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Dezamores

Quando acabei de ler o livro “Dezamores”, do escritor Pedro Ayres, me veio uma melodia na cabeça: "When You're Smiling”, imortalizada na voz de Louis Armstrong, de Larry Shay, Joe Goodwin e Mark Fischer. Não me pergunte o motivo, talvez tenha sido o final do livro.

Fiquem tranquilos: não contarei o final. Como o título sugere, o livro fala sobre de(z)amores, histórias de encontros e desencontros, encantos e desencantos, em que a história do personagem Beto Boaventura troca carícias com os personagens que ele vai construindo à medida que ele escreve os seus contos.  A ficção criando outras ficções, um exercício da reflexão literária que está presente em todo o romance.

Vamos à história?

Beto Boaventura, como ele mesmo se autointitula, um (de)formado em jornalismo, descobriu que a vida em uma redação de jornal não cabia dentro de seus instintos empreendedores. Em outras palavras, não queria ser um boneco de pancada de nenhum editor ou chefe de redação, sendo submetido a fatos e “aversões”. Para isso, começou vendendo sanduíches na praia. O sucesso e o zelo com que conduziu os seus negócios acabaram gerando uma loja de sucos, depois outra e outra na zona sul do Rio de janeiro.

Beto casou-se com Marilu, que sempre acreditou em sua visão de empreendedor, e agora vivem as recompensas do duro que deram na tranquila e deliciosa Ipanema, na Nascimento Silva. Claro que sem deixar de mencionar as viagens ao som do samba do avião de Tom Jobim e idas e vindas aos freeshops dos aeroportos internacionais da vida.

O casamento sempre esteve em altos patamares de amor e compreensão mútua. Marilu, também formada em jornalismo, por outro lado, é uma profissional dedicada e a cada dia que passa sua relação com o trabalho adquire um envolvimento maior. No entanto, o tempo está passando e Beto começa a questionar se não é hora de ter filho.

Se Beto já conquistou a sua independência e realização financeira, Marilu procura o reconhecimento profissional e quer se firmar, e isso significa dedicação exclusiva, significa se tornar uma workaholic. É nesse momento que entra um segundo problema: o casamento e a vida profissional entram em atrito. São as famosas placas tectônicas que determinam os abalos sísmicos dos relacionamentos e destroem anos de convivência em um dia “D”.

Ao optar pelo trabalho, Marilu se transforma em outra mulher. Com agendas, negociações, muito Power Point e clientes com poderosas credenciais. O resto tudo se ajeita. Beto e Marilu começam a não falar o mesmo idioma. Ela precisava se afirmar no mercado mesmo sofrendo assédio sexual de Rezende, seu chefe, um escroque que faz negócios escusos com agentes públicos e privados.

Beto já era um cara realizado profissionalmente, porém um novo ingrediente pulsava dentro dele, que era a sua vontade de escrever. Se ele por acaso tivesse seguido a carreira jornalística, ele construiria a partir de um simples evento, cena por cena, com diálogos imaginários, e se concentraria nos detalhes para definir o personagem e adotar um ponto de vista. Isso não seria jornalismo, seria literatura.

Se Beto desistiu do jornalismo, ele nunca havia desistido de um dia voltar a escrever. E é com a escrita com quem mantém uma conversa sobre todos os temas relativos a relacionamentos a dois. Um desses temas é a solidão a dois. Sente a necessidade de escrever sobre isso e resolve criar o primeiro conto. Conta a história da relação de Neide e Laerte, que acontece em Copacabana. Afinal, como aponta a epígrafe do conto: “Quem nunca viveu um amor em Copacabana, deve fazê-lo antes de iniciar esta leitura”.

As epígrafes dos contos contidos no livro são curtas citações do autor Beto Boaventura, que funcionam como introdução às histórias que surgem ao longo do livro relacionadas aos bairros do Rio de Janeiro e seus “Dezamores”.

Laerte (personagem do conto) viveu todas as suas experiências fora do país. Quando retornou ao Brasil, foi pouco a pouco restabelecendo laços e, para seu espanto, Copacabana era sua Pasárgada. E foi aos poucos reencontrando amigos, um deles um cineasta chamado Miguel, mais tarde Glorinha, até o momento quando apareceu Neide, uma mulher com os seus sessenta anos, viúva de um militar que sofrera um enfarte fulminante. Tudo caminhava para um desenlace natural, mas...

