sobre sua vida tendo como fontes o Wikipédia e a Revista Bula, que publicou um excelente ensaio de Euler de França Belém baseado na biografia de Virginia Woolf feita por Quentinn Bell. Confesso minha ignorância sobre a vida de Virginia Woolf. Sabia de sua importância, mas desconhecia sua vida e sua obra. “Ao Farol” foi minha iniciação, e simplesmente adorei e recomendo.

Penso eu que para falar sobre a vida dessa escritora teria que ser elaborada outra resenha. Uma biografia que por si já teria um excelente material para um grande romance. “Ao Farol” não deixa de ser uma parte de sua vida. A família tinha uma residência de verão em Tailland House com vista para a praia de Porthminster e para o farol de Godrevy Point. A casa era localizada na pequena cidade litorânea de St. Ives, em Cornualha, que mais tarde se tornou uma colônia de artistas, como no livro em questão.

Antes de se tornar uma grande escritora, ensaísta, editora e pertencente à sociedade literária londrina conhecida como o Grupo de Bloomsbury, Virginia Woolf era filha do escritor, historiador, ensaísta e biógrafo Sir Leslie Stephen e de sua segunda esposa, Julia Prinsep Jackson. Tanto seu pai como sua mãe vinham de outros casamentos. Desse casamento (Leslie e Julia) nasceram três irmãs: Vanessa, Thoby e Adrian. Além dos meios-irmãos: Laura, do casamento anterior de seu pai, e George, Stella e Gerald, frutos do primeiro casamento da sua mãe.

Alguns de seus biógrafos mencionam que Gerald e George abusaram sexualmente da meia-irmã, o que poderia ter contribuído para a psicose maníaco-depressiva de Virginia Wolf e também para a sua frigidez. Outros pesquisadores apostam em um fator genético de sua família. Seu pai também sofria desses sintomas. Uma coisa é certa: Virginia Woolf se matou e tentou suicídio algumas vezes. O que nos faz concluir que ela sofria de algum transtorno psicológico oriundo de diversas interpretações. Talvez nunca saibamos ao certo se houve um motivo ou vários.

Virginia Woolf não frequentou escolas, foi educada por professores particulares e por aulas com o seu pai, que abriu a ela mundos novos através da sua poderosa biblioteca particular. Com a morte de sua mãe, Virgínia Woolf sofreu o seu primeiro colapso. Sua meia-irmã Stela comandou a casa até se casar dois anos depois, vindo a falecer por causa de uma peritonite, logo após a lua de mel.

Sua casa em Londres era frequentada por grandes escritores, a elite da classe intelectual e artística britânica da época, como Alfred Tennyson, Thomas Hardy Henry James e Edward Burne-Jones, Saxon Sydney-Tuner, Leonard Woolf, Lytton Strachey (irmão do grande tradutor de Freud, James Strachey), Clive Bell e Desmond MacCarthy. Jack Pollock, E. M. Forster, Bertrand Russell e John Maynard Keynes também frequentavam os saraus de Leslie Stephen. Era um grupo de intelectuais que, após a Primeira Guerra Mundial, se posicionou contra as tradições literárias, políticas e sociais da Era Vitoriana.

Virginia e Leonard Woolf se encontram e se casam. Seu marido era louco por ela. Podemos dizer que essa união foi um presente da vida aos seus sofrimentos. Se é que podemos dizer que existam compensações para as nossas infelicidades. Mas o fato é que, após o casamento, seu equilíbrio emocional e sua segurança como escritora aumentaram. Junto com Leonard Woolf, Virginia foi dona da Hogarth Press, que editou grandes escritores e poetas, como Katherine Mansfield e T.S. Eliot, além do psicanalista Freud.

Sua obra ficou imortalizada. A Viagem, Noite e Dia, O Quarto de Jacob, Mrs Daloway, Ao Farol, As Ondas, Orlando, Os Anos, Entre Atos. Seu marido foi o seu grande incentivador. Sua carta final a ele antes de seu suicídio é a prova desse amor.

“Não consigo ler. O que quero dizer é que devo a você toda a felicidade da minha vida. Você foi absolutamente paciente comigo e incrivelmente bom. Quero dizer isso — e todo mundo sabe. Se alguém pudesse me salvar, teria sido você. Perdi tudo, menos a certeza da sua bondade. Não posso mais continuar estragando sua vida. Não creio que duas pessoas tenham sido mais felizes do que nós fomos”. (texto retirado do ensaio de Euler de França Belém na Revista Bula).

Pois bem, prometi uma pequena biografia, mas como disse lá em cima é impossível resumir a vida de Virgínia Woolff. É possível que haja algumas imprecisões nessa pequena biografia, mas me responsabilizo pelos erros caso eles ocorram. Vamos ao livro?

