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A ponte invisível

Para quem gosta de uma boa saga esse romance apresenta todos os requisitos e ingredientes com um elenco de milhares de personagens, e de uma enorme variedade de: locais, guerra, miséria, alegria, ansiedade, alívio, amor, ódio, nascimento, morte, e sem um pingo de auto-piedade. Se você é chegado a esse tipo de história, você leitor acaba de achar o livro dos seus sonhos. Uma saga do tipo “...E o Vento Levou”. Porém, confesso que prefiro “A Ponte Invisível” por seu contexto, na Segunda Grande Guerra. Talvez seja esse o motivo da minha preferência. É claro há muitos outros que tornam esse livro simplesmente sensacional.

No entanto, antes de começar a falar da história, torna-se necessário contextualizá-la melhor a fim de facilitar o caminho do leitor. O papel desempenhado pela Hungria na Segunda Guerra Mundial precisa ser melhor abordado, pois ajudará a compreender vários momentos dessa grande saga. Muitos personagens históricos serão citados no romance, e para que todos aproveitem ao máximo achei fundamental traçar um pequeno mapa histórico e dar vazão a minha verve de professor. Vamos lá?



Após a derrota dos Turcos que dominavam esta região, a luta da nobreza húngara por autonomia no seio do Império Austríaco ocasionou uma guerra civil em 1848, onde a servidão foi eliminada e os direitos civis garantidos. Porém, foi duramente reprimida pelo Império Austríaco que evitou a independência húngara. Para evitar a autonomia húngara, o Império Austríaco fez uma proposta de Monarquia Dual, conhecida como Império Austro-Húngaro. Esta Monarquia dual terminou após a derrota na Primeira Guerra Mundial. Em novembro de 1918, a Hungria se tornou uma República independente. Após uma brevíssima experiência comunista sob o comando do comunista Bela Kun, que proclamou a República Soviética Húngara. O Almirante Miklós Horthy, personagem histórico que será citado sempre ao longo do romance, entrou em Budapeste e instalou um novo governo.

Em 1920, uma assembléia unicameral, expressivamente de direita, e Horthy foi indicado Regente e a Hungria voltou a ser uma Monarquia, embora sem um Rei designado.E apenas para relembrá-los, sobre outro dado sobre a história desse país: a Hungria entrou na Segunda Grande Guerra ao lado dos nazistas devido ao Tratado Trianon, que após o fim da Primeira Grande Guerra foi criado para repartir entre os vencedores quase todo território húngaro. A Romênia recebeu a Transilvânia; a Tchecoslováquia recebeu a Rutênia e a Austria recebeu Burgenland. Com esse tratado, a Hungria perdeu 71% dos seus territórios. É claro que não aceitaram a divisão imposta, com seus territórios nas mãos de outros países. Então, surge a Alemanha Nazista, único país que ofereceu ajuda para recuperar as terras perdidas, em troca de apoio. Mas não foi algo tão simples como o leitor pode imaginar. Foi um período conturbado que acabou com o suicídio do Primeiro Ministro, Teléki Pál que não concordava com uma Hungria nazista. E o sucessor foi Itsvan Bethlen - que se aliou aos nazistas.

Os nazistas pressionaram Horthy (o regente) a colocar todos os judeus húngaros sob sua custódia, mas ele se recusou a confiná-los e a deportá-los. Pragmático, com o revés sofrido pelas tropas alemãs e húngaras em Stalingrado, já antevia que a derrota alemã seria eminente. Assim começa a negociar um armistício com os aliados.Determinada a não abrir mão da Hungria, a Alemanha decide agir ocupando o país em 1944. E apesar de Horthy não ter sido deposto, o Partido da Cruz Flechada, liderado por Ferenc Szálasi assume o poder e extermina milhões de judeus.

Essa breve introdução é fundamental para que se entenda o processo vivido pelos personagens desse romance fabuloso. Vamos a ele? Pois bem, esse livro como toda grande história, está contada em 720 páginas, muito bem divididas, em 42 capítulos nomeados e com um epílogo, narrado em algumas décadas mais tardes.

O romance atravessa os anos turbulentos de 1937 - 1945 onde as ações se desenvolvem em Paris e Budapeste, em vários campos de trabalhos forçados atrás das linhas de combate, onde judeus húngaros eram recrutados como trabalhadores forçados para o exército e não como soldados, parte de um exército, por não serem confiáveis a receber armas e treinamentos para usá-las.
O protagonista é Andras, irmão do meio da família Levy, classe média de uma aldeia perto de Debrecen, apesar de Tibor, irmão mais velho e Matyas, irmão mais novo, desempenharem papéis importantes.

