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Neuromancer

O Livro “Neuromancer”, de William Gibson, completa trinta e seis anos neste ano de 2020. Sua publicação coincidentemente se deu no ano orwelliano, “1984”. Pode parecer um pouco irônico e carregado de simbolismo de outra obra gestada no mesmo ano falando sobre o mesmo tema, ou seja, a distopia. A visão de William Gibson sobre distopia ajudou a mudar a maneira como os autores de ficção científica olham para o futuro introduzindo conceitos como hackers em ficção popular.

 Outro ponto que merece destaque é que, no decorrer da leitura de “Neuromancer”, é impossível não pensarmos em um filme: “Matrix”, dos irmãos Wachowsk. Durante a leitura, cheguei a pensar que o filme fora baseado nesse livro. Mas não há relação. Existem semelhanças. Ambos fazem parte do gênero cyberpunk. Para aqueles que não conhecem esse gênero de literatura e de filme, há invasões corporais, invasão da mente, interface entre cérebro-computador, inteligência artificial, circuitos implantados na pele, cirurgia estética, alteração genética, tudo isso redefine radicalmente a natureza humana, criando concomitantemente uma nova subjetividade. Uma nova forma de fruir a realidade se estabelece.

Podemos dizer que o gênero cyberpunk, além de encarnar mundos altamente tecnológicos (high tech), encarna também o universo underground, dominado por hackers, criminosos e usuários de drogas. Cyber circunda a realidade virtual, a inteligência artificial, a tecnologia da informação e tecnologias destinadas à alteração do corpo humano como já dissemos.

“Case tinha 24 anos. Aos vinte anos era um cowboy, cowboy fora da lei, um dos melhores do Sprawl.  Ele havia sido treinado com os melhores, Mc Coy Pauley e Bob Quine, lendas do negócio. Na época, operava num barato quase permanente de adrenalina, subproduto da juventude e da proficiência, conectado a um deck de ciberespaço customizado que projetava sua consciência desincorporada na alucinação consensual que era a matrix. Ladrão que trabalhava para outros ladrões, mais ricos, empregadores que forneciam software exótico necessário para penetrar as muralhas brilhantes de sistemas corporativos, abrindo janelas para campos de dados.” (pg 26)

Cowboy aqui tem o sentido te hacker. A matriz fictícia de Gibson é diferente da dos irmãos Wachowsk, pois conecta pessoas que vivem em todo o mundo e é usada para conduzir negócios. O autor até imagina criminosos cibernéticos quebrando programas de computador para roubar dinheiro e informações pessoais, um conceito estranhamente familiar para as vítimas de crimes cibernéticos modernos.

Em "Matrix" (o filme), existem dois mundos apresentados. O primeiro mundo é uma cidade urbana moderna. Existem arranha-céus, empresários e mercados movimentados. Esse mundo é uma construção artificial criada por máquinas para manter os seres humanos ocupados enquanto os humanos são colhidos para obter-se energia. Este mundo artificial é conhecido como a "matriz". A matriz se parece muito com qualquer cidade moderna na virada do século XXI. Embora os seres humanos vivam em um mundo artificial criado por máquinas, eles não sabem disso.

O livro “Neuromancer” foi impulsionado pela “exuberância irracional” dos anos 1990, quando a globalização começou a atingir níveis de complexidade, e o fim da URSS dá início a essa civilização que entendemos agora. O livro na verdade é o primeiro da “trilogia do Sprawl”, seguido de Count Zero (2008) e Mona Lisa Overdrive (2008). Todos traduzidos para o português. Mas confesso que eu não li os outros. Mas vou ler.

Levando-se em conta os últimos livros que resenhei do George Orwell, “A Revolução dos Bichos” e “1984”, somando-se ao “Admirável Mundo Novo”, de Aldous Huxley, todos criaram uma distopia baseada nos cenários de guerra fria.

Gibson cria um cenário onde a Revolução Digital começava a dar os seus primeiros passos. Em outras palavras, os cenários são muito diferentes. E, por conseguinte, as relações sociais são totalmente diferentes.

“O céu sobre o porto tinha cor de televisão num canal fora do ar.”

Sentiram a pressão? Pois é assim que o livro vai te levando para um mundo no qual aos poucos estamos nos transformando.