“Ao Farol” não é um livro simples. O leitor precisa estar concentrado. A escrita de Virginia Woolf trazia uma novidade ao contar histórias, uma técnica narrativa baseada em fluxos de consciência, que muitos escritores modernistas na metade do século XX também adotaram. Entre eles, destacamos James Joyce.  O que é fluxo de consciência? É quando a mente vagueia de pensamento em pensamento. E a primeira coisa que podemos notar neste romance é que a escritora recorre ao monólogo interior. Isso significa que estamos dentro da consciência de um personagem falando para si mesmo. Como observa muito bem Hermione Lee no posfácio (que aconselho que você leia antes de começar a ler o livro se é passageiro de primeira viagem como eu), grande parte de “Ao Farol” se passa entre parênteses: gestos silenciosos (“lançou-lhe um olhar, devaneando”); indicações de um ponto de vista (“pensou James”). “O romance força o leitor a perceber os estratagemas de sua estruturação, seus parênteses e suas seções e suas mudanças de pontos de vistas”. (citado no posfácio escrito por Herminione Lee).

A ação é filtrada através da mente dos vários personagens, a narrativa não é linear; alguns momentos acontecem no tempo presente, enquanto outros são lembrados. A ênfase de Virginia Wolff na vida interior dos personagens é coerente com as ideias de Freud, que explorou a teoria do consciente e do inconsciente. Virginia Woolf escreveu um romance que incide não sobre os acontecimentos do mundo externo, mas na riqueza e complexidade da interioridade mental.

Em outras palavras, podemos dizer que a passagem do tempo é modulada pela consciência dos personagens e não pelo relógio. Os acontecimentos de uma única tarde, por exemplo, constituem mais da metade do livro, enquanto os acontecimentos dos dez anos seguintes são compactados em quinze páginas. Os pensamentos gravados são mais extensos, e eles não só nos ajudam a entender a Sra. Ramsey (sua confiança no casamento, suas lutas com o seu marido e família), mas também reforçam os estragos inevitáveis do tempo, a implacável indiferença da natureza e da luta humana de aprender a suportar as agruras da vida.

A história é vagamente baseada na família de Virginia Woolf e dividida em três partes, “A Janela”, “O Tempo Passa” e “O Farol”.  A primeira parte, “A Janela”, começa antes do início da grande guerra, os Ramseys e seus oito filhos são apresentados a nós leitores e recebem vários convidados em sua casa na ilha de Skye, na Escócia. Do outro lado da ilha fica um grande farol. O filho James Ramsey, de seis anos de idade, quer desesperadamente ir ao farol, e sua mãe é sucinta quando diz que eles só irão ao farol se o tempo permitir. Seu pai, Sr, Ramsey, corta as pretensões do filho, e este se ressente amargamente do pai.

Entre os convidados, estão: o sisudo Charles Tansley, que admira o trabalho do Sr Ramsey como filósofo metafísico; Lily Briscoe, uma pintora amadora que começa a pintar um quadro da Sra. Ramsey, mas tem dificuldades em terminá-lo devido às críticas do desagradável Charles Tamsley, que insiste em dizer que as mulheres não podem pintar ou escrever, o que acaba minando a sua confiança; William Bankes, um botânico, um homem gentil, alvo do trabalho de cupido da Sra. Ramsy, que gostaria de vê-lo casado com Lily Briscoe. Paul Rayley e Minta Doyle, que seguem os desejos da Sra. Ramsey e acabam se casando; e o poeta viciado em ópio Augustus Carmichael, que vive na obscuridade dos seus pensamentos até que seus poemas ganham projeção popular durante a guerra.

A Sra. Ramsey é uma anfitriã maravilhosa. Além de bonita e amorosa, tem orgulho em trazer experiências memoráveis aos convidados. Ela dedica especial atenção aos seus convidados do sexo masculino, que ela acredita terem egos delicados e precisarem de apoios constantes e simpatia. Ela é uma esposa obediente e carinhosa, mas muitas vezes luta com os humores do marido e de seu egoísmo. Ela triunfa em fazer algo significativo numa efêmera circunstância como um jantar.

Mr. Ramsay é um filósofo metafísico que ama sua família, mas sabe em seu íntimo de suas limitações intelectuais. Ele tem a consciência que a sua obra não terá peso algum para as futuras gerações. Claro que tudo isso tem um preço e quem paga é a família. Como? Tendo que suportar seu temperamento egoísta e algumas vezes cruel em razão de suas ansiedades pessoais e profissionais persistentes. Ele reconhece a benção em ter uma família, no entanto cobra dela e dos seus convidados uma constante simpatia, atenção e apoio.

