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América

“América” é o romance menos conhecido de Franz Kafka. Para aqueles que gostam do autor, saibam que esse o romance muito diferente de todos os conhecidos, como, por exemplo, “O Processo” e “O Castelo”. Em “América”, não encontramos as bizarrices, como a sensação de abandono que o autor mostra em seus livros. Nesta obra, a história percorre outros caminhos.

O romance tem várias reviravoltas, que vai da pobreza para a riqueza, e da riqueza para a pobreza e um final feliz, pelo menos aparentemente. Ele começa com um tio poderoso que o enche de luxo, mas, no final da narrativa, ele não tem nada. Fica à procura de um trabalho, enfrentando todas as vicissitudes em um país estrangeiro.

“América” narra as desventuras do adolescente Karl Rossman, que fugiu de seu país e de seu lar por causa de um escândalo. Karl é uma figura desterritorializada,  é incapaz de interpretar o que vê, as imagens são instáveis e os objetos distorcidos, parecem borrados.

“De manhã como à noite, bem como nos sonhos noturnos, percorria essa rua um trânsito cada vez mais denso que, contemplado de cima, parece uma mescla sempre renovada e reformada de figuras humanas contorcidas e de tejadilhos de veículos de toda espécie e de tudo isto se eleva uma nova, multíplice e ainda mais desvairada mistura de rumores, pó e cheiros; e tudo isto, também era empolgado e permeado por uma luminosidade forte constantemente repartida, levada e logo sofregamente trazida uma vez mais pelo acervo de objetos, de tal modo materializada, alguém estilhaçar com todas as forças uma placa de vidro que tudo cobrisse nesta rua.” (pg 40)

Aqui existe a confusão de Karl quando ele se vê confrontado com uma mistura avassaladora de sons, cheiros e poeira. Uma mistura tóxica e ao mesmo entorpecedora, que obscurece as impressões olfativas, visuais e auditivas. Uma confusão perceptiva é ainda mais acentuada pela luz, que não ilumina. Pelo contrário, dispersa os limites dos objetos até que o olho humano fique totalmente deslumbrado.

Kafka, através de seu personagem Karl, nos mostra uma América (que aliás, ele não conhece) numa versão imaginada por ele. Uma metáfora moderna do sonho americano, onde ele cita a Estátua da Liberdade logo no início da história. A história de vida de seu tio Jacob na América e as possibilidades ilimitadas que caracterizam o mito americano. Seu tio Jakob mora em uma residência com seis andares superiores, elevador e varandas. A empresa gigantesca do tio Jakob, que, com seus telefonistas parece uma versão inicial de um call-center, o que simboliza a modernidade na sua acepção mais espetacular.

São detalhes descritos por Kafka que não denotam a realidade americana, mas, sim, uma versão especificamente europeia da América. Podemos dizer sem medo de errar que a Estátua da Liberdade, o trânsito na cidade de Nova York, os prédios enormes e os interiores são imaginados dentro de uma perspectiva europeia do jovem protagonista do romance, Karl Rossman.

 “Quando Karl Rossman – mancebo de dezesseis anos de idade, mandado para América pelos seus pobres pais após haver seduzido uma criada que, como consequência, dele tivera um filho – entrou no porto de Nova Iorque a borde do navio, já mais moderado na marcha, que o transportava, pareceu-lhe que Estátua da Liberdade há muito avistada, era agora banhada por uma luz solar subitamente mais intensa. O braço da espada em punho dava a impressão de ter acabado de se erguer, e em torno do seu vulto a brisa soprava livremente.” (pg 5)

A descrição da Estátua da Liberdade iluminada por uma súbita explosão de sol. O braço que segura a espada parece erguer-se de novo e, em volta da estátua, uma espada como símbolo de poder. Bem, em primeiro lugar, A Estátua da Liberdade tem uma tocha, e não uma espada. E essa distorção não para por aí, governa o romance através da geografia inexata, onde altas montanhas são erroneamente colocadas entre Nova York e Oklahoma.

