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Piquenique na estrada

“Piquenique na estrada”, dos irmãos Arkadi e Boris Strugátski, foi escrita em 1971. Como vocês poderão ver nessa edição da editora Aleph, no posfácio as versões foram fortemente censuradas e acabaram sendo publicadas entre 1980 e 1990, no período conhecido como Perestroika, liderado por Gorbatchev. O livro tornou-se conhecido graças à versão cinematográfica de Tarkovski no filme “Stalker”. Uma obra-prima do cinema russo. Quem não viu, veja! É simplesmente sensacional. Uma aula de cinema. E existem games com o tema do livro. Esses eu não conheço.

Os irmãos Arkadi & Boris Strugártski tinham formações diferentes. Arkádi era tradutor, fluente em inglês e japonês; Boris, oito anos mais novo, era formado em matemática em São Petersburgo. Os irmãos tinham uma justa pretensão de levar os seus leitores a pensarem junto com eles. Em outras palavras, queriam que o livro fosse debatido. Nada mais justo. O slogan dos irmãos era: “Pensar não é entretenimento, mas obrigação”.

O livro, como já disse, foi escrito na década de 1970. Publicar um livro na União Soviética era uma tarefa hercúlea, sendo muito otimista com essa afirmação. Ainda mais escrever um livro de ficção que nada mais era que uma sátira ao regime.  O motivo, segundo os autores, que no posfácio dão uma explicação mais detalhada, deve-se à abordagem dura aos Stalkers (que significa em português: “perseguidores”). Os censores alegavam (pasmem!): a presença do fumo, de brigas de bar, obscenidades e insensibilidade, elementos que não condiziam com a prática comunista. Eles temiam que o romance pudesse influenciar, corromper a juventude comunista, que, segundo os censores, era muito “impressionável”. Em outras palavras, é o famoso me engana que eu gosto.

Para os burocratas, censores e políticos burocratas, a imaginação é algo que não pode ser cultivada, tendem a presumir que a ficção científica é algo inferior. Os irmãos Strugátski, nas palavras de Ursula K. Le Guin, que escreve que ambos os irmãos não eram óbvios, deixando que eles escreviam como homens livres. Um péssimo sentimento para um censor burocrata.

Mas foi no ano de 1989, depois de anos de repressão do governo soviético, que levaram a confrontos com o Ocidente, e com o Afeganistão, que os soviéticos viram-se economicamente e culturalmente falidos. A experiência socialista havia fracassado. No entanto, mesmo sabendo que o caos estava à beira de acontecer, as coisas permaneciam normais e as pessoas acreditavam nas autoridades, pois não conheciam outras alternativas. O patriotismo mascarava uma economia quebrada e sonhos desfeitos.

Os autores Arkady e Boris Strugatski descreveram em seu romance “Piquenique na Estrada” a vida após uma visita de extraterrestres de uma maneira inexplicável, não testemunhada por ninguém, apenas através da descoberta de “Zonas”, lugares sujeitos a uma espécie de irrealidade fora das leis naturais, onde nada é o que parece. E é um grupo de pessoas, chamadas de “Perseguidores” (Stalkers), que se arriscam a entrar nessas Zonas onde o perigo é iminente.

Nessas “Zonas”, havia guardas armados com ordens para prender ou matar, caso fosse necessário, qualquer um que tentasse entrar nessas regiões voláteis. Os governos temiam que certos artefatos deixados por alienígenas dentro das “Zonas” pudessem ter material suficiente para causar uma pandemia, prejudicar nações inteiras ou até mesmo destruir o planeta. No entanto, uma cultura surgiu ao longo do perímetro das Zonas. Homens conhecidos como “Stalkers” (perseguidores) que arriscavam suas vidas para recuperar ilegalmente artefatos alienígenas de dentro da Zona para obter lucros.  

“Com a Zona é assim: voltou com mercadoria, milagre; voltou vivo, sorte, foi ferido à bala pela patrulha, que bênção; e o resto é destino” (pg37)

Para ter acesso à Zona, os “Perseguidores” só podiam atuar durante a noite, já que a Zona era vigiada por soldados e cientistas. Apenas um em cada três “Perseguidores” conseguiu sair vivo das Zonas. Os artefatos deixados pelos alienígenas não eram compreendidos, alguns tinham propriedade benéfica como os “ocos”.