 

“Pois sentia que ele ainda estava olhando para ela, mas que seu olhar tinha mudado. Ele queria alguma coisa – queria a coisa que ela sempre achava difícil lhe dar; queria que ela dissesse que o amava. E isso, não, ela não podia fazer. Falar era muito mais fácil para ele do que para ela. Ele conseguia dizer coisas – ela nunca. Assim naturalmente, era ele sempre que dizia as coisas e, então, por alguma razão, de repente ele se incomodava com isso e a reprovava. Uma mulher sem coração, dizia dela; nunca lhe dizia que o amava. Mas não era isso – não era isso. Ela simplesmente nunca conseguia dizer o que sentia. Não havia uma migalha no casaco? Nada que ela pudesse fazer por ele? Levantando-se, ficou junto à janela, com as meias marrom avermelhadas nas mãos, um pouco para afastar dele,um pouco porque agora não se importava de olhar, com ele a observá-la, para o Farol. Mas ela sabia que ele tinha virado a cabeça quando ela se virara; ele a estava observando, em vez de dizer alguma coisa. Sabia que ele estava pensando: Você está mais bonita do que nunca. E sentia-se, ela própria, muito bonita. Você não me dirá, ao menos uma vez, que me ama? Ele estava pensando nisso, pois estava observando, em vez de dizer alguma coisa, ela se voltou, segurando a meia, e olhou para ele. E enquanto olhava para ele, ela começou a sorrir, pois embora não tivesse dito uma palavra, ele naturalmente sabia que ela o amava. Ele não podia negá-lo. E sorrindo, ela olhou pela janela e disse (pensando para si: Nada sobre a terra se compara a esta felicidade)...

“Sim, você está certo. Vai estar chuvoso manhã” Ele não dissera, mas ele o sabia. E olhou para ele sorrindo. Pois ela tinha triunfado mais uma vez.” (pg. 108).


O tempo passa mais depressa na segunda parte do livro: “O Tempo Passa”. Começa a guerra, em toda a Europa. A Sra. Ramsey morre, o filho Andrew Ramsay morre em uma batalha e Prue Ramsey (filha) morre de uma doença relacionada ao parto. Esse capítulo se estende por dez anos. Os eventos são revelados através de colchetes. A grande beleza dessas dezoito páginas de prosa carrega em si um tom emocional digno de uma grande estilista. Um capítulo curto que se centra na definição da própria casa de verão, que é abandonado pela família, e nos momentos de mudança e decadência que estão ocorrendo.

 

 

“Na sala em ruínas, pessoas em piquenique teriam aquecido suas chaleiras; amantes teriam ali buscado abrigo, deitados nas tábuas nuas; e o pastor teria guardado sua comida em cima dos tijolos caídos, e o vagabundo teria dormido enrolado no casaco para se proteger do frio. Então teto teria caído; urzes e cicutas teriam fechados os corredores, os degraus e as janelas; teriam crescido, desigual, mas luxuriosamente, sobre o entulho, até que um intruso, tendo se perdido, poderia ter dito, apenas por causa de um lírio-tocha misturado às urtigas, ou um caco de porcelana no meio das cicutas, que aqui, alguém, uma vez vivera” (pgs. 120-121)


No capítulo “O Farol”, após as perdas na família e o fim da guerra, Mr. Ramsey volta à sua casa de verão, bem como outros convidados, entre eles, Lily Briscoe. Finalmente ele decide ir com seus filhos James e Cam Ramsey fazer a viagem (que ele havia negado no primeiro capítulo) ao Farol. Muitos resquícios de ressentimentos nos seus filhos ainda perduram devido ao seu caráter dominador. Lily Briscoe, convidada, não nutre nenhuma simpatia por Mr. Ramsey, apesar de ele se esforçar para uma aproximação. Tudo pronto. Finalmente a viagem ao Farol. Finalmente Lily Briscoe decide terminar a sua pintura que começou há dez anos.

 

 

“Rapidamente, como se fosse convocada por alguma coisa ali, voltou-se para sua tela. Ali estava ela – a sua pintura. Sim, com todos os seus verdes e azuis, suas linhas correndo para cima e para os lados, o seu esforço para atingir alguma coisa. Seria pendurada nos sótãos, pensou ela; seria destruída. Mas que importava? Perguntou-se tornando a pegar o pincel. Contemplou os degraus; estavam vazios; contemplou a tela; estava desfocada. Com intensidade repentina, como se visse claramente por um segundo, traçou uma linha ali, no centro. Estava feito terminado. Sim pensou, largando o pincel com extrema fadiga, tivera a minha visão." (pg. 179)


Sinceramente, eu nunca pensei ter uma experiência de leitura como esta. Alguns dirão que comecei tarde a ler Virginia Woolf. É verdade. Mas, me desculpem o lugar comum: antes tarde do que nunca. Posso dizer que absorver uma obra de uma técnica tão refinada foi uma das experiências mais intensas que experimentei este ano. Por isso eu indico essa obra-prima a você, leitor que acompanha esse espaço, como um livro fundamental. Essa obra é dedicada a todos nós leitores. Vamos ler “Ao Farol”, um livro que merece um lugar de destaque na sua estante.

 


Data: 08 agosto 2016 | Tags: Romance


< A morte de Ivan Ilitch Stoner >
Ao Farol
autor: Virginia Woolf
editora: Autêntica
tradutor: Tomaz Tadeu

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