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O homem duplo

O livro de hoje é de um escritor conhecido de muitos vocês: Philip K. Dick. Considero esse autor um visionário. Suas obras já foram filmadas. A mais famosa é “ Blade Runner - O caçador de androides”, que na década de 1980 alcançou um grande sucesso. Esse filme foi considerado cult e até hoje, apesar da refilmagem, continua sendo. Não quero me alongar falando da vida de Philip K. Dick. A única coisa que faço questão de dizer é que se tratava de um quase profeta. E o livro de que falaremos hoje se chama “O Homem Duplo”, que foi filmado em desenho.

Gostaria de contar aos leitores deste espaço que fiz uma pesquisa para facilitar o entendimento desse livro. Penso que essa resenha poderá facilitar a leitura. Não que o livro seja muito difícil. Não é. Mas também não é um livro fácil. Esta resenha procura levantar algumas questões e fazer uma ligação da história do livro, que se passa na década de 1970, com o presente. De fato, Philip K.Dick, é um visionário. O futuro que está nascendo é um futuro que nos leva ao autoritarismo. E você entenderá à medida que ler a resenha. Pois essa é a minha conclusão sobre a obra.

Antes de entrar no livro propriamente dito, transcrevo aqui uma afirmação desconcertante presente na orelha dessa obra escrita em 1972, com uma visão de futuro não muito distante: “Neste ambiente opressor, o governo perdeu definitivamente a batalha contra o tráfico...”.

Hoje vemos discussões sobre a descriminalização das drogas como forma de acabar com o tráfico, e a pergunta que me faço depois de ler esse livro é: quais os tipos de drogas que estão aparecendo no mercado, principalmente americano e pouco a pouco no Brasil, que está fritando os cérebros de seus usuários? Drogas sintéticas de alto teor, de que falaremos mais adiante.

Mas antes vamos falar do LSD, que foi a primeira droga fabricada pela indústria farmacêutica Sandoz, pelo químico Albert Hofmann na Basileia, Suíça, enquanto procurava um estimulante para o sangue. Seus efeitos eram desconhecidos até 1943, quando Hofmann acidentalmente consumiu um pouco de LSD. Descobriu-se mais tarde que uma dose oral pequena de 25 microgramas era capaz de produzir alucinações vívidas.

O LSD tinha alguns elementos químicos em comum no cérebro, e seus efeitos parecidos com a psicose. Foi usado em experiências psiquiátricas nos anos 1940, 1950 e 1960. Apesar dessa droga não possuir nenhum uso medicinal, amostras grátis foram distribuídas pela Sandoz, o que levou a um amplo uso da substância.

O LSD foi popularizado nos anos 1960 por indivíduos como Timothy Leary, que encorajou estudantes americanos a usar LSD com o lema “Você tem que se ligar, sintonizar e cair fora”. Essa é mensagem de Philip K. Dick no livro, quando apresenta a maioria dos personagens  como amigos que morreram  de overdose.

Das 64 mil mortes por excesso de uso de substâncias em 2016 nos Estados Unidos, 20.145 foram por opiáceos sintéticos, uma categoria dominada pelo fentanil. Dos 25 opiáceos sintéticos que apareceram na Europa, dezoito são derivados de fentanil, um analgésico cinquenta vezes mais potente que a heroína. Prince morreu de overdose, assim como Michael Jackson.

Outra droga que agora está sendo usada pelos terroristas do Estado islâmico é o Captagon. Essa droga, que mistura anfetaminas e cafeínas, inibe o medo, elimina a dor, anula a empatia e provoca um estado de euforia. É conhecida como a droga dos jihadistas.

O “Champanhe rosa”, diferente do formato popular em comprimidos coloridos, é vendido em forma de cristais, o que pode tornar difícil medir a quantidade consumida, com risco maior de overdose.

As drogas sintéticas são criadas usando substâncias químicas artificiais em vez de ingredientes naturais. E criadas em laboratórios. Quem assistiu à série “Breaking Bad” sabe do que eu estou falando.  E quem já leu o livro “O Homem Duplo” também. Por exemplo, a maconha sintética (Spice ou K2), “Estimulantes sintéticos” (sais de banho) e uma droga conhecida como “NBOMe”. Estas estão entre as drogas conhecidas como “designer drugs”.

E o que vem a ser um “designer drug”? Drogas planejadas, uma versão sintética (produzida quimicamente em laboratórios) de uma droga ilícita que foi devidamente alterada para evitar que seja classificada como ilícita. Em outras palavras, as designer drugs são produzidas no sentido de ressintetizar drogas já existentes, a fim de que se obtenha os mesmos efeitos psicoativos com molécula quimicamente diferente da droga original. Essas novas drogas podem ser vendidas licitamente na internet, permitindo que os traficantes façam dinheiro sem violar a lei. Se por acaso forem consideradas ilícitas, os químicos inventam versões alteradas para burlar a lei. E assim o ciclo se repete.

Para Quem quiser saber mais sobre o assunto, indico:

https://www.researchgate.net/publication/226240222_Designer_drugs_aspectos_analiticos_e_biologicos

No final do livro, em “Notas do autor”, o autor Phip K.Dick faz a seguinte afirmação:

“O abuso de drogas não é doença: é uma decisão, como a decisão de sair da frente de um carro em movimento. Não chamaria isso de doença, mas de um erro de julgamento. Quando um monte de pessoas começa a fazer isso, é um erro social, um estilo de vida. Nesse estilo de vida em particular, o lema é ‘Seja feliz agora porque amanhã você vai morrer’, mas a morte começa quase ao mesmo tempo e a felicidade é uma lembrança. Ele é, então, só uma aceleração, uma intensificação da existência humana comum. Acontece em dia, semanas ou meses”, em vez de anos” (pg 305, pg 306)

Dito isso, vamos à história? “O Homem Duplo” é o livro muito diferente de todos que eu já li desse autor. O livro narra uma sociedade devastada por uma droga sintética e monitorada integralmente por um “scanner holográfico” e apresenta a paranoia como a única possibilidade para encontrar a “centelha interior” em um mundo onde a tecnologia supera todos os pesadelos criados pela literatura.

