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A memória de nossas memórias

Nicole Krauss, depois de seu elogiado livro "História do Amor", lançou esse ano no Brasil outro petardo: "A Memória de minhas Memórias", também pela Cia das letras. Começo dizendo que a história é simplesmente linda. Nicolle já faz parte do time da geração dos grandes escritores americanos.

Trata-se de uma escritora que exige um pouco mais do leitor. Ela recusa histórias simples onde através de um centro ou de um protagonista tudo se constrói. Seus personagens são construídos em torno do vazio e quebrados em fragmentos. A tarefa do leitor é fazer o remendo,  juntar os estilhaços e recriar "a memória de nossas memórias." Nesse romance, encontramos alguns resíduos de memória por ela deixados nos pequenos detalhes deixados por cada personagem, e quando compormos esse quebra cabeça, encontraremos um canto empoeirado de uma sala brilhantemente exposta.



O romance conta a história de quatro grupos de pessoas que possuem um vínculo com uma imensa escrivaninha que percorreu um longo e tortuoso caminho desde a Segunda Guerra. O primeiro capítulo "todos em pé" fala sobre uma escritora culpada, seu nome é Nadia. E ela parece que está contando sua história a um juiz.

Ela começa por sua mocidade, quando ainda não havia se tornado uma escritora reconhecida. Ela estava morando em Nova York, no início dos anos de 1970, quando um longo relacionamento chegou ao fim. Quando a separação acontece Nadia não sabe o que fazer e nem como poderia viver em Nova York. Até que o inesperado acontece: um amigo recomenda a ela entrar em contato com um conhecido, um jovem poeta chileno chamado Daniel Varsky. Ele planeja voltar para o Chile e procura alguém para deixar sua mobília enquanto estivesse fora. A peça central é uma escrivaninha enorme com um passado desconhecido. Varsky ao voltar para seu país de origem é brutalmente assassinado pela polícia de Pinochet. No entanto, o poder daquela escrivaninha deixada pelo poeta havia mudado a vida de Nadia.

O tempo passou até que ela olha para sua escrivaninha de madeira onde havia escrito sete romances e algumas anotações que serviriam para fazer o oitavo. E gradualmente desperta para o fato de que ela virou as costas à vida para produzir livros que poucos leem.

 

"Dezenove gavetas de tamanhos variados, algumas abaixo do tampo, outras acima, cujas ocupações mundanas (selos aqui, clipes de papel ali) escondiam uma ordem bem mais complexa, como a planta de uma mente formada ao longo de dezenas de milhares de dias pensando, a olhar para elas, como se nelas estivesse contida a conclusão de uma frase teimosa, a frase culminante, o rompimento radical com tudo que eu havia escrito..." (pg. 26)

 

 

"... Aquelas gavetas representavam uma lógica singular incrustada profundamente, um padrão de consciência que não podia ser articulado de nenhuma outra forma senão por seu arranjo preciso.” (pg. 27)


Foi nessa escrivaninha que Nadia foi reconhecida como escritora, apesar de uma vida infeliz e casamentos fracassados, foi na companhia daquele móvel que ela envelhece e se pergunta sobre a relação de sua arte com sua mesa. O capítulo acaba quando uma jovem se dizendo filha de Varsky, que se chamava Leah Weisz. Depois de 25 anos sendo usada para escrever cada romance publicado, onde ela forjou o significado de sua vida, reivindica a mesa. Nadia sofre uma avaria grave. Todos se levantam, e a história de Nadia será retomada na parte II.

No segundo capítulo "Bondade verdadeira" estamos em Israel e a esposa de Aaron, um velho advogado israelense, acabou de falecer. Ele vocifera contra quase tudo, mas particularmente contra o seu filho mais novo, Dov, que fugiu de Israel e tornou-se um juiz respeitado no Reino Unido. Mudou-se para Inglaterra por razões que não contarei. Uri, outro filho do narrador, nunca saiu de Israel. O narrador recém-enviuvado guarda uma mágoa profunda do filho Dov. Querem saber o motivo? Infelizmente não fui autorizado a contar esse detalhe por ordens expressas do meu bom senso.

É um capítulo amargo e cruel. O pai transtornado pela morte da mãe dirige ao seu filho Dov sua fúria, mas sabemos que há outras razões. No funeral de sua mãe, Dov aparece e fica com o pai, mas o tom do pai dá um pequeno giro emocional, da raiva  para a tristeza, da tristeza para o pesar. Seu filho havia abandonado o seu trabalho na Inglaterra. Mas ele é incapaz de dizer o porquê. "Tente entender", ele diz ao seu filho. "Toda a sua vida e a sua dor me enfureceu." Sentindo a idade avançada, ele ainda faz sua última tentativa para entender seu filho incognoscível.