O romance se passa em um futuro distópico, em que a tecnologia avançou tanto que permitiu que os humanos entrassem em uma matriz onde poderiam viver uma segunda vida. A tecnologia também permitiu que os humanos criassem Inteligência Artificial, capaz de sentir e desenvolver as mesmas necessidades de um ser humano normal. Embora algumas máquinas se parecessem com humanos, os humanos perderam a sua humanidade, tornando-se parecidos com as máquinas que os criaram, vivendo no limite entre seres humanos e as próteses criadas por essa nova sociedade. Para que vocês entendam o que eu estou falando:

“Julius Deane tinha cento e trinta e cinco anos de díade. Seu metabolismo era constantemente alterado por uma fortuna semanal em soros e hormônios. Sua primeira linha de defesa contra o envelhecimento era uma peregrinação anual a Tóquio onde cirurgiões genéticos ressetavam o código de seu DNA, um procedimento que não era disponível em Chiba” (pg 33)

Os conceitos apresentados em “Neuromancer” são um pouco difíceis de entender. Por exemplo, existe o “mundo real”, o mundo em que todos nós habitamos e vivemos hoje, mas este mundo está distante do futuro. Os cenários estão em um futuro próximo, em que a tecnologia e o hipercapitalismo se tornaram dominantes. Seu universo é constituído por imensas corporações, essas corporações que governam o mundo, muito excludente, onde a maioria da humanidade encontra-se no limbo. Dessas margens saem os protagonistas do cyberpunk. Estes são criminosos ou anarquistas que se rebelaram contra a ordem estabelecida e, especialmente, hackers.

Existem tecnologias e processos sofisticados que não existem no mundo de hoje, como robôs que realizam várias tarefas, cirurgiões plásticos que podem lhe dar qualquer modificação no rosto ou no DNA que você deseja e médicos que podem substituir qualquer órgão arruinado ou com falha do corpo humano. Esse mundo real é a nossa Terra, mas no futuro.

No início do romance, o personagem principal, Case, está morando em Ninsei, um distrito de Chiba no Japão. Case (o personagem principal) está localizado no Sprawl, o Eixo Metropolitano de Boston-Atlanta nos EUA. Também existem referências a lugares como Austrália, Finlândia, Áustria, Suíça, França, Holanda e a antiga União Soviética. No romance, os personagens viajam para o espaço sideral para visitar Sião. Sião é um mundo de luz do dia artificial, gravidade zero e comandantes da nave espacial rastafári.

O ambiente urbano é imenso. E é no submundo violento e cheio de crimes da cidade de Chiba, no Japão. O nosso herói chama-se Case, um hacker profissional que trabalha para empresas como ladrão de dados. Antes de se transformar em ladrão de dados, ele trabalhava numa grande corporação e roubou dados de seus empregadores. Foi descoberto e, como punição, o empregador o envenenou com uma toxina que destruiu sua capacidade de acessar a rede global de computadores conhecida como Matrix.

Case vive no limbo tentando sair do caminho das drogas. Vive como um criminoso em Night City, um lugar na periferia da cidade japonesa de Chiba. Nesse cenário periférico urbano pós-industrial, em que a pobreza e a violência convivem, é onde se passa a primeira parte da narrativa. Case trabalha para um traficante para obter sua droga juntamente com Linda Lee, cuja namorada é uma viciada à beira da autodestruição.

“Night City era como uma experiência malsucedida de darwinismo social, projetada por um pesquisador entediado que não tirava o dedo do botão fast-foward. Pare de assaltar e você afunda sem deixar rastros, mas mova-se um pouco rápido demais e você quebra a frágil tensão de superfície do mercado negro; de qualquer uma das duas maneiras, você já era, e não sobra nada seu a não ser uma vaga lembrança na mente de uma figura tipo Ratz, embora o coração, os pulmões e os rins possam sobreviver a serviço de algum estranho que neoienes para pagar os tanques das clínicas.” (pg 26)

Depressão e apatia por perder seu sustento levaram Case a se tornar um viciado em drogas. A depressão e o desespero rondam a sua vida, quando a personagem Molly aparece e oferece a oportunidade de cura para Case. Mas, obviamente, neste mundo sujo, a última coisa que encontraremos é um bom samaritano. Molly é descrita como uma mulher magra, atlética, atraente, alta, com pele pálida e seios pequenos. Seu corpo é livre, limpo e musculoso como uma dançarina. Seu cabelo é curto o suficiente para ser confundido com um homem.

Molly se apresenta:

“Meu nome é Molly. Estou coletando você para o homem para quem trabalho. Ele só quer falar com você, só isso. Ninguém quer te machucar.

- Que bom.

- Só que às vezes eu machuco as pessoas, Case. Acho que é o meu hardware. – Ela vestia jeans de couro preto justíssimos e uma jaqueta preta grande feita de algum material fosco que parecia absorver a luz – Se abaixar essa arma de dardos, você vai se comportar, Case? Você parece do tipo que gosta de se arriscar estupidamente.