Há muito tempo ele estava quebrando a cabeça com esses ocos e, em minha opinião, sem qualquer benefício para a humanidade. Em seu lugar, eu já teria desistido há muito tempo e ido fazer outra coisa pelo mesmo dinheiro. Por outro lado, pensando bem, o oco é realmente uma coisa misteriosa e até mesmo incompreensível, por assim dizer. Quanto eu já carreguei nas costas, e todas a vez que vejo um fico impressionado, não tem jeito. E eles são apenas dois discos de cobre, paralelos, do tamanho de um pires com uns cinco milímetros de espessura, com uma distância entre eles de uns 400 milímetros. E só, não há nada entre os discos, só o vazio. Nada mesmo, só o vazio. Você pode enfiar a mão entre eles ou até a cabeça, se tiver pirado de3 vez e quiser tirar prova. Vazio e Vazio. Só o ar mesmo. No entanto há algo entre os discos, está na cara que há, uma força qualquer, penso eu, pois nunca ninguém conseguiu nem apertar os discos um contra o outro, nem separá-los (pg 23, pg 24)

Outros artefatos eram mortais, como a “Lâmpada da Morte”, que emitia raios destruindo toda vida ao redor. Esses artefatos acabam atraindo contrabandistas criminosos conhecidos como Stalkers (perseguidores), que se infiltram nas Zonas e vendem mercadorias deixadas pelos alienígenas no mercado negro. Esse trabalho requer cuidados, pois essas “Zonas” contêm perigos, o que inclui anomalias gravitacionais capazes de esmagar os indivíduos; lodo que queima a carne e o osso; trituradores invisíveis que torcem seres humanos até a morte como pano de chão.

A maioria dos artefatos não tinham uma função conhecida porque foram descartados pelos alienígenas. No entanto, o artefato mais desejado era a “Esfera Dourada”, que diziam ter o poder de realizar qualquer desejo, mas estava localizada em locais de impossível acesso dentro da Zona e cercada por armadilhas.

A história gira em torno de um perseguidor (Stalker) chamado Redrich Schuhart, um assistente de laboratório de 28 anos do Instituto de Culturas Extraterrestres no Canadá. É um “perseguidor” ousado competente e malandro da cidade. Seu apelido é ruivo por causa de seu cabelo vermelho brilhante. Ele despreza a autoridade, os novatos falantes e os perseguidores que quebram o código de honra. Um solitário que fala duro e age duro. Ele é temperamental, mas ao mesmo tempo é calmo e frio. Tem reflexos rápidos. Possui um instinto de sobrevivência e um conhecimento das peculiaridades da Zona.

Dois anos atrás Redrick havia cumprido uma sentença de seis meses de prisão por contrabando de artefatos da “Zona” e, embora tenha escapado das autoridades com sucesso desde então, ele ainda atua como “perseguidor”. Ele é durão experiente que liderou e sobreviveu a várias expedições na Zona de Visitação no Canadá.  O instituto onde ele trabalha estuda itens recuperados da Zona. Ao entrar com seu amigo Kirill na Zona para recuperar um artefato específico, Redrick perde o amigo. Esse evento o leva à depressão e ao alcoolismo. Ele sente que poderia ter sido evitado e se culpa pela morte do amigo.

A namorada de Redick, Guta, estava grávida e decide ficar com o bebê. As expedições frequentes à Zona por Stalkers acaba causando mutações em crianças. Guta dá luz uma filha, que é feliz e inteligente. Uma criança normal e feliz, torna-se cada vez mais reclusa. Ela desenvolve um rosto mal-humorado, pele marrom áspera e uma limitação cognitiva.

Buzzard Burbridge é um outro personagem que faz parte da galeria dos “perseguidores”. Um homem infame, um sobrevivente conhecido por sua falta de companheirismo ao deixar amigos em apuros durante suas incursões. Ele é um espancador de mulheres, um sádico. Foi salvo por Redick durante uma incursão à Zona. Acaba perdendo suas pernas e acaba aleijado. Seu mérito é o amor aos filhos.

