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Snow Crash

Após muitos meses sem postar nada devido a um descolamento de retina no olho direito e um descolamento de vítreo no olho esquerdo que me impossibilitou de ter contato visual com a tela de um computador por um longo período de tempo, estou voltando aos poucos. Apesar de não conseguir ficar na frente do computador porque me dava dores de cabeça insuportáveis, isso não acontecia quando ficava lendo em livro de papel. O que em outras palavras eu quero dizer é o seguinte: li muito nesse período. Desde o início de janeiro, li vários romances, alguns ensaios e continuo lendo. Agora que minha visão resolveu me dar um descanso,  começo apresentando um livro surpreendente: “Snow Crash”, do escritor Neal Stephenson.

O livro foi lançado quando a internet ainda estava engatinhando, no início da década de 1990. Após a publicação desse livro nos EUA, estabelecer lugares simulados de interação virtual passou a ser uma verdadeira obsessão para os criadores de ambientes de realidade virtual. Como, por exemplo, os chats, que foram uma das primeiras conformações virtuais, e logo depois o “Second Life”.

“Snow Crash” inspirou o “Second Life”. E o que vem a ser isso? Para aqueles que nunca tiveram contato com isso, digo que “Second Life” é um ambiente interativo em 3D focado em relações sociais. O metaverso do Second Life estabelece, por meio de seu avatar, a possibilidade de construir e modificar o ambiente virtual que o cerca. O berço do metaverso está nos videogames contemporâneos, onde o usuário é substituído por um avatar. Os metaversos de Neal Stephenson são estranhos e politicamente incorretos, e a história do livro se passa em dois ambientes. No metaverso, ou seja, no mundo virtual, e no mundo real.

Para você que não tem muita intimidade com tecnologia, vamos explicar o que significa o metaverso. Aqueles que por ventura frequentam o mundo geek sabem o que eu estou dizendo. Os geeks são pessoas que têm uma relação excessiva com tecnologias, por tudo que é novo, no tocante a videogames e computação. Pego emprestada a definição apresentada na dissertação de mestrado de Itamar de Carvalho Pereira,  de título “Metaverso, Interação e comunicação em mundos virtuais” – por sinal, excelente –, que define metaverso da seguinte forma:

“Metaverso são programas computacionais de alto desempenho que viabilizam uma projeção de identidade e uma realidade simulada em gráficos tridimensionais, interagindo com outros usuários por meio de personagens digitais, ou avatares”. (pg 30)

“Snow Crash” começa com a apresentação do personagem principal, Hiro Protagonist, um motorista que pilota um carro blindado de alta tecnologia. Um homem com uma missão. Um homem com maravilhosos brinquedos de alta tecnologia e espada samurai, que trabalha para a máfia fazendo uma das poucas coisas que os Estados Unidos ainda fazem melhor do que qualquer outro país do mundo: entregar pizza em altíssima velocidade. Por aí podemos ver o humor do romance.

 

“Hiro está se aproximando da Rua. Ela é a Broadway, a Champs Elysées do Metaverso. Ela é o bulevar muito bem iluminado que pode ser visto, miniaturizado e de costas, refletido nas lentes de seus óculos. Ela não existe de verdade. Mas neste exato momento milhões de pessoas a estão percorrendo para cima e para baixo. As dimensões da Rua são fixadas por um protocolo, enfiado a marretadas pelos mestres ninjas da computação gráfica do Grupo Protocolos Multimídia Globais para Maquinário de Computação. A Rua parece ser um grande bulevar que percorre toda a extensão de um equador de uma esfera negra com um raio de pouco mais de 10 mil quilômetros. Isto lhe dá uma circunferência de 65.536 quilômetros, o que é considerado maior que a Terra.” (pg 30)

No Metaverso, Hiro Protagonist desenvolve não apenas software, mas também sua identidade. “Hiro não sabia se era negro ou asiático, se ele era rico ou pobre, educado ou ignorante, talentoso ou sortudo. ”