- Epa, sou gente boa. Sou o maior mané, sem problema.

- Isso é ótimo, cara. - A pistola de dardos desapareceu dentro da jaqueta preta. _ Porque se você tentar foder comigo, vai fazer uma das maiores merdas de toda a sua vida.” (pg 48)

Molly é a única personagem feminina que luta e está dentro do núcleo central, que é essencialmente masculino.  Na história, Molly e Case mostram uma intimidade desde o primeiro encontro. Embora não haja sugestão de sentimentos mais profundos, esses personagens têm uma química superficial que é evidente, dando-nos a impressão de um sentimento que vai além, desde o início.

Molly Million, personagem central do livro não se encaixa nas características femininas estereotipadas como indefesa ou fraca. Ela é a reversão do estereótipo feminino. Case, o personagem masculino da história, recebeu uma oportunidade de cumprir uma missão. Case está sempre seguro com Molly, enquanto ela é agressiva para realizar uma missão. As melhorias tecnológicas em Molly são o poder simbolizado que lhe dá a diferença no papel feminino. Ser uma cyborg é ser feroz, rápido e ousado, assim como Molly é.

Além de Molly, temos uma gama de personagens, como um rastafári, um ilusionista holográfico bem como um veterano do exército enlouquecido cuja mente esquizofrênica foi possuída pela inteligência artificial. Ex-boina verde chamado Armitage, um ex-espião para o governo dos Estados Unidos. Gravemente ferido após uma operação fracassada. Uma coleção intensificada de habilidades visitadas em personagens que estão mutilados ou incompletos, principalmente o “morto”, cuja mente se tornou o programa mainframe organizador. Desse modo, os personagens vão se completando de uma maneira ou de outra, principalmente o morto cuja mente se tornou um programa.

O busílis da história é quando um grupo de hackers reúne-se para fazer um grande assalto numa propriedade valiosa e roubar o disco rígido de um computador avançado de uma poderosa corporação cuja sede é baseada em satélite no espaço. Villa Straylight é uma residência misteriosa no último setor da estação espacial orbital de Freeside − um híbrido entre uma cósmica Las Vegas, um porto livre e um resort de férias. Villa é um labirinto que esconde uma coleção de artefatos estranhos. Finalmente, é um lugar assombrado por inteligência artificial onde o combate deve ser travado. Essa é a missão desses hackers.

O herói na verdade é um anti-herói – um criminoso, ladrão, um viciado. Fica então a pergunta: será que eles conseguem?

Bem, aí eu deixo com vocês para desvendar essa trama cheia de pontos de virada, idas e vindas, que vai tirar o seu fôlego. Apenas aconselho algumas coisas: primeiro, consulte o glossário. Depois, leiam com muita atenção, pois não é um romance fácil.

Para concluir, gostaria de dizer que talvez a origem da palavra do título do romance, Neuromancer, pode nos dar uma pista sobre o que William Gibson quer nos mostrar. Neuro vem de sistema nervoso, e Mancer, ou Mancy, tem o mesmo sufixo de necromancia, que significa o conhecimento de um mundo sobrenatural. Quem segue a prática geralmente é um mágico. A combinação Neuromancer seria o mago que trabalha sua magia no sistema nervoso, obtendo conhecimento.  O sistema nervoso conecta todos os nossos cinco sentidos, tato, olfato, visão, audição e paladar, todos juntos. Sem nosso sistema nervoso, não poderíamos receber informações do mundo. Podemos dizer que é o sistema nervoso que cria a nossa realidade.

A história de Gibson talvez tente nos mostrar que, mudando a maneira como captamos informações, nós mudamos o que pode ser considerado realidade, o mundo à nossa volta e nosso relacionamento com ele. Por exemplo, quando Case entra em contato com Neuromancer, uma inteligência artificial que pode criar um mundo em que as pessoas podem viver e crescer dentro dele, fica a pergunta: será isso possível de acontecer em um mundo distópico?

Fico por aqui e indico apernas dizendo que o livro é muito mais do que essa resenha, mas creio que ela poderá ajudar você, caso se interesse em ler o livro. O livro “Neuromancer”, do escritor William Gibson, tem um artigo no final muito bom da professora Adriana Amaral, que define o livro como uma potência imaginária. Um livro que merece um lugar de destaque na sua estante.


Data: 15 julho 2020 | Tags: Ficção científica


< Bufo & Spallanzani Macunaíma o herói sem nenhum caráter >
Neuromancer
autor: William Gibson
editora: Editora Aleph
tradutor: Fábio Fernandes

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