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O sentido de um fim

O livro "O sentido de um fim", do escritor inglês Julian Barnes, segundo alguns críticos, deve ser lido umas duas vezes para que tudo fique muito bem esclarecido, o enredo tem algumas armadilhas que o leitor precisa estar atento.

O autor lança uma questão muito presente em quase todas as temáticas literárias: a memória. Os artistas, de um modo geral, evocam de suas memórias pessoais um lugar onde as impressões e individualidades abrangem um território de recriação e reordenamento da existência, uma intimidade que é aberta a todos como um diário.

Milton Hatoum, em uma entrevista concedida para um site chamado “Olimpíada da língua portuguesa”, faz a seguinte reflexão sobre a memória.

 

– Não há literatura sem memória. A pátria de todo escritor é a infância. Eu acho que o momento da infância e da juventude é privilegiado para quem quer escrever. É onde a memória sedimenta coisas importantes: as grandes felicidades, os traumas, as alegrias e também as decepções. Certamente não estou falando da lembrança pontual e nítida. O que me interessa é a memória desfocada, a memória não lembrada. Isso é bom para a literatura porque aí é que se instala o espaço da invenção. Alguma coisa que você lembra, mas sem nitidez porque é isso que traz o espaço fluido, nebuloso e incerto daquilo que se vai narrar. Quer dizer, eu não sei exatamente o que aconteceu, mas sei que alguma coisa aconteceu no passado e é sobre isso que quero escrever. É como se uma frase dessa lembrança meio esfumada pudesse produzir mais 300 frases. Uma coisa puxa a outra. Então, você não faz esforço para se lembrar. Como dizia Clarice Lispector: - É você se lembrar de coisas que nunca aconteceram. Esse é o movimento que te leva à escrita: lembrar de coisas que poderiam ter acontecido.


Em um momento do livro, Julian Barnes faz o narrador Tom Webster dizer:

 

 

Quantas vezes nós contamos a história de nossas vidas? Quantas vezes nós ajustamos, embelezamos, editamos espertamente todos os acontecimentos? E quanto mais longa a vida, menos são os que ainda estão perto para nos contradizer, para nos lembrar que nossa vida não é a nossa vida, mas apenas a histórias que nós contamos a respeito de nossa vida. Contamos para os outros, mas – principalmente para nós mesmos.


Talvez a explicação se dê no próprio tempo.

 

 

O tempo rotineiro, que os relógios nos mostram.


Vivemos tão atolados na rotina do tempo que muitas vezes nos assustamos com algumas atitudes nossas a ponto de chegarmos a nos questionar sobre determinados atos que cometemos em um passado distante, muitas vezes dizendo: "aquilo não foi eu quem fez". Mas foi.

E eu faço a mesma pergunta a você leitor: - quando falamos de nós mesmos, de nossas vidas, editamos apenas aquilo que nos convém para serem contadas aos outros ou para que nós mesmos acreditemos nesta versão? E nessa edição feita por nós escondemos ou, se quisermos ser mais cruéis conosco, sucumbimos intencionalmente àqueles momentos sórdidos, mesquinhos que causamos a outros sem levar em consideração a gravidade de tais atos? Sobre as nossas tentativas de impor uma linha na narrativa sobre dados de nossas vidas, será que existe uma tendência natural e/ou tendência inevitável de omitir os pontos cegos sobre nós mesmos? Será esse um recurso pertinente ao comportamento de todos nós, sem nos atermos a isso? Essas são algumas perguntas que podemos nos fazer ao ler esta obra.

“O Sentido de um fim” como já foi dito, nos fala sobre a memória. Uma história pouco clara pelo falseamento da verdade que transparece aos poucos ao longo do livro. Na “orelha”, já sabemos que o narrador não é confiável. E as conseqüências aparecem no final, de forma trágica no envelhecimento, nos arrependimentos e nas lembranças. Um livro que busca o sentido para tudo que vivemos e somos levados a sentir, estabelecendo um equilíbrio entre memória e reflexão.

