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Rio - Paris - Rio

Não conhecia Luciana Hidalgo, autora do livro Rio-Paris-Rio. Para ser bem franco com vocês, a conheci no Facebook. Fiquei impressionado, quando, por uma mera curiosidade, pesquisei sobre a autora: é vencedora de dois Jabutis, sendo o primeiro com o livro “Arthur Bispo do Rosário – o senhor do labirinto” (editora Rocco) em 1996 e o segundo com o livro “Literatura de urgência – Lima Barreto no domínio da loucura” (editora Annablume) em 2008. Em 2011, Luciana migrou do ensaio para a ficção ao lançar o livro “O passeador” (editora Rocco), que foi finalista dos prêmios Jabuti, Portugal Telecom e São Paulo de Literatura. E foi em 2016 que lançou o livro que vamos comentar a seguir chamado “Rio- Paris-Rio”, também pela editora Rocco.

Quando tomei conhecimento de sua importância no mundo acadêmico e no mundo literário, somados à feliz coincidência “facebookiana”, ou seja, conhecê-la através da flânerie moderna, que é a internet, resolvi matar a minha curiosidade e dizer cá com os meus botões: a hora é esta. Peguei e devorei o livro em um dia e meio.

Confesso que foi uma surpresa muito agradável. O livro não é bom; é simplesmente ótimo. Luciana Hidalgo tem o domínio total de sua narrativa. E consegue uma proeza que, em minha opinião, é coisa de quem tem o gene da escrita, ou seja, sua prosa troca carícias com a poesia, sem perder a dinâmica. O ritmo do narrador, que está em terceira pessoa, mostra uma total intimidade com a cidade de Paris em 1968. E com todos os personagens que povoam a história. É uma história de amor, de uma solidão a dois vivida por dois exilados. Maria (a protagonista) é pensada da seguinte forma: Arthur é uma espécie de “Ítaca móvel, flutuante, como deve ser as Ítacas”.

Costumo dizer aos meus amigos mais chegados que um dos momentos mais gloriosos da modernidade no século XX foi a Segunda Guerra Mundial (apesar da grande catástrofe humanitária que esse período significou). Explico. A frente popular contra o nazismo uniu todos os diferentes: comunistas, liberais, sociais-democratas, democratas burgueses, um leque imenso de diferenças políticas e filosóficas unidas para derrotar o grande inimigo em comum, o nazismo.

Na França ocupada, a resistência não foi diferente. Havia intelectuais, como Louis Aragon, Emmanuel Mounier, Paul Éluard, Julien Benda, Simone de Beauvoir, Claude Bourdet, Jean-Marie Doménach, Maurice Merleau-Ponty, Pierre Emmanuel, todos pró-soviético, como havia também intelectuais, tais como Albert Camus, Raymond Aron, François Mauriac, André Breton e André Mauraux, que mantinham uma crítica duríssima contra o stalinismo. Sem esquecer os gaulistas, todos participaram da resistência. Todos unidos contra o inimigo comum.

Quando a guerra acabou, as diferenças voltaram com força total. A esquerda e a direita confrontavam-se nas universidades. A luta agora não era através das armas, mas através da hegemonia das ideias.

“A Sourbonne é esse maciço feito por séculos de estudos, leituras, ensinamentos que aí permanecem, numa outra frequência, cruzados e confundidos, e ao final... fracassam” (pg 75).

Após, a reconstrução da Europa com o Plano Marshall, uma nova geração crítica surge e cria uma verdadeira “Primavera”. E não ficou restrita a Paris, EUA (guerra do Vietnã), México, Praga, Berlin, Rio de Janeiro (na passeata dos cem mil), entre vários outros lugares do globo.

No Brasil o caldo engrossou no ano de 1968, quando os militares, sob a justificativa da luta armada por parte de uma esquerda (“abduzida por palavras de ordem”), teve um papel essencial na chegada do AI5. A partir daí, as barbaridades do regime militar tornaram-se domínio público, depois que a abertura lenta, gradual e segura chegou a seu ápice em 1979, com a anistia. Há relatos acachapantes de torturas e mortes misteriosas, que aconteceram não só no Brasil, mas em quase toda a América do Sul.

