Viúva, porém honesta
Nelson Rodrigues foi (antes de ser autor teatral) um jornalista que trabalhou por anos em diversas redações do Rio de Janeiro. Foi filho de jornalista, irmão de jornalista e, sabendo da força de sua profissão, sempre retratou em muitas de suas obras a imprensa de uma forma crítica. O sensacionalismo criminoso e a manipulação dos fatos foram retratadas em muitas de suas peças. Uma delas resenhada aqui: “Boca de Ouro”.
A sua entrada para a dramaturgia se deu, em parte, na época do casamento dele com uma das funcionárias do jornal O Globo, Elza Bretanha – que era apadrinhada do diretor administrativo e secretária do gerente do jornal. Estava vivendo numa situação limite, financeiramente falando. Elza estava grávida e seu salário não conseguia dar conta de suas despesas. Foi quando, certa vez, passando pelo Teatro Rival, viu uma enorme fila para a peça “A Família Lero-Lero”, de Raymundo Magalhães Júnior. Foi quando uma luz acendeu na cabeça de Nelson: por que não escrever para teatro? Foi em 1941 que ele escreveu a sua primeira peça, “A Mulher sem Pecado”, e, em 1943, escreveu a sua segunda e mais conhecida obra dramatúrgica: “Vestido de Noiva”. Suas 17 peças escritas lhe deram a fama. Mas mesmo assim continuou trabalhando como jornalista até o fim de sua vida.
Mesmo com a acolhida positiva de “Vestido de Noiva”, ele continuava sendo mal pago pelo O Globo e. em fevereiro de 1945, foi convidado por David Nasser, de O Cruzeiro, para um novo emprego: diretor de redação das revistas Detetive e O Guri. O salário dos Diários Associados era sete vezes maior do que Roberto Marinho lhe pagava. Ele acabou indo.
Nelson Rodrigues, que perambulava pela redação da revista à procura de “bicos”, soube que Freddy Chateaubriand queria comprar um folhetim francês ou americano para aumentar a tiragem em O Jornal, um dos veículos de propriedade de Assis Chateaubriand. Nelson ofereceu para escrever no novo folhetim e foi aí que nasceu “Suzana Flag” e “Meu destino é pecar”, com episódios de página inteira e 38 capítulos que elevaram a tiragem diária do jornal de três mil para quase trinta mil.
Nelson Rodrigues foi trabalhar para o jornal Última Hora, de Samuel Wainer. Foi aí que surgiu “A Vida como ela é...”. Em 1951, relançou “Suzana Flag” no folhetim “O Homem Proibido”. Nos anos 1970, voltou ao jornal O Globo e passou a publicar as colunas “À sombra das chuteiras imortais” e “As confissões”. Toda essa trajetória na imprensa era paralela ao seu trabalho de dramaturgo. Escreveu para novelas, participou de resenhas esportivas. E continuava a escrever para teatro.
“Viúva, porém honesta” foi escrita em 1957. Foi uma resposta aos críticos de sua peça anterior, “Perdoa-me por me traíres”, que se encontra resenhada aqui no site. A peça tem um caráter farsesco. Numa trama, cujos personagens são psicanalistas, médicos, donos de jornais e, principalmente, críticos de teatros, diabos, todos foram alvos do autor, que se divertia com a fauna intelectual da época.
Os personagens possuem um senso de humor imenso. Por exemplo, o dr. J.B. Albuquerque Guimarães (um escroque) é uma alusão ao antigo J.B. O jornalista Pardal é uma espécie de puxa-saco que, para não perder o emprego, é capaz de fazer loucuras, como transformar um fugitiva do SAM (hoje FEBEM) em crítico teatral. A medicina especializada também é homenageada na peça, principalmente quando convocados para discutir o comportamento sexual da viúva, representado pelos personagens Sanatório Lambreta e Lupicínio, e o maravilhoso e impagável Diabo da Fonseca, e Madame Cri-Cri, que, podemos dizer, faz o gênero emancipada.
Vamos à história?
Em “Viúva, porém honesta”, Nelson Rodrigues mata o marido antes do início da farsa propriamente dita e transforma prematuramente a esposa em viúva. A peça começa quando a história termina.
A história se passa quando o Dr. J.B de Albuquerque Guimarães, diretor do jornal “A Marreta”, um dos mais influentes do Brasil, não consegue convencer a sua filha única, Ivonete, a deixar de ir ao cemitério velar pelo seu antigo marido morto, Dorothy Dalton, e voltar a ter uma vida normal, uma vez que ela ainda é jovem e tem apenas 15 anos e pode se casar de novo e lhe dar netos. Detalhe: o marido morreu atropelado por uma carrocinha de picolé.
Ivonete, apesar dos apelos do pai, permanece irredutível de sua condição de enlutada. O falecido marido de Ivonete é um ex-fugitivo do SAM (hoje equivalente a FEBEM) e é homossexual. Tudo começou quando J.B. a mandou escolher um marido na redação por causa de uma gravidez indesejada, que fora detectada pelo médico da família, Dr. Lambreta, um velho totalmente maluco, que faz um diagnóstico totalmente irreal de gravidez de Ivonete, mais tarde comprovadamente falso, tudo inventado pela mente do esclerosado doutor.
Dr. J.B. é um empresário rico, mau patrão, explorador, machista, pai superprotetor, que se via na posição de o centro do mundo. Um homem capaz de nomear um ministro da República e pedir a cabeça do mesmo ministro no dia seguinte. Na primeira cena vemos de quem estamos falando.
“Dr, JB: Quem sou eu?
Pardal: O senhor não sabe?
Dr. JB: (furioso) – Responde: quem sou eu?
Pardal: O diretor deste jornal”
Dr. J.B.: E como é o nome deste jornal?
