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Mito e Religião na Grécia Antiga

O livro de que falaremos hoje, “Mito e Religião na Grécia Antiga”, é de um gigante: Jean Pierre Vernant. Vernant é um historiador erudito, também conhecido como coronel Bethier da resistência francesa ao nazismo, tendo militado no Partido Comunista Francês até 1969, sem nunca deixar de ser “résistant”. Esse autor é fundamental para aqueles que querem conhecer a mitologia e o pensamento grego.

Jean Pierre Vernant foi um dos historiadores mais importantes do século. Sua especialidade era mitologia grega. Os estudos de Vernant sobre mitologia se concentraram nas relações entre os deuses, os humanos e a natureza. Os mitos não são apenas histórias, mas também uma forma de pensar sobre o mundo.

Vamos ao livro?

Os deuses gregos são múltiplos e eles compõem uma sociedade do além hierarquizada. Esses deuses estão no mundo e deles fazem parte. A gênese se deu através de um processo a partir do qual Potências como o Vazio (Chaos) e a Terra (Gaia) saíram ao mesmo tempo e pelo mesmo movimento.

Existe, algo de divino no mundo e algo mundano nas divindades. O culto aos deuses pode dirigir-se a certos astros, como a lua, à aurora, à luz do sol, à noite, a uma fonte de rio, a uma árvore, ao cume de uma montanha e também a um sentimento como a paixão (Aidós, Eros), uma noção moral ou social (Dike, Eynomia).

Em um cosmo repleto de deuses, o homem grego não separa o mundo natural do sobrenatural. Eles permanecem ligados um ao outro. Isso não quer dizer que a religião grega seja uma religião da natureza e que os deuses gregos sejam a personificação de forças ou de fenômenos naturais. O raio, a tempestade, os altos cumes não são Zeus, mas de Zeus.

Zeus não é uma força natural, ele é rei, é senhor da soberania em todos os aspectos que ele pode revestir. Para preencher a intransponível distância, é necessária a intervenção de intermediários, de mediadores.

O politeísmo grego não repousa sobre uma revelação. Na religião grega, o indivíduo não ocupa um lugar central, não participa de culto por razões pessoais, como criatura singular, voltada para a salvação da alma.  O fiel não estabelece com a divindade uma relação de pessoa para pessoa. A religião grega consagra uma ordem coletiva, que deixa fora do seu campo as preocupações relativas ao indivíduo.

Os deuses gregos não são pessoas, mas Potências. Zeus não é cognoscível; pode-se apenas reconhecê-lo, saber que ele é absoluto de seu ser. A religião grega não tem um caráter dogmático. Não existe clero, classe sacerdotal especializada. A religião grega não conhece livro sagrado, na qual a verdade esteja definitivamente depositada em um texto. Ela não implica em nenhum credo que imponha aos fiéis um conjunto coerente de crenças relativa ao além.

Como não se situa no plano doutrinal, suas certezas não acarretam devoção, ou seja, não aderem integralmente a um corpo de verdades definidas.

É pela voz dos poetas que o mundo dos deuses em sua distância e a sua estranheza é apresentado aos humanos, em narrativas que põem em cena as Potências do além revestidas de uma forma familiar acessível à inteligência. Ouvem-se os cantos dos poetas apoiados pela música em festas oficiais. Não é uma festa destinada aos indivíduos ou a uma elite em particular. É uma tradição oral que ocupa um lugar central na vida social e espiritual da Grécia. Não é uma diversão pessoal. É a memória social.

Homero e Hesíodo tiveram um papel central. Suas narrativas sobre seres divinos adquiriram um valor quase canônico; funcionaram como modelo de referência para autores que vieram depois, assim como o público que as ouviu e leu. Nenhum outro poeta teve um papel comparável a esses dois.

 Poetas e escultores, seguindo as próprias exigências de sua arte, mostraram uma forma de sociedade de deuses muito caracterizados, formas, atributos, genealogia, história, tudo é definido. No entanto, os sentimentos populares revelam outras tendências.

