Livros > Resenhas

A Sociedade do Espetáculo

Antes de comentarmos sobre o livro “A sociedade do espetáculo” do escritor Guy Debord, cabe aqui fazer algumas considerações. Uma crítica a todos aqueles que escreveram, ou foram entrevistados sobre os eventos de 68, e nem sequer mencionaram o nome daquele que, a meu ver, foi o grande responsável teórico por maio de 68 na França, graças a seu livro escrito em 1967, que teve um enorme impacto na época.

Talvez a não menção de seu nome se deva ao fato de o livro ter sido traduzido somente na década de 90 aqui no Brasil. No entanto, mesmo aqueles que se exilaram em Paris e possuíam domínio da língua francesa poderiam ter mencionado esse autor, que é simplesmente magistral. A dúvida que fica é: houve, através da ação deletéria do tempo, nas mentes daqueles que estiveram em Paris em 68, um esquecimento dessa obra tão importante? Ou preferiram falar de 68 apenas no Brasil? Seja qual for a resposta, fica o registro de que Guy Debord é um dos intelectuais franceses de imensa relevância. Sua grande obra “A sociedade do espetáculo” é um dos raros livros que se mantiveram atuais nos dias de hoje.

"A sociedade do espetáculo" foi publicado por Debord em 1967. Não foi apenas um dos textos fundamentais dos eventos de Paris em maio de 1968, é uma crítica polêmica de nossa cultura de consumo saturada de imagem. O livro examina o “espetáculo”, o termo movido pelo capitalismo: publicidade, televisão, cinema e celebridades. O próprio evento de maio de 68 acabou tornando-se um espetáculo. “A sociedade do espetáculo” consiste de 221 teses curtas, divididas em nove capítulos. Mas, antes de abordarmos o livro propriamente dito, vamos começar por sua trajetória intelectual. Depois da Segunda Guerra Mundial, a partir de 1957, surge no cenário uma nova vanguarda, o situacionismo. Esse grupo de vanguarda altamente politizado veio de uma fusão de dois grupos. Debord veio de um pequeno grupo chamado “Internacional Letrist”; e o outro grupo, sob a liderança do artista Asger Jorn, do “Movimento Internacional para uma Bauhaus Imaginária”. Ambos os grupos acabaram convergindo para a “Internacional Situacionista”. Nessa fusão, podemos ter uma ideia da riqueza do debate artístico, cultural e político na Europa durante as décadas de 1950 e 1960.

As bases estéticas e ideológicas do situacionismo são o surrealismo e o marxismo, mas com uma crítica velada a ambos. Com o surrealismo, havia muitos elementos de convergência, tanto estéticos quanto organizacionais. Segundo os precursores do movimento situacionista, o surrealismo foi vitorioso como movimento artístico e já estava fazendo parte de todos os museus, mas falhou em sua tentativa de transformar a realidade.

O “espetáculo” se apropriou de tudo, até mesmo da cultura. A cultura, outrora a sementeira da potencial mudança revolucionária, tornou-se, desde o fim do dadaísmo e do surrealismo, apenas mais uma mercadoria. A arte deixou de ser arte e transformou-se em uma especulação cínica.
 

Os situacionistas queriam renovar as estratégias estéticas surrealistas com novas contribuições. Por outro lado, a base ideológica fundamental era o marxismo. Mas um marxismo com uma nova abordagem, renovada com as contribuições modernas do sociólogo Henri Lefebvre sobre a “crítica da vida cotidiana” e as do filósofo Jean Paul Sartre sobre a construção de “situações” subversivas. E leituras de autores marxistas, como Anton Pannekoek, sobre “Conselhos Operários”.

Na verdade, era uma forma que se encontrava em contradição direta ao papel do partido como órgão mais importante de esclarecimento do proletariado. Essa é uma visão que se choca com a visão tradicional da preponderância do partido (a vanguarda) sobre a classe trabalhadora. Os conselhos seriam algo bem próximo à autogestão, mas para isso a “autonomia operária” era necessária, longe dos partidos comunistas e socialistas.

Com o desenvolvimento da Revolução Russa, Anton Pannekoek rompeu também com o leninismo e, junto com grupos em outros países, se opôs tanto à social-democracia como ao bolchevismo. A social-democracia era vista como uma tendência burguesa que já não tinha mais nada a ver com o marxismo. E o bolchevismo também possuía um caráter semiburguês, que criou um regime denominado por ele como “capitalismo de estado”. A sua tese principal era retomar a ideia de emancipação dos trabalhadores através dos conselhos numa nova sociedade fundada na autogestão.

Anton Panneckoek fez uma crítica aos partidos políticos e aos sindicatos, vendo, nos conselhos operários, o embrião da futura sociedade comunista, bem como sua forma de autoorganização emancipadora no período revolucionário. Ele se tornou o teórico dos conselhos operários

Podemos dizer que existe nessa concepção uma crítica velada aos partidos socialista e comunista, que, na visão de Guy Debord, (utilizando-se da ferramenta teórica de Anton Panneckoek) não seriam nada mais que um acordo entre a burocracia da burguesia e os militantes do partido que exploram  os trabalhadores em nome de sua libertação.

Vou confessar uma coisa a vocês: fui um dos poucos estudantes de marxismo no Brasil que leu o livro “Partidos, Sindicatos e Conselhos Operários”, de Anton Panneckoeck (em espanhol, e, se não me falha a memória, pela editora Grijalbo). Eu tinha exatamente 24 anos, fim da década de 1970, e estudava na UFF. Lembro-me do entusiasmo da leitura que fiz. Mas é claro que os marxistas leninista trotskistas achavam uma Lenine(ência) tal teoria. Mas sigamos.