Em 1937, os irmãos Andras e Tibor, o mais velho, estão celebrando uma noite especial em Budapeste. Tibor presenteia Andras com ingressos para assistir a ópera no Operahaz, evento inédito e marcante em sua vida. Após o espetáculo, os dois discutem sobre “Tosca”, de Puccini, falam sobre as expectativas de suas vidas. Ambos revelam nesses gestos toda a cumplicidade e carinho que sentem um pelo outro. E é assim que “A Ponte Invisível” se inicia.

Andras está partindo de Budapeste para estudar arquitetura em Paris, graças à bolsa de estudos da Ecole Speciale d’Achitecture, enquanto seu irmão mais velho ainda tenta juntar mais dinheiro para poder se mudar para Itália e estudar medicina na cidade de Modena. Distante dos dois está Matyas, irmão caçula da família judaica. Na narrativa, veremos que os três irmãos não terão apenas que enfrentar a distância física entre eles, mas sim algo muito maior: O nazismo que começa a crescer até a eclosão da Segunda Guerra Mundial.

Antes de sua partida, Andras é encarregado de enviar uma carta a uma enigmática mulher nove anos mais velha que ele; e é desta maneira que ele conhece Claire Morgenstern, uma professora de dança cujo passado sombrio e uma filha de 16 anos chamada Elisabet transformam esse relacionamento em algo mais complexo.

Esta missão propicia a ele conhecer o boêmio Józef Hász, filho de um banqueiro, riquíssimo. A carta assume um papel central no contexto, pois muda de maneira significativa a vida de todos os protagonistas desta história. A medida que a temperatura política na Europa esquenta com o nazismo ameaçando a tudo e a todos, Andras precisa retornar a Hungria para renovar seu visto de permanência na França, Klara o acompanha, mas não conseguem mais retornar. As frentes de trabalho em Munkaszolgalat exigem a participação de todos os judeus, nessa insanidade chamada guerra, e antissemitismo.

O livro é repleto de pontos fortes, destacaria os personagens principais, muito carismáticos, incluindo os secundários que além de despertar interesse nos surpreendem: Polaner, um estudante brilhante gay; o bonito e vagabundo Ben Yakov; Joszef um amigo com uma índole maravilhosa; Zoltan Novak, o gerente do teatro onde Andras conseguiu seu primeiro emprego e Józef Hász, que no início da narrativa vai se tornando perigoso quando a chapa esquenta no decorrer da história. Não só os personagens, mas o próprio decorrer dos dias é construído de forma instigante. Julie Orringer, a autora, direciona pequenas causalidades do cotidiano para algo maior.

“A Ponte Invisível” é uma narrativa bastante extensa. Em alguns momentos exige uma atenção a mais do leitor. Foi pensando em você, meu caro leitor, que tentei situar historicamente a posição húngara neste contexto, para facilitar a leitura. Esses detalhes da guerra aqui expostos e que a autora utiliza de forma precisa no romance são fundamentais para o entendimento da trama.

Para finalizar, acho que “A Ponte Invisível” é um livro para ser lido com a máxima calma, aproveitando cada página da prosa que Julie Orringer nos oferece. A autora nos mostra a impotência do homem diante de forças maiores que regem, por vezes, o destino da humanidade. Por mais que ele tente, planeje, não consegue vencer integralmente os obstáculos com os quais depara. O leitor vai acompanhando o difícil amadurecimento de Andras, em um confronto mundial que ameaçou subverter os rumos do nosso conceito de humanidade.

Prepare-se para esse livro, como quem se prepara para ver um bom filme. Escolha o dia de começar sua leitura e deixe que suas páginas ditem o ritmo. Uma história de destruição e sobrevivência. Um livro que certamente estará no seu top-list, e irá direto para sua estante. Simplesmente um dos grandes romances que li em 2012.

Sobre a autora

Julie Orringer nasceu nos Estados Unidos, em 1973, se graduou na Escola dos Escritores de Iowa e na Universidade de Cornell. Além disso, a autora foi membro do Creative Writing Program da Universidade de Stanford. Certamente, Orringer tem o talento para escrever. Uma saga como nas grandes tradições de outrora.


Data: 08 agosto 2016 | Tags: Romance


< Todo dia me atiro do térreo A fera na selva >
A ponte invisível
autor: Julie Orringer
editora: Cia das Letras
tradutor: Rubens Figueiredo

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