Os poetas recortam figuras singulares e as animarão imaginando uma série de aventuras dramáticas para construir “um romance divino” (A. J. Festugiére). A religião grega apresenta-se como uma vasta construção simbólica, complexa e coerente, que abre portas para o pensamento assim como para o sentimento em todos os níveis e em todos os aspectos, inclusive o culto.

A decifração do mito opera em outros caminhos e responde a outras finalidades, visa a destrinchar a composição da fábula, a arquitetura conceitual, e a codificação do real. A mitologia procura reconstituir a ideia das grandes forças que, em suas relações, seu equilíbrio, dominam o mundo, tanto o natural como o sobrenatural, os homens e a sociedade.

 O mito, em sua forma verbal, traz o germe do saber, é mais didático que o rito, mas propenso à teorização, cheio de significação quanto às sequências de uma narrativa. É daí que se extrai o germe do saber, cuja herança a filosofia recolherá, fazendo a transição da língua para o pensamento.

 O culto tem um caráter simbólico, embora mais envolvido na ordem utilitária. Uma cerimônia em um ritual obedece a um roteiro cujos episódios são cheios de significação, semelhantes à sequência de uma narrativa. Cada particularidade da encenação busca representar a relação com um determinado deus, os participantes estabelecem uma correspondência simbólica com determinada divindade.  Mito, figuração e ritual operam todos no mesmo registro do pensamento simbólico.

Mito, ritual e figuração constituem uma rede. No caso grego é, segundo Jean Pierre Vernant, muito mais complexo do que em outras religiões indo-europeias. A complexidade da religião grega está na organização. Um deus grego,

“define-se pelo conjunto de relações que o unem e o opõem às outras divindades do panteão, mas as estruturas teológicas assim evidenciadas são demasiado múltiplas e sobretudo de ordem demasiado diversa para poderem integrar-se no mesmo esquema dominante. Segundo as cidades, os santuários, os momentos, cada deus entra numa variada de combinações com os outros. Esses reagrupamentos de deuses não obedecem a um modelo único, que tenha valor privilegiado; eles se ordenam numa pluralidade de configurações que não se superpõem exatamente, mas sim compõem um quadro de várias entradas, de eixos múltiplos, cuja leitura varia em função do ponto de partida considerado e perspectiva adotada” (pág. 30)

O nome de Zeus tem a mesma raiz indo-europeia, cujo significado é brilhar. Zeus encarna, diante da totalidade dos outros deuses:

“Como Dyaus pita indiano ou como Júpiter romano, Zeus pater, Zeus pai, prolonga diretamente o grande Zeus pai prolonga diretamente o grande deus indo-europeu do céu.” (pág. 30)

Zeus encarna a maior força, o poder supremo. Podemos dizer que na hierarquia é Zeus por um lado, os outros deuses Olimpianos de outro. Zeus é aquele que prevalece. A Potência e a ordem, a violência e o direito. Tudo vem de Zeus. Todos os reis, nas palavras de Hesíodo, vêm de Zeus. Os reis vieram da vontade de Zeus.

Zeus compõe, com Poseidon e Hades, a tríade. Todos possuem domínios cósmicos. Há uma partilha. O céu cabe a Zeus, o mar a Poseidon, o mundo subterrâneo. Zeus figura o princípio terrestre masculino.

Casado duas vezes. Do primeiro casamento, com a esposa Metis, nasceu Atena. Por incrível que pareça, quem deu à luz foi o próprio Zeus.  Metis estava grávida, e Zeus a engoliu, por temer que seu filho viesse a destroná-lo, como um dia ele fizera com seu pai, Cronos. Zeus devora Metis para assimilá-la inteiramente. Ao casar-se pela segunda vez com Têmis, Zeus fixa para sempre a ordem das estações na natureza, o equilíbrio dos grupos humanos.

Pai dos deuses e dos homens, como já designa a Ilíada, exerce sobre cada um deles autoridade absoluta de um chefe. Zeus tem controle tanto sobre a família privada de uma casa quanto sobre a lareira comum de uma cidade. É através dos oráculos que Zeus transmite aos mortais suas mensagens.

