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Memórias Póstumas de Brás Cubas

Foi em 1881 o ano em que “Memórias Póstumas de Brás Cubas” foi publicado como romance. O enredo do livro traz inovações nunca vistas antes em nossa literatura durante o século XIX. A cidade do Rio de Janeiro havia passado por um processo de modernização após a chegada da Família Real, em 1808, e a independência do país em 1822. Cada vez mais populosa, a cidade encheu-se de comerciantes burocratas, funcionários públicos e outros diversos tipos sociais, que passaram a fazer parte do universo machadiano.

A literatura realista nasceu atrelada a diversas discussões relacionadas à política, sociedade, ciência, economia e cultura, sendo caracterizada por narrativas densas, de teor psicológico, com a preocupação dos escritores em problematizar e contextualizar o mundo vivenciado pelas personagens em suas obras. Em “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, temos um pequeno retrato do Brasil saindo de uma época colonial do século XIX, marcada por uma sociedade de latifúndios, de escravidão e da produção de gêneros primários para exportação. As classes sociais dividiam-se em: latifundiários, escravos e uma classe intermediária, os homens livres, e burocratas.

Em “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, o narrador conta as suas memórias depois de morto. O tempo é fragmentado, compreende os 64 anos de vida do protagonista, de 1805 a 1869. A obra é apoiada em dois tempos, o cronológico e o psicológico. O primeiro é desenvolvido pela ocorrência dos fatos na vida de Brás Cubas. Já o segundo pertence às memórias e divagações do autor durante o seu relato

“Algum tempo hesitei se devia abrir estas memórias pelo princípio ou pelo fim, isto é, se poria em primeiro lugar o meu nascimento ou a minha morte. Suposto o uso vulgar seja começar pelo nascimento, duas considerações me levaram a adotar diferente método: a primeira é que eu não sou propriamente um autor defunto, mas um defunto autor, para quem a campa foi outro berço; a segunda é que o escrito ficaria assim mais galante e mais novo. Moisés, que também contou a sua morte, não a pôs no introito, mas no cabo; diferença radical entre este livro e o Pentateuco” (pg 1).

O narrador protagonista está contando sua vida após ter morrido. Capítulos curtos, capítulos formados por pontos, exclamações e interrogações e capítulos em branco, antecipam a irreverência própria da narrativa moderna.

Uma das curiosidades da personalidade de Brás Cubas é que ele sonhava alcançar a fama pela invenção de um “emplasto” anti-hipocondríaco, destinado a aliviar a nossa melancólica humanidade.

“Essa ideia nada mais era nada menos que a invenção de um medicamento sublime, um emplasto anti-hipocondríaco, destinado a aliviar a nossa melancólica humanidade. Na petição tive o privilégio que então redigi, chamei a atenção do governo para esse resultado, verdadeiramente cristão. Todavia, não neguei aos amigos as vantagens pecuniárias que devem resultar da distribuição de um produto de tamanhos efeitos. Agora, porém, que estou cá do outro lado da vida, posso confessar tudo: o que me influiu principalmente foi o gosto de ver impressas nos jornais, mostradores, folhetos, esquinas, e enfim nas caixinhas do remédio, estas três palavras: Emplasto Brás Cubas”. (pag. 3)

Consegue apenas mais um fracasso para sua coleção de insucessos, ironizados na dedicatória do livro:

 “AO VERME QUE PRIMEIRO ROEU AS FRIAS CARNES DO MEU CADÁVER, DEDICO COMO SAUDOSA LEMBRANÇA ESTAS MEMÓRIAS”

A característica mais marcante do estilo machadiano é a digressão. A narrativa de Machado de Assis é constantemente interrompida por comentários metalinguísticos, intertextualidades, histórias paralelas e, principalmente, análises filosóficas da sociedade e do indivíduo. Isso faz com que seus enredos fiquem sempre fragmentados e embaralhados. Essa dificuldade de leitura, no entanto, é compensada pelo humor inteligente e pela estrutura dinâmica e moderna de seus livros.