O capítulo 3, "Buracos para nadar", é narrado por um acadêmico de nome Arthur Bender. Ele passou sua vida na Inglaterra com sua esposa, Lotte Berg, que fugiu da Alemanha durante a Segunda Grande Guerra. Bender sabe que sua mulher perdeu toda a família durante a guerra, algo que ela raramente falava com ele sobre esses eventos traumáticos. Lotte nunca compartilhava nada de sua vida pessoal com seu marido. Ela era uma escritora reclusa que usava a famosa “escrivaninha imensa” para realizar seus escritos. Uma escrivaninha que tinha sido dado por alguém que ela nunca mencionou. E que mais tarde presenteou para Daniel Varsky. Mulher de humor difícil era deixada pelo marido para que escrevesse no intuito de distraí-la, talvez da culpa que sentia por ter - segundo a interpretação do marido - abandonado seus pais. Seu marido que possui um comportamento servil e apaixonado faz com que ele releve os humores de sua mulher, e era feliz por proporcionar isso, era sócio do silêncio de sua esposa.

Após a mulher adquirir o mal de Alzheimer e vir a falecer anos mais tarde, descobre que Lotte tem um segredo inconfessável que ela nunca revelou. Mais um. Que segredo seria esse? Certa vez, cuidando de seus papeis, descobre uma mecha de cabelo. Sinto muito, mas ficarei por aqui.

No Capítulo 4, "Mentiras contadas para crianças", é narrado por Izzy, uma estudante americana que estuda em Oxford  e conta a história de Leah Weisz (lembram dela?) e seu irmão Yoav, com quem manteve um relacionamento. Pouco tempo depois ela foi morar com ele e sua irmã Leah que viviam um relacionamento como poderíamos dizer... mais do que heterodoxo (e as pessoas muitas vezes mencionavam esse estranho relacionamento entre os irmãos ). Os filhos sempre foram dominados por seu pai, um homem rigoroso que se especializou em rastreamento de móveis confiscado dos judeus durante a Segunda Guerra. Quando ele estava presente viviam a subserviência; quando ele estava longe viviam suas próprias vidas.

A Gestapo havia confiscado os itens valiosos de sua família e durante quarenta anos, Sr Weisz (o pai), trabalhou para remontar aquela sala perdida, exatamente com a aparência que tinha quando o horror contra os judeus havia sido cometido na Hungria contra a sua família, em 1944. Cada peça achada tinha como objetivo recuperar o tempo. A única coisa que faltava para completar a casa era a escrivaninha. O vazio deixado dessa ausência fazia a casa incompleta. Mas a mesa se torna um peão na luta entre o pai e a filha.

"A memória de nossas memórias" é uma escrivaninha de muitas gavetas. Cada narrador faz as suas confissões, a escrivaninha assume um valor inestimável, assume um significado e passa a representar tudo que foi retirado deles, e tudo que os une sob algo que desapareceu.

Esta obra é uma meditação sobre a perda da memória e como, entre os achados e as perdas vamos construindo ela constroem as nossas vidas. A partir de uma ideia do Talmude, após a destruição do Templo de Jerusalém (Casa dos grandes) que foi queimada e destruída pelos romanos, Nicole Krauss faz o Sr Weisz dizer:

 

 

"Se todas as lembranças judaicas se juntarem, se todos os fragmentos sagrados se juntarem de novo numa coisa só, a Casa se erguerá outra vez, uma lembrança da casa, tão perfeita que seria na essência, o próprio original.../

/...Vivemos, cada um de nós, para preservar nosso fragmento, num estado de perpétuo lamento e saudade de um lugar que só sabemos que existiu porque nos lembramos de uma fechadura, de um tijolo..." (trechos retirados da pg. 326)


Enfim de partes.

Todos nós carregamos essas partes.

Você deve se preparar para ler as histórias contidas nesse livro. Ele nos fala sobre a condição humana, e em particular sobre a memória. A memória e seus depositários, onde as guardamos, como as levamos dentro de nós, aonde elas nos conduzem afetivamente. Um livro que merece um lugar na sua estante, e não se esqueça: entre os melhores títulos de sua estante.

 


Data: 08 agosto 2016 | Tags: Romance


< O jogador Mister G - Gilbert Garcin >
A memória de nossas memórias
autor: Nicole Krauss
editora: Cia. das Letras
tradutor: Jose Rubens Siqueira

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