 Outro ponto abordado no livro são os ancestrais míticos, que, como heróis da epopeia, pertencem a um passado longínquo, a um tempo diferente do presente, constituem uma categoria de Potências sobrenaturais, muito distintos dos deuses, assim como diferentes dos mortais comuns.

O culto aos heróis tem um valor cívico e territorial. Túmulos e cultos heroicos revelam o prestígio do personagem homenageado:

“A difusão do culto heroico não responde apenas as novas necessidades sociais que surgem com a cidade. A adoração dos heróis tem uma significação religiosa. Por seu duplo distanciamento, de um lado em relação ao culto divino, obrigatório para todos e de caráter permanente, e de outro em relação aos ritos funerários, reservados ao círculo estreito dos parentes e de duração limitada, a instituição heroica repercute no equilíbrio geral do sistema cultual. Entre os deuses, que são beneficiários do culto, e os homens que são seus servos, existe para os gregos uma oposição radical. Os primeiros são estranhos ao falecimento, que define a condição de existência dos segundos. Os deuses são os athánatos, os Imortais, os homens, os brótoi, os perecíveis, fadados às doenças, à velhice e à morte. Assim as homenagens fúnebres prestadas aos falecidos situam-se num plano diferente daqueles dos sacrifícios e da devoção exigidos pelos deuses como sua parte de honra, o privilégio que lhes é reservado. As fitas que ornam o túmulo, as oferendas de bolos aos mortos, as libações de água, de leite, de mel ou vinho devem ser renovados no terceiro, no nono e no trigésimo dia após o cerimonial das exéquias, e mais tarde a cada ano, durante as festas dos genésia dos antepassados, no mês Boedromion (setembro); porém, mais do que um ato de veneração diante das Potências superiores, elas aparecem como prolongamento temporário do cerimonial dos funerais e das práticas de luto: trata-se ao abrir para o defunto as portas do Hades , de fazê-lo desaparecer para sempre deste mundo, onde ele já tem seu lugar. Contudo, graças aos diversos procedimentos de comemoração (desde a estela, como epitáfio e figura do morto, até os presentes depositados sobre a tumba), esse vazio, esse não-ser do morto, pode revestir a forma de uma presença ambígua, paradoxal, como pode ser a de uma ausente, relegado ao reino das sombras, e cujo ser, doravante, se reduz totalmente a esse estatuto social de morto que o ritual funerário o fez adquirir mas que também está fada a desaparecer, tragado pelo esquecimento. à medida que se renovas o ciclo das gerações. (pág. 45; pág. 46)

O caso dos heróis é totalmente diverso. É certo que eles pertencem a espécie dos homens e, como tais conhecemos os sofrimentos e morte. Os personagens heroicos cujos nomes sobreviveram e cujo culto era celebrado em seus túmulos apresentam-se muito frequentemente como fruto desses encontros amorosos entre divindades e humanos dos dois sexos. Como diz Hesíodo eles formam:

“à raça divina dos heróis que são denominados semideuses (hemitheoi). Se o nascimento às vezes lhes atribui uma ascendência semidivina, a morte também os coloca acima da condição humana. Em vez de descermos às trevas do Hades, eles são, graças ao divino, “arrebatados, transportados, alguns ainda vivos, a maioria após a morte, para um lugar especial, afastado, para as ilhas dos Bem Aventurados, onde continuam a gozar, em permanente felicidade, onde continuam a gozar, em permanente felicidade, de uma vida comparada aos deuses.” (pág. 48)

O estatuto heroico abre uma perspectiva da transição de um mortal para a imortalidade, ou seja, para o divino. Figuras como Aquiles, Teseu, Orestes, Héracles, entre outros, são personagens fundadores de colônias ou personagens que adquiriram, aos olhos de uma determinada cidade, um valor simbólico exemplar, como Lisandro em Samos ou Timoleonte em Siracusa.

Hades era o único a não ter templo nem culto, os deuses dos subterrâneos. Os deuses se tornam presentes neste mundo em espaço que lhes pertencem. O templo, morada reservada ao deus como seu domicílio, não serve de local de culto onde os fiéis se reúnem para celebrar os ritos.

