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Os Bestializados- O Rio de Janeiro e a república que não foi

“Os Bestializados: O Rio de Janeiro e a República que não foi”, de José Murilo de Carvalho, é um clássico da historiografia brasileira. O livro traz uma reflexão sobre a prática da cidadania entre o povo brasileiro no início do República. Para isso, várias fontes são utilizadas, que vão desde os jornais da época a documentos oficiais, artigos, teses e livros de autores profundamente dedicados a estudar a República no Brasil. Podemos dizer que o trabalho é muito esclarecedor. E eu desde já indico a leitura, tanto do livro de que falaremos hoje como também a continuação deste livro, que é ”A Formação das Almas – O imaginário da República brasileira”, já resenhada aqui neste espaço.

Na polarização que vivemos nos dias de hoje, tornam-se para nós necessárias algumas atitudes: entendermos a nossa República, a nossa história política e as consequências dessa história nos dias atuais.

O livro se divide em cinco capítulos. Vou tentar resumi-los, sem esquecer de dizer que o estudo sobre a República não acaba nesses dois livros citados e resenhados. Existem outros. O autor inclusive, através de sua bibliografia, nos dá uma boa dica para aqueles que, por ventura, queiram se aprofundar no tema. Posso dizer que, a partir de agora, vamos estudar o Brasil aqui neste espaço, em todos os seus aspectos.

Logo na introdução, o historiador e cientista político José Murilo de Carvalho já deixa claro que a cidade do Rio de Janeiro é o espaço no qual ele vai se debruçar. O período vai da transição do Império e da República até o governo Rodrigues Alves. E logo de início ele vai tentar responder o porquê da expressão “povo-bestializado”. Essa bestialização encontra várias explicações. Aristides Lobo, que foi o propagandista da República, revelou-se desapontado com a maneira com a qual foi feita a transição da Monarquia para a República. Foi através de uma simples parada militar a maneira como se deu a passagem. O povo não foi chamado para ser o protagonista dessa transição. E é bom dizer que Aristides Lobo não estava só. O francês Louis Couty resumiu em uma frase a situação sociopolítica do Brasil: “O Brasil não tem povo”. Ao contrário da França, onde o contrário aconteceu, ou seja, a participação popular foi intensa, no Brasil, não foi bem assim. No entanto, uma coisa é certa: “Todo sistema de dominação, para sobreviver, terá de desenvolver uma base qualquer de legitimidade, ainda que seja a apatia dos cidadãos.” E o objetivo do autor é tentar entender que povo era esse, qual era o seu imaginário político e qual era a sua prática política.

O Rio de Janeiro era a maior cidade do país nos primeiros anos da República, com mais de 500 mil habitantes. Era, sem sombra de dúvidas, o melhor lugar para se desenvolver a cidadania. No entanto, com a abolição da escravatura, o contingente de subempregados e desempregados era enorme. Combinado a isso, a chegada de imigrantes estrangeiros, na sua maioria os portugueses.

Em 1892, o Rio de Janeiro era uma cidade perigosa para se viver. Nos primeiros anos de governo, reinou uma euforia da especulação financeira em torno da criação e negociação de ações. A Bolsa de Valores do Rio de Janeiro deu início a uma autêntica farra financeira, onde a lei era enriquecer a qualquer custo com o dinheiro da especulação. As consequências desse novo, vamos dizer “modus operandi” econômico foi o encarecimento dos produtos importados devido ao aumento da demanda e ao consumo conspícuo dos novos ricos. Hoje chamamos de consumo ostentação.

Se por um lado a especulação era o padrão, por outro os preços baixos do café no mercado internacional agravava a crise do país. O país entrou numa deflação. O aumento do custo de vida era agravado pela inflação. Com o desemprego em alta, estava se armando um cenário para um conflito. E com isso começa a dar as suas caras o aparecimento da ira capitaneada pelos jacobinos, que elegeram como alvo principal a imigração portuguesa, que na época controlavam o comércio e as casas de aluguel.

No campo político, podemos dizer que, com o advento do novo regime, os positivistas exerceram a tutela intelectual sobre a nação. Mas as divisões começavam a surgir. O entusiasmo dos intelectuais durou até o governo Floriano, quando se deu um racha. De um lado a República dos políticos, e de outro a República dos intelectuais, já não falavam a mesma língua. Em seu livro “A ética protestante e o Espírito do Capitalismo”, Max Weber  analisa a influência da Reforma Protestante, especialmente de cunho ascético na formação do capitalismo moderno. No Brasil não ocorreu isso. O capitalismo veio desacompanhado da ética protestante.

A confiança no enriquecimento sem esforço em contraposição ao ganho de vida pelo trabalho honesto foi incentivada pelo novo regime. Com isso, a epidemia da jogatina era a receita para se ter sucesso.