É um pouco antes de 1968 que o romance se inicia. Maria é uma estudante de filosofia, encontra-se exilada em Paris após a chegada dos militares ao poder em 1964. Fala um francês quase sem sotaque. Seu objeto de estudo é Descartes, em particular sua obra principal: “O Discurso do Método” (cogito ergo sum):

“Ela vê Descartes em tudo: na palavra, no gesto, no humor francês. Talvez não perceba o clichê que isso representa, é como os turistas que no Brasil só veem a mulata, o samba, a praia, a mulata-que-samba-na-praia. Mas não é só. Assim como as belas mulheres rebolativas que estão por toda parte no Rio, o espectro do filósofo realmente flana com frequência pelo Quartier Latin. Agora mesmo seu nome aparece nas capas dos livros expostos na vitrine da editora J. Vrin, logo ali, do outro lado da praça. (pg 9)

Em outras palavras, em toda essa loucura existe um método (cartesiano) que auxilia os franceses a verem a vida de um modo tão próprio. No entanto, logo após conhecer Arthur, um artista de rua, Maria abandona Descartes. Arthur, seu novo amor, se transforma em seu método.

“A verdade é uma bela mademoiselle de ar aristocrático que um dia foi ali na esquina comprar cigarro e nunca mais voltou. Inútil espera.

A aluna anda em crise com a filosofia na faculdade”.(pg76)

Arthur, cujo nome é uma homenagem ao poeta Arthur Rimbaud, submete-se a regras básicas da dinâmica social capitalista, onde tudo deve ser visto como mercadoria, incluindo a própria poesia. Arthur vende os seus versos, devido ao processo de metamorfose: da palavra como mercadoria, e do poeta como um mero operário das letras.

“Arthur faz versos sob encomenda a partir do tema sugerido. Amor, raiva, fossa ou política, marxismo, revolução. Imaginação não falta, mas é verdade que, de acordo com o freguês, tem já a sua caixinha de estrofes prêt-à-porter. Afinal, mudam as cidades, paisagens, pessoas; repetem-se os amores, desejos e frustações, explica ele a Maria, a poesia como negócio.” (pg 34)

Mais adiante a narradora diz:

“Para Arthur, importa viver artisticamente, não ”ser artista”. Está sempre de olho nos $$$ que rende a arte. Tudo cria e recria sem desenhar do lado prático. É um ser pragmático, define a filósofa Maria, em tentativa cada vez mais frágil de classificar o que quer que seja, muito menos o namorado.” (pg 34)

Arthur não é um poeta clássico que perambula pela cidade de Paris em estado de abandono e de solidão, que namora o precipício. Ele tem a consciência de seu papel, ele não vive como um poeta agônico do século XIX de Baudelaire que pressente o próprio desaparecimento em meio ao esplendor das luzes dos “paraísos artificiais” das grandes cidades. “Ele é um ser pragmático”. Ele não é um hippie, que aspira viver em uma comunidade, ele é centrado nessa aventura que todos chamam de vida. Seria ele também um cartesiano? Bem, isso vocês verão ao longo do enredo.

Existem momentos de solidão e melancolia de loucura quando os alunos de Nanterre e da Sourbonne almejam nada mais nada menos que “a imaginação no poder”. Sem fru-frus lisérgicos, Maria, em determinados momentos prefere, “a lucidez dos patos”.

“Ela não confia mais em revolução, direita, esquerda, menos ainda na razão como norte de sua bússola existencial” (pg 137).

Maria e Arthur têm a consciência de que nessa festa revolucionária de Paris eles são apenas convidados, e não donos da festa. A festa deles é o Brasil, mas não podem ir para lá por questões políticas. O que sobra? O que sobra é uma história maravilhosa, poética, triste como a vida e alegre como a vida. Rio-Paris-Rio, de Luciana Hidalgo, é um livro que merece um lugar de destaque na sua estante.


Data: 02 maio 2018 | Tags: Romance


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Rio - Paris - Rio
autor: Luciana Hidalgo
editora: Rocco

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