Os ritos eram feitos através do sacrifício de animais. Um traço desse ritual é que ele está indissociável da oferenda aos deuses e da festa para os homens. A cerimônia se produz em uma atmosfera de alegria. O sacrifício ilustra a estreita relação entre o religioso e o social nas cidades na Grécia.

Religião “intramundana”, no sentido de Max Weber:

“religião e “política” na acepção grega do termo. Nela o sagrado e o profano não formam duas categorias radicalmente contrárias, excludentes uma da outra. Entre o sagrado inteiramente proibido e o sagrado plenamente utilizável, encontra-se uma multiplicidade de formas e de graus. Além das realidades que são dedicadas a um deus, reservado ao seu uso, há algo de sagrado nos objetos nos seres vivos, nos fenômenos da natureza, assim como nos atos corriqueiros da vida privada – uma refeição, uma partida uma viagem, a acolhida a um hóspede – e naqueles, mais solenes, da vida pública. Todo pai de família assume em sua residência funções religiosas para as quais está qualificado sem preparação especial. Qualquer dono de casa é puro, se não tiver cometido um erro que o deixe maculado. Nesse sentido, a pureza não tem de ser adquirida ou obtida: ela constitui o estado normal do cidadão. Na cidade, não existe separação entre sacerdócio e magistratura. Há sacerdócios que são atribuídos por direito ocupados como magistraturas, e todos magistrado, em suas funções, reveste-se de um caráter sagrado... (pág. 59; pág. 60)

Todo poder político, para ser exercido, toda decisão comum, para ser válida, exige a prática de um sacrifício.

O Titã Prometeu, filho de Jápeto, é quem teria instituído o primeiro sacrifício, fixando assim para sempre o modelo ao qual os humanos se adaptam para honrar os deuses. O episódio se passa num tempo em que deuses e homens ainda não estavam separados: viviam juntos, festejando às mesmas mesas, compartilhando a mesma felicidade, longe de todos os males. ( pag62)Nos primórdios os humanos viviam junto com os deuses, desconheciam a fome, o trabalho, as doenças a fadiga e mesmo a morte, convivendo com a mesma mesa dos demais deuses. Quando Zeus foi promovido o rei dos céus e procedido, entre os deuses, a mesma justa repartição das honrarias e das funções, havia chegado o momento de fazer o mesmo entre homens e deuses e delimitar exatamente o tipo de vida próprio a cada uma das raças. Prometeu foi encarregado da operação.

Diante dos Deuses e homens reunidos Prometeu retalha um boi. De todos os pedaços cortados divide em duas partes. Prometeu, em rebelião contra Zeus tenta enganá-lo em proveito dos homens. As partes separadas por Prometeu são pequenas armadilhas. A primeira parte continha uma gordura apetitosa, só contém os ossos descamados; a segunda, esconde o couro e o estômago, de aspecto repulsivo, em outras palavras tudo que pode ser comestível no animal. Cabia a Zeus escolher o pedaço que melhor cabia. Zeus compreende o jogo de Prometeu e se faz de desentendido. Ele escolhe a parte externa tentadora, a que dissimula sob a fina camada de gordura, os ossos incomíveis. Essa é a razão pela qual, nos altares do sacrifício, os homens queimam para os deuses os ossos brancos da vítima cuja carnes vão partilhar. Guardam para si a porção que Zeus não reteve.

 Pois bem, ao dar aos humanos a melhor parte, Prometeu não tinha a menor ideia que estava dando um mau presente para os humanos. No momento em que os humanos comem a melhor parte da carne, os humanos assinam sua sentença de morte. A partir deste momento irão se comportar como todos os animais que povoam a terra. Os deuses se separam dos homens.

 A esperteza de Prometeu deu a raça humana sua sentença de morte. Mas Zeus não ficou por aí. Ele foi além. Trouxe Pandora. Prometeu rouba o fogo de Zeus e entrega aos mortais. Mas como o fogo era exclusivo dos deuses e de Zeus. Zeus havia proibido a entrega do fogo para os homens.