A Monarquia atingiu o seu ponto mais alto de popularidade quando a abolição da escravatura foi decretada. A reação da população negra à República era de ojeriza. Lima Barreto, neto de escravos, filho protegido do Visconde de Ouro Preto, o romancista mais popular do Rio de Janeiro, assistiu emocionado, aos sete anos, às comemorações da Abolição e às festas promovidas por ocasião do regresso do Imperador de sua viagem a Europa, também em 1888. Seu pai, que era operário da Tipografia Nacional, foi demitido pelos republicanos. Aliado a isso, tinha uma profunda aversão pelo Barão de Rio Branco, a quem acusava de renegar a parcela negra da população brasileira.

Se por um lado o Rio de Janeiro era a caixa de ressonância do país, por outro lado não tinha força política. Sua população era socialmente heterogênea, indisciplinada. Dividida por conflitos internos, não tinha condições de dar sustentação a um governo que tivesse de representar as forças dominantes do Brasil agrário.

Em síntese, podemos dizer que a expectativa inicial despertada pela República de maior participação popular foi aos poucos sendo frustrada.

Mas, se por um lado a baixa participação popular na política era fato, por outro lado a participação popular no Rio estava nas grandes festas populares, como as da Penha e da Glória. Havia colônias, como a inglesa e portuguesa; havia a pequena África no bairro da Saúde, formada por negros da Bahia. Havia os cortiços de Botafogo, que foram imortalizados por Aluízio de Azevedo em seu livro “O Cortiço”. Eram nesses subterrâneos que a cultura popular engoliu a cultura das elites. Através dessas comunidades renegadas pela República, foram surgindo os elementos que constituíam uma primeira identidade coletiva da cidade, materializadas nas grandes celebrações e no futebol brasileiro.

As ideias que apareceram no fim do Império e no início da República eram importadas da Europa. Na maioria das vezes eram mal absorvidas ou. nas palavras do próprio autor: “Eram absorvidos de modo seletivo, resultando numa confusão ideológica”

Liberalismo, Positivismo, Socialismo, Anarquismo misturavam-se e combinavam-se das maneiras mais insanas na boca e na pena de pessoas inesperadas. Mas, embora tenha sido captada de uma forma absolutamente desordenada, havia uma lógica que permeava toda essa loucura.

O liberalismo já havia sido implantado no regime imperial em quase toda a sua extensão. A Lei das Terras, de 1850, e a Lei das Sociedades Anônimas, em 1882, liberavam o capital, eliminando restrições à incorporação de empresas. A abolição da escravatura liberava o trabalho. A liberdade de manifestação e pensamento, a garantia à propriedade, tudo isso estava na Constituição de 1824.

Havia algo que unia os monarquistas e os republicanos: a exclusão dos pobres (seja pela renda, seja pelo analfabetismo), dos mendigos, das mulheres, dos menores de idade. Todos esses ficaram fora da sociedade política. A discriminação retirava a obrigação do governo de fornecer a instrução primária que constava no texto imperial.

O novo regime era um liberalismo antes de tudo antidemocrático. Para termos uma ideia na Constituição de 1891. retirou-se um dispositivo anterior que se referia à obrigação do Estado de promover os socorros públicos, o que já indicava que o novo liberalismo era uma ortodoxia liberal onde os direitos sociais não tinham significação alguma.

As consequências dessa rigidez do novo sistema republicano, sua resistência em ampliar a cidadania mesmo dentro da lógica liberal, fez com que o encanto inicial com a República rapidamente se esvaísse e desse origem à decepção e ao desânimo.

A esquerda, através do partido socialista fundado em 1899 no Rio de Janeiro, faz uma crítica, segundo a qual acusam a República de trocar do monopólio dos donos de escravos, do Império, para os repugnantes sindicatos políticos e industriais de uma poderosa oligarquia plutocrata tão perniciosa, como a aristocrática.

O Império copiou o modelo europeu de monarquia parlamentar, a República importou a parafernália institucional dos Estados Unidos.

Lima Barreto, em seu livro “República de Bruzundangas”, ironizando diria que:

”na República de Buruzundangas de há muito os políticos práticos tinham conseguido quase totalmente eliminar do aparelho eleitoral este elemento perturbador – o voto”. (pg 87)

Após um período em que a nova Republica viveu  uma forte especulação financeira proveniente de investir na Bolsa de Valores, Campos Sales teve que administrar uma recessão que veio em seguida. governo de Campos Sales saiu do Rio de Janeiro sob uma imensa vaia popular após implantar uma política de combate à inflação por meio de uma contenção drástica dos gastos do governo e do aumento de impostos, especialmente pela tarifa-ouro sobre os produtos de importação. Seu ministro da Fazenda conseguiu elevar o câmbio e produzir superávit orçamentário.

Rodrigues Alves manteve a mesma política financeira do governo anterior, mas resolveu intensificar as obras públicas financiado por recursos externos, conseguindo dar início à recuperação econômica. Foi ajudado pelo aumento dos preços do café, que estavam baixos desde 1896.

Pereira Passos, na ânsia de fazer da cidade suja, pobre e caótica uma réplica tropical de Paris, reformada pelo Barão de Haussman, baixara várias medidas que também interferiam no cotidiano do carioca, particularmente no tocante aos ambulantes e mendigos, todos recolhidos aos asilos. Foram proibidos cães e vacas na rua.