A odisseia irreal mostra o jogo de poder de uma ordem social que depende inteiramente de mecanismos de exclusão para o seu senso de identidade. Em outras palavras, a degradação de Karl nas mãos daqueles que representam a ordem social e que precisam se afirmar excluindo. Mostra uma série de incidentes absurdos e muitas vezes terríveis que funcionam mais como uma advertência onde a América, ao invés de ser a terra de oportunidades, na verdade é uma terra onde os incautos seriam aproveitados de todas as maneiras, onde os ricos pisam nos pobres, onde o único caminho a seguir é através da corrupção e da bajulação, onde a política e o comércio e a vida cotidiana são inteiramente frenéticos, onde a degeneração e a perversão subterrânea ameaçam as vítimas inocentes. Não há sonho. Só há ilusão.

E o interessante é que são os personagens masculinos, como Tio Jakob, seu emissário, Sr.  Green, o chefe dos garçons e o porteiro do Hotel Occidental que representam a ordem impondo suas regras duras. No capítulo 2: A adoção de Karl pelo tio revela uma completa submissão a ele.  Sua expulsão no capítulo 3: Um solar perto de Nova York revela que aceitar o convite de Pollunder para passar a noite em sua casa foi, para o seu tio. uma traição, uma desobediência impossível de se aceitar. Foi o convite de Pollunder e do Sr. Green que desagradou o seu tio Jakob.

Os sócios de seu tio Jakob são o Sr. Pollunder e o Sr. Green, ambos com poder sobre Karl. É o convite de Pollunder que desagrada o tio de Karl, que manda uma carta através do Sr. Green, cujas ordens são o “cancelamento” de Karl de seu novo paraíso em Nova York.

 

A carta enviada a ele mostra esse rigor

“Querido sobrinho

Como já terás percebidos durante a nossa vida em comum infelizmente demasiado curta, sou um homem de princípios. Este facto é muito desagradável e triste, não só para os que os que me rodeiam como para mim próprio, mas a esses princípios devo tudo quanto sou, e ninguém pode exigir que me contradiga - ninguém, nem mesmo tu, meu querido sobrinho, nem que estivesse na primeira linha se alguma vez eu consentisse ser a vítima de um ataque geral dessa natureza. Se tal sucedesse, preferia agarrar-te e estrangular-te com estas duas mãos de que me sirvo agora para segurar no papel em que te escrevo. Como, porém, de momento, nada indica que tal possa acontecer, depois do caso ocorrido hoje não tenho outro remédio senão afastar-te de mim, e peço-te instantemente que não me procures nem tentes contatar comigo, seja por carta seja recorrendo a um intermediário. Contra a minha vontade, tomaste esta noite a decisão de me abandonares; permanece-lhe, pois, fiel durante toda minha vida; só assim se poderá dizer que foi uma decisão digna de um homem. Escolhi para portador desta mensagem o sr. Green, o meu melhor amigo, o qual decerto encontrará para ti palavras de indulgência que, na realidade, de momento me faltam. É um homem influente, e, até pela amizade que me dedica ampara-te -á com os seus conselhos e acções nos teus primeiros passos de vida independente. Para compreender a nossa separação, que, no final desta carta, se me afigura ainda incompreensível, tenho de repetir a mim próprio da tua família, Karl, nada provém de bom. Se o sr Green se esquecer de te entregar a tua mala e o teu chapéu-de-chuva, lembra-lho. Com os melhores desejos de futura prosperidade, sou. O teu fiel tio

 Jakob (pág. 88, pág. 89)

 

Tio Jakob é o primeiro de uma série de personagens masculinos que definem os mecanismos de exclusão. Ao expulsar Karl de seus cuidados, ele não está nem aí para as consequências de suas exigências, que levam o sobrinho ao fundo do poço. O mesmo cenário é reencenado quando Karl encontra e depois perde o emprego no Hotel Occidental. Com a exceção da figura materna da cozinheira-chefe, a vienense Grete Mitzelbach, que o adota oferecendo-lhe comida, alojamento e um emprego de ascensorista. No entanto, a cena do interrogatório no capítulo 6: O Caso Robinson mostra que seu impulso materno protegê-lo é severamente prejudicado pela autoridade masculina do garçom-chefe, que, como tio Jakob, exerce o seu direito de punir Karl por uma falta boba. O outro ponto de degradação se dá com a convivência de vagabundos como Delamarche e Robinson.