É nesse momento que Pandora aparece. Pandora foi uma criação de Hefesto, deus do fogo e dos metais, e Atena, deusa da justiça e da sabedoria. Pandora foi viver com os homens na Terra.  Zeus dá a ela uma caixa e a proíbe de abri-la. Ele a manda para a terra. Só que sua curiosidade insaciável a leva a abrir a caixa. No momento em que ela abre a caixa, as tristezas, as pragas, a guerra, o ódio, as misérias, a fadiga, a doença e a velhice e outros infortúnios começam a assolar a humanidade. Pandora tenta fechar a tampa da caixa, mas o mal já estava feito. A única coisa que ficou na caixa foi a esperança. Os humanos deixam de possuir o fogo celestial.

Os humanos passam a adquirir um fogo frágil e mortal que é preciso conservar, preservar e nutrir, alimentando-o incessantemente para que não apague. No entanto, apesar dos pesares, os humanos tornam-se os únicos entre os animais a compartilhar com os deuses a posse do fogo. A fronteira entre deuses e homens é atravessada pelo fogo sacrificial.

O sacrifício aparece como resultado da luta contra Zeus no momento em que os homens e deuses devem separar-se.  A moral dessa história é que não se pode ludibriar o deus soberano. Prometeu tentou isso; e o preço de seu fracasso deve ser pago pelos homens. O sacrifício é a comemoração da desventura de Prometeu através do rito, para aprender a lição.

 A comunicação com o divino será instituída durante a festa, de uma refeição destinada a lembrar que o antigo convívio acabou: deuses e homens já não vivem juntos, já não comem juntos na mesma mesa. O sacrifício consagra a distância irremovível que agora os separa.

O rito estabelece um novo patamar para os homens, ou seja, estabelece uma distância dos animais, que devoram uns ao outros inteiramente crus, e da imutável felicidade dos deuses, que ignoram a fome, a fadiga e a morte porque são alimentados de perfume de ambrosia.

O misticismo grego é marcado pelo contato mais direto, mais íntimo, mais pessoal com os deuses, às vezes associado à busca da imortalidade bem-aventurada, ora outorgada após a morte através de uma regra estabelecida de vida pura, reservada apenas aos iniciados, ou seja, aqueles que têm a parcela divina presente.

Há três tipos de fenômenos religiosos relativos ao contato com os deuses. São designados pelos seguintes termos: teleté, orgías, mystai, bákchoi. São realidades de ordem religiosa diferentes e não têm o mesmo estatuto nem a mesma finalidade.

 Em primeiro lugar, os mistérios de Elêusis. Os mistérios eram centrados no culto às deusas Deméter e Perséfone, e prometem a seus iniciados a salvação e a vida após a morte. Os mistérios eram abertos a todos independentemente de sexo ou condição social. No entanto, todos tinham que passar por um processo de purificação pessoal antes de serem iniciados.

Os mistérios eram centrados no mito do rapto de Perséfones por Hades, o deus do submundo. De acordo com o mito, Perséfone era filha de Deméter, a deusa da agricultura. Hades raptou Perséfones e levou-a para o submundo. Deméter ficou tão triste que a terra parou de produzir colheitas. Zeus, o rei dos deuses, finalmente concordou em permitir que Perséfones passasse metade do ano com sua mãe e a outra metade com Hades no submundo. Foi assim que a terra voltou a produzir colheitas, e a humanidade foi salva pela fome.

Os mistérios de Elêusis celebram o retorno de Perséfone ao mundo dos vivos. Os iniciados acreditavam que os rituais lhes dariam a oportunidade de se relacionar com os deuses. É um lembrete da esperança de uma vida eterna.