Bem, vocês não precisam levar essa afirmação ao pé da letra. Sempre fui a favor de relaxar a razão de todas as epígrafes. Caso você, leitor desta resenha, não tenha tido um romance em Copacabana, provavelmente já deve ter notada que “No Leblon, a elegância desfila até no chinelo”, outra epígrafe de cujo conto fala sobre a relação entre Igor e Milena.

“Não sabem o que perdem aqueles que fazem de Botafogo, em vez de Palacetes, passagem em vez de destino” é a epígrafe criada pelo personagem Beto Boaventura para a história amorosa vivida por Clarice e Silvio. Mas, se você pensa que os contos de Beto nos remetem apenas à zona sul do Rio de Janeiro, deixem que Marcela, moradora da Rua Engenheiro Baumgart em Marechal Hermes, conte sua história quando ela conhecer Rafael. Assim como em outros lugares do Rio.

Bem, as coisas entre o casal Beto e Marilu caminhavam para a separação a passos bem adiantados. O fim iminente abria um excesso de liberdade que ambos não estavam preparados. Pois bem, Beto encontra velhos amigos com quilometragens de casamentos destruídos. Tipos que lembram o Catete cheio de pensões nas costas.

Beto cai na vida boêmia, incentivado por seus amigos Ernesto, Camilo e Chico Mota. Mas Pedro Ayres faz os amigos de Beto fazerem um comentário bem pertinente: “Não dá para ser sentimental com a primeira que encontra”. Ainda mais quando essa pessoa que você conhece nas festas do Salgueiro está com o famoso escudo invisível, onde o que importa é a alegria.

 Marilu volta para a casa dos pais e começa a aventar a hipótese de viver algumas minisséries:

“Depois de tanto tempo, um beijo significa muito. A grande armadilha para as pessoas na situação de Marilu é achar que aquilo significa mais do que de fato é. Pior: é desejar que aquilo signifique mais do que de fato significa. Trata-se de preguiça sexual e mental. E de uma burrice sem tamanho. Trinta minutos beijando. E começa a falar que costuma ir muito a São Paulo. Vamos nos ver mais. O primo bonitinho não pretendia nada disso. Queria comer Marilu naquela noite. Foi Sheila quem não deixou.” (pg 124)

Depois de superar a dor da separação, Beto tem como aliada a pílula azul, que serve para dilatar livremente o seu fluxo sanguíneo sexual, dando-lhe a sensação de prazer carnal que a vida de solteiro pode proporcionar. Só que o sexo existe, mas sem romance. Ninguém mais suspira no meio da transa, apenas a sensação sexual satisfeita, dever cumprido de uma boa transa, do tipo: “Foi bom pra você?”. Ou então algo para inflar o ego, do tipo: “Você é um furacão na cama”. E claro que tudo isso tem suas consequências para uma pessoa como Beto. Perde-se a vontade de escrever. Banaliza sentimentos e possibilidades.

Rola um vampirismo em todos esses tipos que caem na esbórnia. Uma necessidade de conseguir uma relação sexual dando relativamente pouco, no que concerne os afetos. O sexo sacia e acalma. “Dezamores” não é um livro sobre como proceder em uma relação, não é uma lição de moral. Apenas pontua através das histórias as nossas limitações para com o afeto.

Marilu continua a sua luta por reconhecimento profissional, mas seus afetos restringem-se a um motel com um subalterno bom de cama. Age como todas em sua posição, ou seja, de uma forma padrão ditada pela particularidade do seu momento.

Fico por aqui. Outros contos vão sendo escritos ao longo do livro, a vida de Beto vai se transformando ao longo da história. Se Pirandello escreveu “Seis personagens a procura de um autor”, Beto Boaventura é um autor à procura de seus “dezamores”, que são seus personagens. Pedro Ayres dá voz a todos eles de uma forma muito elegante, e é por isso que indico “Dezamores” como um livro que merece um lugar de destaque na sua estante.

 


Data: 12 setembro 2018 | Tags: Romance


< A tempestade Norwegian Wood >
Dezamores
autor: Pedro Ayres
editora: Primo Selo

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