Os primeiros nove capítulos do livro, apresenta ao leitor a morte e o motivo da morte, os instantes que antecederam, as pessoas presentes em seus últimos momentos, a genealogia do personagem e o delírio vivido por ele na passagem para o outro lado (morte). Brás Cubas morreu em decorrência de uma pneumonia, quando se empenhava na invenção do Emplasto Brás Cubas, que curaria a melancolia humana e lhe daria a glória eterna. À beira da morte, destaca a presença de três mulheres de sua vida, sua irmã Sabina e a filha, e Vigília, a mulher da vida de Brás Cubas.

O protagonista não é um herói, pelo contrário. Sua família construiu uma história de grandes feitos para encobrir a origem vulgar ou, para dar o melhor tom, poderemos dizer de uma procedência controversamente nobre, pois sua família, na verdade, é descendente de tal Damião Cubas, “tanoeiro de ofício”, que fabricava cubas, e lavrador, mas o avô Luís Cubas recontou os fatos, tornando seu antepassado herói das guerras contra os mouros. O pai de de Brás deu-lhe o nome atribuindo a si a descendência da família que fundou São Vicente. Como os Cubas paulistas contestaram, a família voltou ao passado de lutas na África.

“O fundador de minha família foi um certo Damião Cubas, que floresceu na primeira metade do século XVIII. Era tanoeiro de ofício natural do Rio de Janeiro, onde teria morrido de penúria e na obscuridade, se somente exercesse a tanoaria. Mas não; fez-se lavrador plantou, colheu, permutou o seu produto por boas e honradas patacas, até que morreu, deixando grosso cabedal a um filho licenciado Luís Cubas. Neste rapaz é que verdadeiramente começa a série dos meus avós – dos avós que minha família sempre confessou, - porque o Damião Cubas era afinal de contas um tanoeiro, e talvez mau tanoeiro, ao passo que Luís Cubas estudou em Coimbra, primou no Estado, e foi um dos amigos particulares do vice-rei Conde Cunha.

Como este apelido de Cubas lhe cheirasse excessivamente a tanoaria, alegava meu pai, bisneto de Damião, que o dito apelido fora dado a um cavaleiro, herói nas jornadas da África, em prêmio a façanha que praticou arrebatando trezentas cubas aos mouros. Meu pai era um homem de imaginação: escapou a tanoaria nas asas de um calembour”. (pag. 4, pag. 5)

Criado solto na infância, ele narra dois fatos. O primeiro sobre as influências sociais do personagem. Sem freios, justificou o apelido de menino diabo. Brás Cubas é filho de uma família rica e escravocrata e latifundiária e criado sob os mimos de um ambiente onde tudo é permitido.

“Desde os cinco anos merecera eu a alcunha de “menino diabo”; e verdadeiramente não era outra coisa; fui dos mais malignos do meu tempo, arguto, indiscreto, traquinas e voluntarioso. Por exemplo, um dia quebrei a cabeça de uma escrava, porque me negara uma colher do doce de coco que estava fazendo, e, não contente com o malefício, deitei um punhado de cinza ao tacho, e, não satisfeito da travessura, fui dizer à minha mãe que a escrava é que estragara o doce “por pirraça”; e eu tinha apenas seis anos. Prudêncio, um moleque de casa, era o meu cavalo de todos os dias; punha as mãos no chão, recebia um cordel nos queixos, à guisa de freio, eu trepava-lhe ao dorso, com uma varinha na mão, fustigava-o, dava mil voltas a um e outro lado, e ele obedecia, — algumas vezes gemendo, — mas obedecia sem dizer palavra, ou, quando muito, um — “ai, nhonhô!” — ao que eu retorquia: — “Cala a boca, besta!” (pag. 20, pag. 21)

Aprontava com as escravas se não lhe davam doce e fazia de Prudêncio, negrinho escravo, o cavalinho de todas as tardes, com arreio e cabresto. O segundo momento ocorreu durante o jantar promovido pelo pai para celebrar a queda de Napoleão. Brás Cubas tinha na ocasião nove anos e queria a sobremesa, mas teve que esperar que o Doutor Vilaça terminasse seu show de declamações. Ao ver Vilaça se dirigindo para o quintal com Dona Eusébia, seguiu os dois e voltou à sala, contando a todos as cenas de intimidade do casal. O pai reprimiu o filho em público, para rir com ele mais tarde.