Foi nesse período que ocorreu a vacinação obrigatória, o que gerou uma grande revolta. Os motivos dessa revolta são vários. Os motivos baseavam-se tanto em valores modernos como tradicionais. Para os membros da elite, permeava os princípios liberais da liberdade individual e de um governo não intervencionista.

Essa retórica liberal foi difundida por positivistas e liberais ortodoxos, que alegavam que essa medida era tirânica e que interferia nas conquistas liberais das sociedades modernas. Para o povo, no entanto, o motivo era outro. Era a interferência do Estado nas virtudes da mulher e da esposa, a honra do chefe de família e a inviolabilidade do lar daqueles que aplicariam a injeção.

Ambas as alegações convergiam na oposição do governo além dos limites aceitáveis. Os dois lados estavam certos. De um lado, a tuberculose, a febre amarela, a peste bubônica, malária, tifo apavoravam os estrangeiros. A capital era motivo de vergonha à jovem República. Oswaldo Cruz escolheu três doenças como alvos principais: a febre amarela, a peste bubônica e a varíola. 

Tanto as classes dominantes como o povo convergiam na oposição à interferência do governo além dos limites aceitáveis. Houve nesse momento a fusão dos valores modernos com os valores tradicionais do povo, gerando uma ideologia de protesto. O inimigo não era a vacina em si, o inimigo era o governo, em particular as forças de repressão.

Bem, uma coisa fica clara: a revolta começou em nome dos direitos civis. Foi uma revolta fragmentada de uma sociedade fragmentada. Tal fragmentação tinha como contrapartida a alienação quase completa da população em relação ao sistema político que não lhe abria espaços.

Max Weber, ao estudar a cidade ocidental, via a cidade medieval como uma revolução na história e que contribuiu para o aparecimento da cidade moderna. A cidade medieval, em contraste com a cidade antiga, desenvolveu-se como coletividade de produtores individuais que introduziram uma nova prática de legitimidade política. Essa nova legitimidade baseava-se na associação de interesses dos burgueses, que com isso se tornavam cidadãos.

A cidade Medieval foi a primeira entidade política moderna à qual a própria burguesia (que inicia a Era Moderna) se opunha.

Tornou-se autônoma, com direito próprio, governo próprio, justiça própria, finanças próprias, defesa própria, governo próprio. O novo cidadão era admitido em termos estritamente individuais. Surge a partir desse movimento uma nova sociedade baseada na associação livre de produtores.

A cidade medieval, segundo Max Weber, contribui para o início do capitalismo moderno de empresa e do trabalho livre. Vários de seus traços foram incorporados ao Estado moderno.

Sobre o Rio de Janeiro, na opinião de José Murilo de Carvalho, os estudos de Max Weber podem sugerir algumas ideias. O Rio de Janeiro, ao contrário de São Paulo, ou mesmo Buenos Aires, era, sob o ponto de vista econômico, uma cidade consumidora e de pesada tradição escravista. Criada no século XVI como entreposto militar, aos poucos tornou-se centro comercial e político importante no mundo colonial português.

Na segunda metade do século XVIII, tornou-se sede da administração colonial com funções administrativas e comerciais. Reforçadas com a chegada da família real em 1808, que abriu os portos. Foi quando a cidade começou a adquirir feições mais europeias

Às vésperas da independência, os escravos eram 46% da população e a população branca não passava de 40%. O reflexo dessa situação de uma sociedade administrativa e comercial de base escravista fazia-se sentir em 1906, quando havia uma população ocupada com o comércio, transporte, administração e serviços domésticos, que, por sinal, era maior do que os trabalhadores da indústria.

 Ao contrário de São Paulo, que foi e ainda é uma cidade comercial, industrial, e culturalmente inovadora, o que marcou e ainda marca o Rio é a carnavalização do poder. Poucos meses depois da revolta da vacina, ela era objeto carnavalesco.

A conclusão de José Murilo de Carvalho é que a nossa República se consolidou sem a mínima participação eleitoral sobre a exclusão do envolvimento popular no novo governo republicano.

O discurso bonito do Estado não condizia com a realidade. Quem percebia isso não era bestializado. “Bestializado era quem levasse a política a sério, era o que se prestasse a manipulação (...)Quem apenas assistia, como fazia o povo do Rio por ocasião das grandes transformações realizadas à sua revelia, estava longe de ser bestializado. Era bilontra, ou seja, ardiloso, esperto e, antes de tudo, um gozador. (pg 160).

Fico por aqui e indico com o maior prazer uma obra que me foi muito útil para entender a nossa República.

“Os Bestializados: O Rio de Janeiro e a República que não foi”, de José Murilo de Carvalho, é um livro que merece um lugar de HONRA na sua estante.


Data: 24 junho 2021 | Tags: História


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Os Bestializados- O Rio de Janeiro e a república que não foi
autor: José Murilo de Carvalho
editora: Companhia das Letras

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