E nesse sentido vem a grande sacada profética, já existente no mundo de hoje, que é o conceito de “Internet das Coisas”, e que trata, basicamente, de todas as coisas baseadas na internet. Retrata em parte a fusão do “mundo real” com o “mundo digital”. A Internet das Coisas (IoT – Internet of Things) é um conceito tecnológico que expressa que todos os objetos do dia a dia estão conectados à internet, colhendo informações de cada indivíduo. Esse conceito traduz uma era em que tudo e todas as pessoas estão conectadas e trocam informações digitalmente, formando grandes arquivos de informação sobre os lugares das pessoas e suas relações, gostos e comportamento.

Vale dizer que isso não está no futuro distante. Tudo já está começando no Brasil, inclusive para acelerar a implantação da Internet das Coisas como instrumento sustentável no país, no sentido de elevar a competitividade da economia, fortalecendo as cadeias produtivas e promovendo o desenvolvimento.

Hoje, existem milhões de dispositivos com sensores já conectados à internet, desafiando o conceito de computador. Assim, softwares e sensores estão controlando cada vez mais o que era feito apenas por seres humanos – com mais eficácia, conveniência e a custos reduzidos.

Vamos dar alguns exemplos: cortinas inteligentes com chip que são controladas por aplicativos de smartphone. Coleiras inteligentes, uma coleira para pets que acompanha funções vitais do animal, como pressão e batimentos cardíacos. Essa coleira conta com câmera e GPS, permitindo que se saiba a localização do seu cachorrinho ou Pit Bull. Pulseiras chiques (feitas por cristais Swarowski) permitem que você seja localizado por GPS em vários países. E muito mais coisas. Tudo é muito bacana, mas tem um problema.

O ex-diretor da CIA David Patraeus antecipou com entusiasmo os benefícios para espionagem dessa verdadeira revolução na forma como entendemos a internet. “Tudo que consideramos como objeto de interesse poderá ser localizado, identificado, monitorado e controlado à distância através de tecnologias, como identificação por rádio frequência, redes de sensores, minúsculos servidores incorporados e coletores de energia – todas elas ligadas à internet da próxima geração, por meio de uma capacidade computacional abundante, de baixo custo e muito poderosa”, descreveu o ex-diretor de serviços secretos dos EUA durante uma reunião da In-Q-Tel, uma empresa ligada aos serviços secretos americanos, que estão apoiando as empresas desenvolvedoras desse tipo de tecnologia.

Em uma sociedade configurada dessa maneira, qual o último reduto de resistência para o indivíduo? A ambiguidade e a paranoia. É o que Philip K. Dick nos descreve nessa estória que se passa em um futuro não muito distante em uma Los Angeles devastada por uma droga sintética altamente viciante chamada apenas “D”. O agente Fred da delegacia de narcóticos disfarçado em um traje “high tech” (o “scramble suit”), que o faz mudar constantemente de aparência para que sua identidade não possa ser reconhecida pelos scanners holográficos, monitora um grupo de viciados e traficantes.  Entre eles um homem chamado Bob Arctor.

Mas Fred e Bob são a mesma pessoa: um não sabe da existência do outro. Por necessidade de se infiltrar na rede do tráfico, Fred teve que se viciar voluntariamente na droga, que o fez viver em um constante estado esquizofrênico repleto de lapsos de memória. Através do scanner, observa gravações de si mesmo no dia a dia de conversas de absoluta paranoia non sense com seus amigos. No livro de Philip K. Dick, os viciados atribuem o poder devastador da droga a três opções de conspirações: seria uma droga criada pela União Soviética como parte de um plano comunista para destruir a resistência dos EUA; teria sido enviada por alienígenas para iluminar ou escravizar a humanidade; ou ainda seria um complô do governo ou das grandes corporações para dominar a população. 

 O autor imagina que, a partir de 1977, no futuro, uma sociedade totalitária seja monitorada por meio da tecnologia de escaneamento do cotidiano sob o pretexto de combate às drogas. Hoje vemos notícias de um projeto da CIA sobre uma internet que interage com os objetos cotidianos sob o pretexto do combate ao terrorismo. O autor explora a alteração dos estados de consciência da paranoia como uma arma para furar o véu da ilusão da realidade. A paranoia surge de uma cisão esquizofrênica, isto é, da luta entre a introjeção do “inimigo invisível” da vigilância total e a “centelha interior”, o verdadeiro Eu. A verdadeira arma do indivíduo é a consciência de que o scanner nada consegue ver além do nosso comportamento, atitudes, hábitos e escolhas.

“O Homem Duplo” nada mais vê do que a própria obscuridade interior da qual somos vítimas. Sem conseguirmos enxergar a nossa centelha divina que nos guia (a gnose), continuamos prisioneiros da ordem totalitária. Um livro que merece um lugar de destaque na sua estante.


Data: 11 novembro 2017 | Tags: Ficção científica


< A caixa-preta Snow Crash >
O homem duplo
autor: Philip K. Dick
editora: Rocco
tradutor: Ryta Vinagre

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