O romance se divide em duas partes, a primeira parte relata os tempos escolares na década de 60, onde "não havia aparelhos eletrônicos", “pouca tirania da moda”, "e nenhuma namorada".

 

 

Entretanto tínhamos fome de livros, fome de sexo, éramos adeptos do mérito e da anarquia. Todos os sistemas políticos e sociais nos pareciam corruptos, mas recusávamo-nos a acreditar numa alternativa que não fosse o caos hedonista.


Bem, existia um grupo de amigos, ao qual Tony Webster fazia parte e a ele veio se juntar Adrian Finn, um rapaz com coragem intelectual, extremamente sagaz, uma daquelas poucas figuras em uma classe de aula em que um professor geralmente leva a sério. Em seu universo de preferências filosóficas vemos que Camus e Nietzsche eram suas referências intelectuais. Filho de pais separados, não alimentava hostilidade com a mãe que o deixou juntamente com sua irmã aos cuidados do pai. No entanto, amava a mãe. Havia algo diferente nele que seus amigos admiravam.

No final do percurso escolar, Adrian Finn vai para Cambridge e Tony Webster vai para Bristol, os amigos separam-se mantendo a amizade através de cartas. Tony conhece Verônica Ford e mantém um relacionamento confuso com ela. Em certa ocasião, Tom foi convidado há ficarem alguns dias na casa de campo da família da namorada, quando se sentiu desprezado e humilhado por seu pai e por seu irmão, apesar da elegância contida em todo esse desprezo. Mas a mãe de Verônica, Sarah, oferece um aviso misterioso sobre a sua própria filha. Que aviso seria?

De volta a Bristol, o relacionamento permanece cheio de "mind games", pequenas escaramuças, joguinhos e pouca clareza. Depois de algum tempo, esse relacionamento confuso acrescido de uma relação sexual mal sucedida, eles terminam. Um fim que deixou algumas marcas em Tom Webster.

Até que em um determinado momento, um pouco mais tarde, Tom recebe uma carta de Adrian Finn, seu amigo, e é informado por este que ele está saindo com Verônica, e que vão se casar. A intenção era não causar mal estar ao amigo. Mas causou. Anos mais tarde, Adrian Finn põe fim a sua própria vida.

A segunda parte do livro mostra um Tony Webster, mais vivido, mais velho. Com um casamento terminado de maneira amigável e com uma filha recém-casada e com neto a caminho, aposentado e com a sensação de uma música de um grupo punk de garagem – filho de uma amiga de sua mulher - cujo refrão era: "Everyday is Sunday". Era assim que imaginava seu epitáfio.

Neste atual quadro, o passado de sua juventude retorna através de uma estranha herança: um envelope. Uma carta vinda da herança deixada pela mãe de Verônica, Sarah, que havia morrido. Estranhamente, ela deixou uma pequena quantia em dinheiro e mais - o diário de Adrian Finn como herança para ele. Por que isso?

O diário de Adrian havia ficado com Verônica Ford que simplesmente colocou fogo nele. Tom se vê obrigado a retornar a esse "passado" para reaver o que havia perdido.

Qual a razão disso tudo? Por que ela teria feito isso? No entanto, deixou com ele um envelope. Um envelope que continha ecos ainda mais fortes e sombrios de seus tempos de juventude. Qual seria o conteúdo dele? Qual o teor das palavras ali escritas e há tanto tempo?

"O sentido de um fim" de Julian Barnes é um mergulho nas armadilhas do passado, cheio de segredos dolorosos, um convite a refletirmos sobre as reminiscências, muitas vezes editadas e conforme o livro:

 

 

..fabricadas no instante em que as imperfeições da memória se encontram com a falha na documentação.


Um livro primoroso que merece um lugar em sua estante. Um autor do primeiro time. Uma história que nos faz pensar em nossos atos, antes que se tornem memória, ou mentira. Meu conselho: leia.

 


Data: 08 agosto 2016 | Tags: Romance


< Serena Resposta certa >
O sentido de um fim
autor: Julian Barnes
editora: Rocco
tradutor: Lea Viveiros de Castro

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