Karl conhece esses dois personagens desagradáveis, Robinson e Delamarche, que se aproveitam dele. Eles partem em busca de trabalho, comem às suas custas e roubam seus pertences. Karl escapa deles e chega ao Hotel Occidental, onde faz amizade com Grete Mitzelbach, a cozinheira-chefe, e é convidado a passar a noite.

Delamarche é um francês. e Robinson um irlandês. Eles agem desonestamente com ele, comportam-se de uma forma cínica, ridicularizam tudo o que Karl faz. Os dois pertencem a uma estirpe de imigrantes sem identidade. Karl os deixa, e vai trabalhar honestamente no Hotel Occidental.

Robinson reaparece no hotel bêbado e vomita na escada. Karl lhe oferece dinheiro para sair e o coloca em sua própria cama para ficar sóbrio. Mas isso leva Karl a abandonar o seu posto de ascensorista. Por essa falta, ele é entrevistado pelo garçom-chefe e pelo porteiro-chefe, e é depois demitido, apesar dos apelos de sua amiga, a cozinheira-chefe. Karl é fisicamente intimidado pelo porteiro-chefe, mas finalmente consegue escapar do hotel – apenas para encontrar Robinson esperando por ele novamente.

Karl e Robinson são levados para um prédio onde Delamarche estava morando. Uma briga ocorre. Karl consegue sair dessa confusão, mas é resgatado por Delamarche, que o leva de volta para um apartamento miserável, onde ele mora com Brunelda, uma ex-cantora. Robinson reclama com Delamarche e Brunelda que planejam passar a perna em Karl. Todos assistem a um comício político do apartamento. Karl escapa.

 Ele acaba se matriculando no Teatro Oklahoma, onde conhece uma velha amiga, Fanny, que está tocando trompete para dar boas-vindas aos recém-chegados.

“Numa esquina, Karl viu um cartaz com os seguintes dizeres: “Hoje das seis da manhã à meia noite na pista de corrida Clayton admite-se pessoal para o teatro Oklahoma. O grande teatro Oklahoma chama-vos”. Chama-vos só uma vez! Quem agora perder essa oportunidade perde-a para sempre! Quem pensa no seu futuro é conosco que deve estar! Todos são bem-vindos! Quem quiser ser artista dirija-nos. Somos o teatro que pode dar emprego a toda a gente, a cada qual no seu lugar! Damos já os parabéns a quem decidir por nós! Mas apressai-vos para serdes admitidos até à meia-noite! A meia-noite tudo se fecha para não reabrir mais! Maldito seja quem não acreditar em nós! A caminho de Clayton.” (pg 251)

 

Ele passa em um teste complicado e burocrático e é contratado como técnico. Ele acaba conhecendo seu colega ascensorista Giacomo do Hotel Occidental. Eles acabam viajando de trem rumo a Oklahoma. O teatro se apresenta como o paraíso terrestre.

 Nesse teatro, a realidade que nos é sugerida é que cada pessoa pode representar o papel que quiser no vasto teatro. Uma realidade que se parece a uma pirâmide onde cada onda de imigrante chega para substituir os imigrantes antigos, que sobem na escala social do emprego, até que a próxima onda chegue, pressionando todo o edifício social para outro patamar, e por aí segue.

 Max Brod, amigo de Franz Kafka, sustentou que este não deveria ser o final do livro. Kafka pretendia acrescentar mais um capítulo. No entanto, “América” é um romance incompleto, cujo final fornece uma certa esperança. Ao contrário de “O Castelo” e “O Processo”. Uma coisa é certa: “América” é um livro que merece um lugar de destaque na sua estante.


Data: 15 maro 2022 | Tags: Romance


< Viúva, porém honesta Piquenique na estrada >
América
autor: Franz Kafka
editora: Lisboa: Livro do Brasil 1963
tradutor: Jorge Rosa

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