Pardal: A Marreta
DR. JB: Agora o meu nome, quero o meu nome!
Pardal: Dr. J.B.
Dr.J.B.(berrando) Por extenso, nome por extenso!
Pardal: Dr. J.B. de Albuquerque Guimarães!
Dr. J.B. : Dr. J.B. de Albuquerque Guimarães, bonito nome para um cartão de visitas!
Pardal: (apavorado) E a manchete doutor
Dr. J.B. : Ainda não acabei, Pardal. Responde eu sou importante aqui no Brasil? Eu mando e desmando? Ou pelo contrário, sou um fósforo apagado?
Pardal: Manda e desmanda!
Dr. J.B. : Tem certeza?
Pardal: O senhor nomeia até ministro por telefone” (pg10)
Pardal é uma espécie de assessor pessoal e redator-chefe do jornal A Marreta. Ele é subserviente ao chefe e um bajulador. Conversando com o Diabo da Fonseca, ele se refere ao chefe como um cavalo de 28 patas e ele mesmo um cretino.
“Diabo da Fonseca: Que tal o homem?
Pardal: Um cavalo
Diabo da Fonseca: De quantas patas?
Pardal: Vinte oito!” (pg19)
É Pardal quem sugere ao Dr.JB. no ato 1 de se encontrar com um homossexual fugitivo do SAM (uma espécie de FEBEM da época), que se transformou em Dorothy Dalton, , nome este adotado por causa da famosa atriz de cinema mudo, Dorothy Dalton. A contratação desse “crítico teatral” não se deve a um critério de talento ou experiência na área, mas o fato de ele ter a cara da nova geração.
Fugitivo: pois é, fugi de lá com o “Pola Negri”! Batiam na gente
Pardal: Tive uma ideia, e luminosa. Vem cá, ó... como é teu nome?
Fugitivo: Dorothy Dalton
Pardal: Bolei uma ideia, Dorothy Dalton. Vamos falar com o nosso diretor que é uma mãe, um caráter! Mas não fala, fica ouvindo, e deixa eu falar. (vão ao encontro do DrJ.B.)- Esse cara fugiu do SAM e...
Dr. J.B.: Entrega a polícia!
Pardal: Tive uma ideia melhor, diretor. É um troço maquiavélico. Que tal se a gente pegasse esse cara para fazer demagogia sórdida?
J.B.: Bem sórdida?
Pardal: É simples: a gente apanha o Dorothy Dalton e faz-se uma recuperação do bicho.
Dr.J.B: Isso é irrecuperável!
Pardal: Também acho, mas tem importância. O que interessa é a onda contra o SAM e a nosso favor. Ficaria demonstrado que o SAM, em vez de corrigir, corrompe. Ao passo que nós – veja bem - nós passaríamos pelos salvadores de uma besta como essa. Dá-se um emprego, um emprego qualquer e faz-se a demagogia.
Dr. J.B.: É uma ideia!
Pardal: Não é?
Dr. J.B.: Mas que tipo de função teria Dorothy Dalton, com esse nome de cinema mudo?
Pardal: Só vendo. Vem cá, Dorothy Dalton, chega aqui.
Dr. J.B.: Mas que figurinha!
Pardal: O que é que você sabe fazer? Antes de ir para o Sam o que você fazia?
Dorothy Dalton: raspava perna de passarinho com canivete!
Dr.J.B.: Bonito!
Pardal: (exultante) Já sei. Crítico teatral.” (pg26; pg27)
Preocupado com o estado da filha, que não consegue se comunicar e não sai do cemitério, ele chama uma comissão de especialistas em sexo a fim de resolver o caso. Dr. Lupicínio (o psicanalista); Madame Cricri (ex-cocote, o que equivale a meretriz); Dr. Sanatório (o Otorrino) e o Diabo da Fonseca.
Mas sabemos das intenções do Diabo da Fonseca logo no primeiro ato.
“Madame Cri-Cri: Você tem uma tara?
Diabo da Fonseca: Tenho, mas é inconfessável
Dr. Lupicínio: (depois de olhar para os lados) Deve ser uma tara muito grave!
Diabo da Fonseca: Gravíssima!
Madame Cri-Cri: Conta para nós, baixinho. Eu serr de confiança. Doutor também tem boca de siri.
Diabo da Fonseca: É uma coisa horrível, que me persegue desde a primeira chupeta. Eu digo, mas a senhora não pode contar para sua mãe.
Cri-Cri: Eu jura!
Diabo da Fonseca: Então, eu vou contar, baixinho, bem baixinho... (põe-se a berrar, como um possesso). Há uns milhões de anos que eu sonho com uma viúva. Dia e noite, só penso nela. É a minha sina madame.
Nelson deixa o seu humor cáustico correr à solta, criticando com uma profunda ironia, e não sem razão, o comportamento cínico do patrão, o dono do jornal A Marreta. O Diabo da Fonseca de Nelson Rodrigues não tem chifres. Mas ele promove a volta de Dorothy Dalton direto do inferno para o mundo dos vivos.
O Diabo da Fonseca ressuscita o marido de Ivonete, Dorothy Dalton, com a intenção de libertar a viúva de seu compromisso inicial de não trair a memória do falecido marido, pois, para trair, é preciso que o marido viva sua hedionda existência. Com o marido ressuscitado no final da peça, O Diabo da Fonseca, perverte a ex-viúva e a possui como amante. E a viúva torna-se esposa para poder voltar a traí-lo. Sendo assim a farsa está salva.
Fico por aqui e recomendo essa peça engraçadíssima com diálogos ágeis, que faz desse gênio Nelson Rodrigues um dos autores mais importantes do cenário teatral brasileiro. Viúva, porém honesta”, de Nelson Rodrigues, merece um lugar de destaque na sua estante.