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Uma criatura dócil

Quem acompanha este site sabe que Dostoiévski sempre mereceu um lugar de destaque na minha estante. “Uma criatura dócil” é uma pequena novela que simplesmente nos pega desde o início e nos leva direto (no stop) numa respiração. A edição que tenho é da saudosa editora Cosac Naify. Detalhe: com ilustrações de Lasar Segall – mesmo sendo uma edição de bolso. O capricho e a elegância sempre foram o forte dessa editora fantástica.

Vamos ao livro? Sabemos no início da leitura que tudo começa com o narrador em desespero: ele está esperando um agente funerário tirar o cadáver de sua mulher da mesa e colocá-lo em um caixão. “Uma criatura dócil” está intimamente relacionado com a história de um penhorista, uma profissão cujo ofício é deter os bens ou objetos das pessoas como garantia de dívidas. Dostoiévski entra na cabeça desse personagem, que observa sua falecida esposa deitada na mesa à sua frente, a esposa que se suicidou.

O narrador é o dono de uma casa de penhores, e uma de suas clientes assíduas era uma jovem de dezesseis anos que costumava penhorar itens a fim de ganhar dinheiro para oferecer seus serviços como governanta nos jornais.  Sabemos, por meio do narrador, que ela estava em uma situação financeira terrível, e ele muitas vezes lhe dava muito mais por seus itens penhorados do que eles valiam. O narrador desenvolve lentamente um interesse pela garota.

O nome de ambos é omitido. Sabemos que ela é órfã e vive numa pobreza caótica com duas tias abusivas. O penhorista e narrador do livro tem quarenta e um anos, é rico, mas não milionário. Ele se propõe a casar com ela. Mas ela já havia recebido um pedido de casamento de um bêbado que mora na casa ao lado. A menina concorda em se casar com o penhorista e se esforça para ser uma boa esposa. Mas ele quer se sentir superior a ela:

“Queria que se pusesse de joelhos diante de mim pelos meus sofrimentos – e eu bem que merecia isso. Oh, eu sempre fui orgulhoso, eu sempre quis tudo ou nada! Era por isso justamente que eu não queria uma felicidade pela metade, mas por inteiro – e foi precisamente por isso que me vi forçado então agir assim: “Adivinhem por si mesma e avalie!”. Pois vocês concordam que, se fosse eu a chegar e lhe sugerir,  adular e implorar estima, seria o mesmo que mendigar. Mas... aliás, por que é que eu tenho que falar disso !  (pg 34)

Quando você termina esse pequeno parágrafo, poderá notar alguma característica da personalidade desse homem. Um homem que tem as suas regras e padrões rigorosos. Ele é frio e distante com ela, evita o apego. Sua linguagem reflete um pouco o estado desordenado de sua mente. Ele faz perguntas, muda de ideia, repreende-se por ir muito rápido ou muito devagar nesse relacionamento. Está sempre alternando entre a autojustificação e a autoflagelação.

Nota-se que esse personagem é construído de carne e sangue, tamanho realismo, e não feito apenas de papel. Existe uma vida interior que é forte nesse narrador. Um retrato muito convincente.

Ele é desconfiado e acredita que o amor dela não seja verdadeiro. Mas esse é o grande ponto. O penhorista não a entendeu. Tudo o que sabemos de sua esposa vem através da visão dele sobre ela. Vemos o mundo através de seus olhos, nossa visão é retorcida e limitada. Sabemos que ela é “uma criatura dócil”, o título do livro já indica isso. Ele é um controlador. Esse sentimento permeia toda a narrativa, tanto que o nome da esposa não é fornecido.

“Pois no início não havia brigas, mas reinava o silêncio. Lembro-me de que ela então ficava lançando olhares dissimulados para mim: eu assim que percebi intensifiquei o silêncio. É verdade, fui eu a fincar o pé no silêncio, e não ela. Da parte dela, houve arroubos doentios, histéricos, quando eu precisava era de uma felicidade sólida, e que ela me respeitasse, então acolhi-os com frieza. Além do mais, eu tinha razão: toda vez depois dos arroubos, havia brigas no dia seguinte.” (pg 39)

Não havia uma grande paixão nesse casamento em um primeiro momento. No entanto, a maneira parcimoniosa do maridolidar com os negócios incomodava sua esposa. Havia algo doentio típico de penhorista que não empolgava a jovem. Eles discutiam sobre a forma do marido lidar com as transações comerciais, mas não havia brigas fortes, apenas o silêncio. E esse silêncio estava cheio de significações.

No decorrer da leitura, podemos notar outro ponto: existe um manipulador explícito nessa relação que é o próprio narrador. Sua esposa percebe isso. Até que ela descobre um homem chamado Efimovich. Esse homem pertencera ao mesmo regimento militar de seu marido, e agora ela conhecerá o seu incrível segredo. Qual? Não vou dizer, é óbvio. Mas posso dizer que, apesar disso tudo, as coisas permanecem iguais, ou seja, a rotina de sua mulher permanece inalterada, só que um novo ingrediente surge e reverte totalmente o quadro, que eu também não vou contar.

“Uma criatura dócil” foi baseado em um evento lido por Dostoiévski no jornal. É sobre a destruição dessa jovem através do casamento com um penhor espiritualmente doente, por seu próprio orgulho, covardia e ressentimento. A história é notável pela narrativa, que Dostoiévski afirma ter pego emprestada de Victor Hugo. Mas vejo muita semelhança com Rei Lear de Shakespeare.

A narrativa dessa história implica “um suposto estenógrafo anotando tudo”. Em outras palavras, registrando o relato fragmentário, e não linear, do narrador sobre si mesmo. Podemos tranquilamente dizer que a história é narrada através de um fluxo de consciência com uma intensão autoral de estabelecer a “sequência psicológica” correta.

A psicologia está a serviço de uma concepção religiosa, uma resposta à questão, ou seja, sua narrativa tem como objetivo salvar a sua alma junto a nós, leitores. E, ao contá-la de uma forma de tão magnífica, podemos sentir que o objetivo do narrador é vingar-se da sociedade através de suas ambiguidades morais.

Repito o que eu disse no início desta resenha. Você pega o livro e ele te leva sem pausa ao fim, que é o início da história. “Uma criatura dócil” merece um lugar de destaque na sua estante.


Data: 13 julho 2018 | Tags: Romance


< A Sociedade do Espetáculo Hamlet >
Uma criatura dócil
autor: Fiódor Dostoievski
editora: Cosac&Naif
tradutor: Fátima Bianchi
ilustrador: Lasar Segal

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