 “O iniciado retoma à cidade e ali se reinstala para fazer o que sempre fez, sem que nada tenha mudado nele, exceto sua convicção de ter adquirido, através dessa experiência religiosa, a vantagem de incluir-se, depois da morte, no número dos eleitos: para ele, nas Trevas ainda haverá luz, alegria, danças e cantos. Sem dúvida, essas esperanças relativas ao além poderão ser retomadas, alimentadas, desenvolvidas em ambientes de seitas que também utilizarão o simbolismo dos mistérios, seu caráter secreto, sua hierarquia de graus. Mas, para a cidade que os patrocina, para os cidadãos, iniciados ou não, nada nos mistérios se opõe àquilo que a religião oficial lhes exige como uma parte dela mesma”. (pág. 74)

Dionísio, que Jean Pierre Vernant chama de “o estranho estrangeiro”. O culto comporta, nas palavras de Vernant: Teletai e orgia, iniciações e ritos secretos que não podem ser conhecidos por aqueles que não foram iniciados como bácchoi. Mas em Atenas ocorrem as festas invernais de Dionísio, Oscóforias, Dionísias rurais, Leneanas, Antestéria e Dionísias urbana. Apesar das festas serem cívicas, no entanto, outras festas comportam um caráter mais restrito, mais especializado.

Qual a originalidade de Dionísio em relação aos outros deuses?

O deus Dionísio é uma figura enigmática na mitologia grega. É o deus do vinho da fertilidade, do teatro e do êxtase. Dionísio, na expressão de Louis Gernet, encarna a figura do Outro. O Outro é aquele que está fora da ordem social, aquele que é diferente e estranho. Dionísio é o Outro porque ele é um deus estrangeiro, um deus da natureza, um deus do vinho e do êxtase. Ele é um deus que desafia as normas sociais e que subverte a ordem do mundo. O papel de Dionísio é ambíguo e complexo. Por um lado, ele pode ser visto como uma força de desordem e caos, mas também pode ser visto como uma força de transformação e renovação.

“À maneira de um ilusionista, joga com as aparências, embaralha as fronteiras entre o fantástico e o real. Ubiquitário, nunca está ali onde está, sempre presente ao mesmo tempo aqui, alhures e em lugar algum. Assim que ele aparece, as categorias distintas, as oposições nítidas, que dão coerência e racionalidade ao mundo, esfumam-se, fundem-se e passam de umas para outras: o masculino e o feminino, aos quais ele se aparenta simultaneamente; o céu e a terra, que ele une inserindo, quando surge, o sobrenatural em plena natureza, bem no meio dos homens; nele e por ele, o jovem e o velho, o selvagem e o civilizado, o distante e o próximo, o além e este mundo se encontram”. (pág. 77)

Dionísio elimina a distância entre os deuses e os homens, e estes dos animais. As Mênades eram as mulheres que se entregavam a transes enlouquecidos em honra de Dionísio. Elas eram conhecidas por sua dança frenética. Eram consideradas perigosas e imprevisíveis, e muitas vezes eram temidas pela sociedade grega.

“Sobre as Mênades, acredita-se que, longe de seu ambiente doméstico, das cidades, das terras cultivadas, elas brincam com as serpentes, amamentam os filhotes dos animais, como se fossem seus, e também os perseguem, atacam-nos e os dilaceram vivos (diasparagmós), devoram-nos inteiramente crus (omophagía), assimilando-se assim, em sua conduta alimentar, àqueles bichos selvagens que, contrariamente aos homens, comedores de pão e da carne cozida de animais domésticos ritualmente sacrificados aos deuses, se entredevoram e lambem o sangue uns dos outros, sem regra nem lei, sem nada conhecer além da fome que os impele. (pág. 78)

Para que se revele benéfica em sua doçura essa Potência de estranheza, cuja irrepreensível exuberância, cujo dinamismo invasor parecem ameaçar o equilíbrio da religião cívica, é necessário que a cidade acolha Dioniso.

Para que as Mênades se revelem benéficas em sua doçura, essa Potência de estranheza, cuja exuberância e força ameaçam o equilíbrio da religião cívica, é necessário que a cidade acolha Dionísio, reconheça-o como parte da vida na cidade e garanta a ele, ao lado dos deuses, um lugar no culto público.