Brás Cubas cresceu sob esse contexto histórico e cultural da sociedade escravocrata colonial, provavelmente repetindo comportamentos agressivos que observava. Muitos anos depois, quando Cubas já estava adulto e inclusive já havia se formado em Direito, na Universidade de Coimbra,  caminhando pelas ruas do Rio de Janeiro, deparou-se com uma cena impressionante: um preto estava vergalhando outro em uma praça. Por coincidência, o homem que estava chicoteando o outro era Prudêncio, o escravo que seu pai havia libertado alguns anos antes e que convivia com Cubas, quando pequeno.

Na escola ficaram as lembranças de Quincas Borba, a criança mais agradável com quem conviveu. Da família, destacam-se os tios, o Cônego Ildefonso e o solteirão, João, boa-vida. Enquanto o primeiro vislumbrava o futuro de Brás Cubas como um futuro religioso, o segundo previa que ele seria um boa-vida.

Foi seu tio João que acompanhou Brás Cubas quando este tinha 16 anos a uma ceia na casa de Marcela, que viria a ser o seu grande amor. Marcela era uma cortesã espanhola, que será o seu primeiro amor e sua primeira decepção amorosa. Com Marcela, iniciou sua vida sentimental e aprendeu que o amor existe na direta proporção do dinheiro, e o caminho para chegar ao coração de uma mulher passa por uma joalheria.

Essa paixão termina quando o pai entende que aquela aventura está custando demais e manda Brás Cubas para a Europa, a fim de que o filho curse a Universidade. Marcela, como fica claro, tem o seu interesse direcionado ao dinheiro do mancebo.

“Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos de réis nada menos. Meu pai, logo que teve aragem dos quinze contos sobressaltou-se deveras; acho que o caso excedia as raias de um capricho juvenil” (pág. 36)

 Quando embarca rumo à Europa, Brás Cubas está desiludido e planeja dar fim à sua vida, mas é impedido pelo capitão. Na Universidade de Coimbra, é um estudante medíocre. Estudar era apenas um detalhe pouco explorado. Ele se entrega à calaçaria, ou seja, à superficialidade e às aventuras amorosas. No entanto, consegue se formar. Sabe Deus lá como.

“Tinha eu conquistado em Coimbra uma nomeada de folião, era um acadêmico estroina, superficial, tumultuário e petulante, dado às aventuras, fazendo romantismo prático e liberalismo teórico, vivendo na pura fé dos olhos pretos e das constituições escritas. No dia em que a Universidade me atestou, em pergaminho, uma ciência que eu estava longe de trazer arraigada no cérebro, confesso que me achei de algum modo logrado, ainda que orgulhoso. Explico-me: o diploma era uma carta de alforria; se me dava liberdade, dava-me responsabilidade. Guardei-o, deixei as margens do Mondego, e vim por ali fora assaz desconsolado, mas sentindo já uns ímpetos, uma curiosidade, um desejo de acotovelar os outros, de influir e gozar, de viver, - de prolongar a Universidade pela vida adiante...” (pg44, pg45)

Depois desses anos em Portugal, ele volta ao Brasil a tempo de se despedir da mãe, que logo morre. Em seguida conhece Virgília, na época com 16 anos.

Virgília é a filha do Conselheiro Dutra, um importante político, e pai de Brás Cubas lhe sugere que fique noivo da moça. Era um casamento que impulsionaria sua carreira política, na Câmara dos Deputados. Tudo parecia se encaminhar para um desfecho favorável até o aparecimento do personagem Lobo Neves.

“-Promete que algum dia me fará baronesa?

- Marquesa, porque eu serei marquês.

