Crônica do Pássaro de Corda
Haruki Murakami é um dos autores que ganharam reconhecimento não só no Japão, mas no mundo inteiro. Existe uma legião de fãs que espera que o autor receba o Prêmio Nobel, com a champanhe na geladeira. Sem dúvida alguma, Murakami possui uma escrita rara, uma escrita não convencional, e talvez esteja aí (pelo menos em minha opinião) o seu segredo.
Temas de perda e isolamento permeiam esse romance. Cada personagem é tocado por uma grande perda. No entanto, há também uma forte discussão de como algumas pessoas trabalham para alcançar um poder sobre suas emoções, pensamentos e subconscientes.
Vamos ao livro?
O protagonista Toru Okada é um homem sem trabalho, que acaba virando dono de casa. Acabou desistindo de continuar a profissão de advogado, pois desistiu de fazer algo que seria o equivalente ao exame da OAB no Brasil. Sua mulher, Kumiko, trabalha em na editora de uma revista de comida saudável.
Certa vez, enquanto cozinhava seu espaguete, Okada recebe um telefonema estranho de uma mulher que parece saber detalhes sobre sua vida; ela lhe solicita sexo por telefone. Okada ignora o telefonema e sai para procurar o gato que havia desaparecido. O gato era de sua esposa, que lhe dera o nome de Noboru Wataya, em “homenagem” ao irmão dela. Uma homenagem? Bem, não era bem assim, era apenas um lembrete de que essa escuridão chamada Noboru ainda vivia dentro dela.
O passado de Noburo Wataya, o irmão de Kumilo, é sombrio. Ele é o oposto do nosso protagonista e esconde um segredo obscuro que iremos conhecer quase no final da história. Frívolo, calculista; sem dúvida, o antagonista dessa história.
O desaparecimento do gato de Kumiko é um evento que, à primeira vista, não tem muita repercussão, mas desencadeia outros eventos no desenrolar do romance, como o aparecimento de uma menina chamada May Kasahara na vida de Okada, que por sinal era sua vizinha, uma menina de dezessete anos que trabalha contando as pessoas carecas nas ruas. Ela trabalha em uma loja de perucas. E promete ajudar Okada a procurar o gato.
Enquanto isso, o casamento do Okada está cada vez mais tenso, dando sinais de falência, já que Kumiko começa a chegar em casa do trabalho cada vez mais tarde e sai de casa cada vez mais cedo. Podemos mais ou menos insinuar o que está por trás disso tudo? Em parte, sim, mas existem coisas muito mais complexas por trás do comportamento de sua mulher, que não direi, obviamente.
Se as coisas já não estavam fáceis para o lado de Okada, um acontecimento no mínimo insólito acontece: ele recebe um telefonema de uma clarividente que pesquisa elementos místicos da água. Seu nome é Creta Kanoo. Ela alega que o desaparecimento do gato marca o início de uma série de eventos que mudarão a vida de Okada. Creta Kanoo tem uma irmã, Malta Kanoo. Creta e Malta são (como todos sabem, Creta que fica na Grécia, e Malta, no Mediterrâneo) duas ilhas, e ambas têm um passado estranho e curioso, mas eu não quero falar sobre isso sob o risco de spoiler. A única coisa que posso dizer, sem problema algum, é que ambas são uma espécie de guias místicos. Uma delas pode entrar, por exemplo, no subconsciente dos outros através dos sonhos; a outra pode ver o futuro imediato.
A partir desse momento, a vida de Toru, que sempre foi normal, começa a sofrer uma estranha transformação. Ao seu redor, personagens cada vez mais estranhos aparecem, e a realidade degrada, torna-se algo fantasmagórico.
Como já era esperado, Kumiko, sua esposa, o deixa, e Toru Okada procura freneticamente por ela. O mundo de Okada desmorona, porque ele não consegue se convencer com a ideia de que Kumiko não vai voltar, apesar de todas as evidências apontarem para essa separação, principalmente depois de receber uma carta dela contundente, enviada através de seu irmão Noboru Wataya, em que falava sobre a existência de outro homem em sua vida.
Okada percebe que existe, na carta de Kumiko, um subtexto em que ela pede para ser salva, não de uma forma física, mas mental. Okada se lembra do que Kumiko lhe contara sobre sua infância difícil, durante a qual sua irmã, a favorita da família, morreu. Quer saber o motivo? Para o seu bem, não direi.
Okada, por sua vez, revela seu ódio pelo cunhado, um acadêmico pomposo sem nenhuma convicção real e presença cada vez mais proeminente na mídia japonesa. Filho de uma família influente no Japão, almeja cargos políticos de relevância.
Ele vai começar uma investigação obsessiva para descobrir o que aconteceu com sua esposa, tentar ajudá-la e fazê-la voltar para casa. O grito de uma ave não detectada, que é o título do romance, é ouvido periodicamente durante a jornada de Toru, e é usado como indicador do mal.
May Kasahara, sua vizinha, mostra um poço em uma casa abandonada. Nesse poço, ele é capaz de se conectar com sua própria consciência. Além disso, ele tem um sonho recorrente sobre um quarto de hotel. Toru logo descobre que é capaz de atravessar a parede entre o poço e o quarto do hotel, onde uma mulher o seduz. Depois de passar pela parede pela primeira vez, Toru descobre uma marca azul-escura em sua bochecha direita, que lhe dá poderes de cura.
Há dois eventos especialmente violentos no romance que influenciam a visão de mundo do protagonista. O primeiro ocorre quando Toru segue um homem que carrega um violão. A segunda cena violenta acontece quando Toru atravessa a parede até o quarto 208. Curiosamente, esse ato violento em particular também traz alguma resolução ao subconsciente de Toru. Toru Okada viaja através de diferentes encarnações de si mesmo durante o romance.
Se Lewis Carroll teve sua toca de coelho, o escritor japonês Haruki Murakami tem seu poço seco, um lugar escuro que é muito mais que um poço de solidão, é um poço de possibilidades transformadoras. Em busca de sua esposa desaparecida, Okada deve entrar no poço para descobrir o paradeiro de sua consciência e assumir a responsabilidade por seu próprio passado e de seu país.
Foi numa curva do destino que ele acaba descobrindo o Sr. Honda e suas memórias terríveis da Segunda Guerra Mundial. O Sr. Honda, um ex-soldado durante a guerra, revive a perda do Japão na batalha em Nomonhan, na fronteira da China com a Mandchúria, e esse massacre simboliza a violência sem sentido e os males políticos, passados e presentes, que assombram o Japão na segunda metade do século XX. Engenhosamente, Murakami dá um cavalo de pau na narrativa, levando a uma história de detetive que se utiliza de um realismo e uma especulação metafísica para catapultar o narrador para o lugar surreal onde mistérios são resolvidos e o mal é confrontado.
“Crônica do Pássaro de Corda”, de Haruki Murakami, é uma prosa que mostra em grande parte o frio e a agitação simultâneos dos medos adormecidos. Os personagens envolvem-se com as suas narrativas que contam suas histórias – histórias de escuridão e brutalidade. O final do livro não é nem feliz nem trágico. Uma leitura desinteressada do livro não vai oferecer prazer, já que a realidade e os sonhos misturam-se com frequência. Por isso, devo dizer que “Crônica do Pássaro de Corda” é um livro que não pode ser explicado racionalmente, tem que ser experimentado, vivido. Um livro simplesmente maravilhoso. Por isso indico essa obra-prima, que merece um lugar de destaque na sua estante.