Dionísio pode trazer tudo se os homens aceitarem reconhecê-lo. Plenitude, êxtase, entusiasmo, felicidade do vinho e também do teatro, prazeres do amor, exaltação da vida no que ela comporta de impetuoso e de imprevisto, alegria das máscaras e do travestismo, felicidade do cotidiano. Dionísio não preconiza a fuga para fora do mundo, não prega a renúncia nem pretende proporcionar às almas um tipo de vida ascético, o acesso à imortalidade.

Dionísio atua em nós para fazerem surgir, desde esta vida e neste mundo, em torno de nós e em nós, as múltiplas figuras do Outro. Dionísio nos obriga a nos tornarmos o contrário daquilo que somos comumente.

Uma outra corrente mística na Grécia é o orfismo. O orfismo é uma forma de religião que se tornou popular entre os gregos que estavam procurando uma forma de vida mais espiritual. Ensinava que a alma humana era imortal e que ela poderia ser libertada do ciclo de renascimento se vivesse uma vida virtuosa.

Dionísio não se coloca entre os humanos como um deus que prega a renúncia ao mundo, e nem pretende proporcionar às almas, um tipo de vida ascético, nem ao acesso a imortalidade. Ele atua para viver esta vida e neste mundo, em torno de nós e em nós, as múltiplas figuras do Outro. Dionísio abre a possibilidade de uma evasão para uma desconcertante estranheza. Dionísio nos obriga a tornar-nos o contrário daquilo que somos normalmente.

 No transe coletivo é o deus que vem a este mundo para apossar-se do grupo de seus fiéis, cavalgá-los, fazê-lo dançar e saltar a seu gosto. Os possuídos não deixam este mundo, eles são tornados outros pela potência que o habita.

Diferentemente de Dionísio, onde os possuídos não deixam este mundo; neste mundo eles são tornados outros pela potência que os habita. Os órficos são diferentes, é o indivíduo humano que toma a iniciativa, conduzindo o jogo para o outro lado. Graças aos poderes que ele soube adquirir, ele pode deixar seu corpo abandonado como que em estado de sono cataléptico, viajar livremente pelo outro mundo e retornar a esta terra conservando a lembrança de tudo o que viu no além.

Os órficos habitavam a mentalidade popular religiosa dos gregos. Em um primeiro momento, no nível da piedade popular, em que as superstições são obsedadas pelas máculas e as doenças, Platão os identificavam como sacerdotes mendicantes, adivinhos ambulantes que ganhavam a vida com sua competência em matéria de purificação. Muitos deles eram charlatães, que exploravam a credulidade popular.

Por outro lado, os escritos órficos criaram uma outra corrente, que modificou a vida espiritual grega. A tradição órfica inscreve-se, como o pitagorismo na linha dos personagens fora de série, excepcional pelo seu prestígio e seus poderes. Eram homens divinos cuja competência foi utilizada para purificar as cidades e que chegaram a ser considerados representantes do xamanismo grego. Nesse jogo órfico é o indivíduo que toma a iniciativa para ir para o outro lado, ou seja, ver o mundo de deus e voltar com a lembrança de tudo que se viu no além.

Possuir o controle dessa Psique, isolá-lo do corpo, concentrá-lo em si mesmo, purificá-lo. Sair do corpo, fugir para fora do mundo e manter uma união íntima com a divindade.

“A religião grega não conheceu o personagem do "renunciante". Foi a filosofia que, ao transpor para seu próprio registro os temas da ascese, da purificação da alma, da imortalidade desta, assumiu essa tarefa. Para o oráculo de Delfos, "Conhece-te a ti mesmo" significava: fica ciente de que não és deus e não cometas o erro de pretender tomar-te um. Para o Sócrates de Platão, que retoma a frase a seu modo, ela quer dizer: conhece o deus que, em ti, és tu mesmo. Esforça-te por te tomares, tanto quanto possível, semelhante ao deus” (pág. 88)

Fico por aqui e indico “Mito e Religião na Grécia Antiga”, de Jean Pierre Vernant, como um livro que merece um lugar de HONRA na sua estante.


Data: 03 agosto 2023 | Tags: História, Grega


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Mito e Religião na Grécia Antiga
autor: Jean-Pierre Vernant
editora: Martins Fontes
tradutor: Joana Angélica D’Avila Melo

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