Desde então fiquei perdido. Virgília comparou a águia e o pavão, e elegeu a águia, deixando o pavão com o seu espanto, o seu despeito, e três ou quatro beijos que lhe dera. Talvez cinco beijos; mas dez que fossem não queria dizer cousa nenhuma. O lábio de um homem não é como a pata do cavalo de Átila, que esterilizava o solo em que batia; é justamente o contrário.” (pag. 76)

Então, Virgília comparou a águia ao pavão, e elegeu a águia, deixando o pavão com o seu espanto, o seu despeito, e três ou quatro beijos que lhe dera”. Está claro que o “pavão” é Brás Cubas.

 Apesar de não ter casado com Virgília, eles continuam amantes. Ele encontra seu amigo de infância Quincas Borba, que agora é mendigo e mora na rua. Brás Cubas se assusta com a situação do amigo, oferece ajuda, mas ele só queria o dinheiro e, no final, rouba o relógio de Brás Cubas.

“Fui ter com Virgília; bem depressa esqueci o Quincas Borba. Virgília era o travesseiro do meu espírito, um travesseiro mole, tépido, aromático, enfronhado em cambraia e bruxelas. Era ali que ele costumava repousar de todas as sensações más, simplesmente enfadonhas, ou até dolorosas. E, bem pesadas as coisas, não era outra a razão da existência de Virgília; não podia ser. Cinco minutos bastaram para olvidar inteiramente o Quincas Borba; cinco minutos de uma contemplação mútua, com as mãos presas umas nas outras; cinco minutos e um beijo. E lá se foi a lembrança do Quincas Borba... Escrófula da vida, andrajo do passado, que me importa que exista, que molestes os olhos dos outros, se eu tenho dois palmos de um travesseiro divino, para fechar os olhos e dormir?” (pg99)

Apesar de casada, mantém uma tórrida paixão, até que o inesperado acontece. Lobo Neves ocupará a presidência de uma província, o que separaria os amantes, para desespero deles. Além disso, o caso entre os dois acaba chegando ao conhecimento de parte da opinião pública. Para tentar evitar um escândalo, Sabia (irmã de Brás Cubas) decide arrumar uma esposa para o irmão. Uma carta anônima chega às mãos de Lobo Neves falando sobre o adultério. Virgília nega. Então o marido assume finalmente a presidência da província. E com isso foi decretado o fim do relacionamento extraconjugal entre Brás Cubas e Virgília.

 Sozinho, Brás Cubas, que já está na casa dos quarenta e tantos anos de idade, decide que era hora de casar-se com Eulália, sobrinha de Cotrim. Mas uma tragédia acaba acontecendo e Eulália morre vítima de febre amarela. Torna-se deputado e, com cinquenta anos de idade, acaba se reencontrando com Virgília, que continua cada vez mais linda. Mas tudo havia acabado.

 Lobo Neves quase consegue se tornar ministro, mas morre poucos dias antes da nomeação. Quincas Borba começa a perder o juízo. Brás Cubas entra na Ordem Terceira, onde exerce esse cargo por três anos. Nesse período vê a sua primeira paixão morrer em um hospital de caridade, Quincas Borba acaba louco em função de sua precária situação financeira. E no final Brás Cubas conclui:

“Este último capítulo é todo de negativas. Não alcancei a celebridade do emplasto, não fui ministro, não fui califa, não conheci o casamento. Verdade é que, ao lado dessas faltas, coube-me a boa fortuna de não comprar o pão com o suor do meu rosto. Mais; não padeci a morte de Dona Plácida, nem a semidemência do Quincas Borba. Somadas umas coisas e outras, qualquer pessoa imaginará que não houve míngua nem sobra, e, conseguintemente que saí quite com a vida. E imaginará mal; porque ao chegar a este outro lado do mistério, achei-me com um pequeno saldo, que é a derradeira negativa deste capítulo de negativas: — Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria” (pág. 208).

Fico por aqui e indico com um grande prazer essa leitura deliciosa desse autor que é o maior do Brasil. “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, de Machado de Assis, merece um lugar de HONRA na sua estante.


Data: 04 maro 2022 | Tags: Romance


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Memórias Póstumas de Brás Cubas
autor: Machado de Assis
editora: Globo

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