Por trás do que Debord chama de "a sociedade do espetáculo", ele denuncia o estabelecimento de um sistema de controle social, consequência não de um enredo centralizado e orquestrado por uma pequena minoria consciente, mas do desenvolvimento da organização econômica e política.

A Sociedade do Espetáculo” fala sobre a realidade apenas sendo transmitida através de imagens que vemos, mas também no ambiente construído em que vivemos. O “espetáculo” também significa uma falsa realidade. Em outras palavras, o que estamos vendo, segundo Debord, é a falsa realidade.

E o espetáculo é a única informação que conhecemos que está sendo codificada na sociedade através dos meios de comunicação de massa. Nossa racionalidade e desejos estão sendo lentamente desenvolvidos à medida que consumimos essas imagens e, com o tempo, visualizamos todas as representações mediadas como sendo a realidade.

O modelo capitalista transforma tudo em mercadorias. Isso significa que a nossa identidade é determinada pelo espetáculo da sociedade e nos tornamos uma máquina consumidora constante da produção capitalista. E, pela definição de Guy Debord, somos parte dessas imagens. Podemos identificar o espetáculo como um instrumento da classe dominante para impor valores dessa sociedade: a classe dominante usa esse instrumento para controlar a consciência da sociedade através da ideologia do consumo.

Debord também define o espetáculo como “o reino autocrático da economia de mercado". São os anúncios exibidos no metrô e os anúncios pop-up que aparecem no seu navegador. É a lista que diz “10 coisas que você precisa saber sobre 'x'.” O espetáculo reduz a realidade a um suprimento infinito de fragmentos mercantilizáveis enquanto nos encoraja a focar nas aparências.

O espetáculo não é apenas uma coleção de imagens, mas uma relação social entre as pessoas, mediada por imagens, alterando ativamente as interações e os relacionamentos humanos. Imagens influenciam nossas vidas e crenças diariamente. A publicidade produz novos desejos e aspirações. A mídia interpreta (e reduz) o mundo para nós com o uso de narrativas simples.

Fotografia e filme colapsam o tempo e a distância geográfica, proporcionando a ilusão de conectividade universal. Novos produtos transformam a maneira como vivemos. O ser é substituído pelo ter, e ter é substituído pelo aparecimento.

“A alienação do espectador em favor do objeto contemplado (o que resulta de sua própria atividade inconsciente) se expressa assim: quanto mais ele contempla, menos ele vive; quanto mais aceita reconhecer-se nas imagens dominantes da necessidade, menos compreende sua própria existência e seu próprio desejo. Em relação ao homem que age, a existência é seu próprio desejo. Em relação ao homem que age, a exterioridade do espetáculo aparece no fato de seus próprios gestos já não serem seus, mas de um outro que os representa por ele. É por isso que o espectador não se sente em casa em lugar algum, pois o espetáculo está em toda parte” Tese 30 (pg 24)

O espetáculo estendeu sua influência aos quatro campos do mundo homogeneizando a experiência humana trazendo a separação a todos sob o seu ônus (podemos dizer que ele prevê a globalização). É a publicidade em todas as suas formas possíveis, mas as relações sociais mediadas por imagens que constituem certa visão de mundo. O espetáculo é apresentado como uma positividade inquestionável. Não diz mais do que isso:

“O espetáculo se apresenta como uma enorme positividade indiscutível e inacessível. Não diz nada além de “o que aparece é bom, o que é bom aparece”. A atitude que por princípio ele exige é a da aceitação passiva que, de fato, ele já obteve por seu modo de aparecer sem réplica, por seu monopólio da aparência.” – Tese 12 (pg 16 e 17)

 Guy Debord aponta suas armas também para as teorias revolucionárias, critica o dogmatismo nas teorias de esquerda, dizendo que a ideologia de esquerda é um anacronismo inútil. Da mesma forma, quando uma ideologia se estabelece tornando-se materialmente real, seu desenvolvimento termina. Ele faz a crítica, como duas faces da mesma problemática, tanto ao espetáculo de mercado do ocidente capitalista (o espetacular difuso) quanto ao espetáculo de estado do bloco socialista (o espetacular concentrado).

Ao ler “A sociedade do espetáculo”, me lembrei de algumas perguntas que me fazia na minha época de militância estudantil na década de 1970 e início da de 1980. Hoje não me identifico com nenhuma proposta ideológica. No entanto, as críticas feitas por Debord em seu livro são absolutamente pertinentes, independente de credo ideológica que você, leitor dessa resenha, venha a ter.

Fico por aqui fazendo a seguinte pergunta: vocês acreditam que ainda exista alguma possibilidade emancipatória da cultura? Será que realmente está morta essa ideia de emancipação? Existe a possibilidade do rejuvenescimento de uma nova vanguarda artística nos moldes do início do século? Confesso que não saberia responder a essas perguntas. Mas a única coisa que sei é: “A sociedade do espetáculo”, de Guy Debord, é um livro maravilhoso e que merece um lugar de destaque na sua estante.

 


Data: 18 junho 2018 | Tags: História


< A morte de Carlos Gardel Uma criatura dócil >
A Sociedade do Espetáculo
autor: Guy Debord
editora: Contraponto
tradutor: Estela dos Santos Abreu

compartilhe

     

você também pode gostar

Resenhas

O Tratado de Versalhes: a paz depois da Primeira Guerra Mundial

Resenhas

Identidade cultural na Pós modernidade

Resenhas

A Formação das Almas – O imaginário da República no Brasil