Um outro personagem sensacional é o Dr Valentine Pilman, um irônico ganhador do Prêmio Nobel canadense, o físico sênior da Zona. Tem excelentes sacadas. Uma delas é o que define a história e o título do livro e sua reflexão sobre a presença dos extraterrestres na terra e sobre a Zona:

“Um piquenique. Imagine uma estrada no interior, uma clareira na mata, perto da estrada. O carro sai da estrada e vai até a clareira. Abrem-se as portas, e sai uma turma de jovens. Começam a tirar do porta-malas cestas de mantimentos, armam tendas, acendem a fogueira. Churrascos, músicas fotos... De manhã, eles vão embora. Animais pássaros e insetos da floresta, que assistiram horrorizados àquele evento noturno, saem de seus esconderijos. E o que eles encontram? Manchas do óleo que pingou no radiador, uma lata com um pouco de gasolina, velas e filtros usados. Do lado, estão jogados os panos sujos de óleo, as lâmpadas queimadas, uma chave de fenda que alguém esqueceu na grama. Nos rastros deixados pelo carro sobrou um pouco de lama que veio grudada de algum brejo no caminho... E, claro, cinzas na fogueira, restos de comida, embalagens de chocolate, latas e garrafas de bebida, guardanapos amassados, bitucas, um lenço perdido, um velho jornal rasgado, um canivete de bolso derrubado por alguém, moedas, flores murchas do campo vizinho...

- Entendi – resumiu Nooman. – É um piquenique na beira da estrada.

- Exatamente. Um piquenique na beira de alguma estrada cósmica.” (pg 208)

 

“... Espere – disse Valentin em tom apaziguador. Escute isso: “Vocês me perguntam em que consiste a grandeza do homem?” - começou a citar. – Ter criado uma segunda natureza? Ter acionado forças de magnitude quase cósmica? Ter um espaço de tempo insignificante se apoderado do planeta e aberto a janela para o universo? Não! Está no fato de que, apesar de tudo isso ele sobreviveu e está determinado a continuar sobrevivendo.” (pág.  209)

Os perseguidores (Stalkers) vão mudando à medida que a história vai avançando. Primeiramente os personagens se assemelham a garimpeiros que assumem riscos pessoais para ganhar o seu ouro, depois eles assumem uma característica de gângsters que traficam e contrabandeiam, finalmente eles se revelam piores.

 A Zona é um lugar de maravilhas e terrores, cheio de ocorrência mortais, condições atmosféricas que podem matar um perseguidor em um piscar de olhos, além de efeitos inexplicáveis. Como a filha de Redick, que nasceu saudável e normal em todos os sentidos, mas por acaso acabou com defeitos congênitos estranhos.

“... Inteligência é a capacidade humana de cometer ações irracionais ou antinaturais.

- Pois é, essa nos descreve bem – concordou Noonam.

Infelizmente, sim. Existe também outra definição – hipótese, segunda a qual a Inteligência é um instinto complexo que ainda não se formou por inteiro. Quer dizer, a ação huimana é sempre racional e natural. Serpa necessária, porém, a passagem de milhões de anos para esse instinto termine d se formar, e então pararemos de cometer erros que, provavelmente, são parte inseparável da própria natureza da razão. Mas se alguma coisa mudar no universo, seremos rapidamente extintos, justamente porque teremos desaprendido como cometer erros, ou seja, como testar várias possibilidades não prevista pelo rígido programa racional” (pág. 206)

 O herói dos irmãos Strugátskys, ao contrário de qualquer distopia, triunfam, numa vitória sobre si mesmo.

“Sou um animal, não vê? Apenas um animal que não possui palavras. Não aprendi a falar e não sei pensar, pois aqueles canalhas não me ensinaram a pensar! E se você for mesmo... todo-poderosa, onipotente e onisciente... Então resolva! Examine minha alma, eu sei que lá tem tudo de que você precisa. Deve haver. Pois nunca, jamais vendi minha alma para ninguém! Ela é minha, humana! Extraia de mim o que eu desejo, pois não é possível que eu deseje algo mau...

 Maldição! Não consigo inventar nada além dessas palavras: FELICIDADE PARA TODOS, DE GRAÇA, E QUE NINGUÉM SEJA INJUSTIÇADO!” (pág. 296)

“Piquenique na estrada”, de Árkadi & Boris Strugátski, merece um lugar de HONRA na sua estante.


Data: 22 maro 2022 | Tags: Ficção científica


< América As Três Irmãs >
Piquenique na estrada
autor: Arkadi Strugártski, Boris Strugártski
editora: Aleph
tradutor: Tatiana Larkina

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