O personagem principal de Snow Crash é um autoproclamado mestre samurai, hacker no espaço tridimensional da Internet chamado “Metaverse” e entregador de pizza. Ele se junta ao YT (Yours Truly), um mensageiro skatista de 15 anos, e ao tio Enzio, um chefão da máfia. Os bandidos são representados por L. Bob Rife, um evangelista pentecostal e monopolista de fibra ótica, e Raven, um nativo das ilhas Aleutas que usa motocicletas e bombas nucleares do tamanho aproximado de uma casa. O catalisador de todo esse negócio do bem contra o mal é “Snow Crash”, um vírus que funciona tanto no "metaverso" quanto no mundo real, que o L. Bob Rife pretende usar para infectar o mundo.

Snow Crash é um vírus neurolinguístico. Com isso quero dizer que a ideia do livro é um meme que foi enterrado no fundo do cérebro humano e esquecido até que os bandidos dessa história descubram como desbloqueá-lo. Stephenson aproveita a teoria da memética, que foi introduzida por Richard Dawkins em 1976 em seu livro “Gene Egoísta”.

Dawkins disse que os memes podem ser outra maneira pela qual os humanos evoluem além da mutação genética. De acordo com a teoria, os memes são ideias que os seres humanos transmitem uns aos outros através das gerações e podem ser responsáveis ​​por ideias duradouras como religião, moralidade e rotação de culturas.

Hiro descobre que o evento relacionado à Torre de Babel – onde todos falavam a mesma língua, única e original, a língua adâmica, e de repente se viram isoladas uma das outras por diferenças linguísticas –foi resultado de uma inoculação viral feita por um antigo rei-sacerdote sumério. Até então, os homens eram uma monocultura e transmitiam conhecimentos através de ideias virais, em vez de pensamento consciente.

No sentido de proteger a humanidade de ser exterminada por um poderoso vírus chamado Asherah (nome de uma deusa-mãe que aparece nos mitos de várias culturas antigas), que afetou tanto seu físico quanto seus métodos de pensamento, o sacerdote-rei Enki descobriu Nam-shub, um contravírus que reprogramava cérebros humanos de modo que eles não conseguiam mais entender o sumério e tinham que diversificar, frustrando o vírus. O vírus sobreviveu na humanidade da mesma forma como o vírus da herpes vive nos humanos por suas teses.

No livro, Neal Stephenson, faz uma interpretação bem original. Segundo o autor, os líderes religiosos pré-cristãos controlavam as massas com o meme Snow Crash. Os segredos do vírus foram perdidos na história até que L. Bob Rife (o cara mau da história) descobre que o componente biológico desse vírus permaneceu adormecido, impedindo que essa endemia se espalhasse.

O autor utiliza-se de mitos para justificar os hackers conectados ao “Metaverso”.  Hiro pergunta à sua namorada Juanita: “Essa coisa do Snow Crash – é um vírus, uma droga ou uma religião?”. Ela responde: “Qual é a diferença?”.

Uma série de fatores fazem de Snow Crash um grande livro, incluindo suas observações sobre psicologia social e comportamento humano, que Neal Stephenson faz através de personagens fictícios. As ideologias são vírus, as religiões são um produto de receptores localizados em nossas células cerebrais. Somos todos suscetíveis à atração de ideias virais, como, por exemplo, a histeria em massa. Ou uma melodia que muitas vezes chamamos de música chiclete, ou seja, aquela música que gruda em nosso cérebro. Piadas, lendas urbanas, há sempre essa parte profunda e irracional que nos torna hospedeiros de informações autorreplicantes.

 Fico por aqui. Espero ter ajudado você que está lendo essa resenha a ler esse livro. Digo e repito: não é um livro fácil para aqueles que não se interessam por ficção científica. No entanto, para aqueles que gostam desse gênero de literatura, posso dizer que é um livro simplesmente genial. Um livro que merece um lugar de destaque na sua estante.


Data: 25 abril 2018 | Tags: Ficção científica


< O homem duplo Rio - Paris - Rio >
Snow Crash
autor: Neal Stephenson
editora: Aleph
tradutor: Fábio Fernandes

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