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A Cabeça do Santo

O livro “A Cabeça do Santo”, de Socorro Acioli, já era para estar aqui no blog há muito tempo. Os motivos dessa ausência, podemos dizer, são vários.  Cito duas desculpas, que podem parecer esfarrapadas, mas não são. A primeira delas é o famoso tempo. Olhava para o livro com culpa. Sim, uma imensa culpa! Sabia que o livro era ótimo, algo por pura intuição. Não conhecia a escritora, mas algo me levava até ele. A segunda, a procrastinação, do tipo “de hoje ele não passa”. Mas passava. Até que numa folga que tive, resolvi e peguei o danado pelos dedos e disse para mim mesmo: você de hoje não passa. E foi em um dia que o livro foi lido. A história me envolveu e terminei a leitura quase de madrugada. O livro é excelente.

Antes de começar a falar do livro, falemos um pouco dessa escritora que já venceu o Prêmio Jabuti de literatura infantil com o livro “Ela tem olhos de céu”. Participou em Cuba de uma oficina com o recém-falecido Gabriel García Márquez e foi dessa oficina que as primeiras ideias de seu romance “A Cabeça do Santo” foram concebidas. “A Cabeça de Santo” já foi traduzida para o francês e em breve outras línguas serão contempladas com uma grande história.

Confesso duas coisas que me chamaram a atenção nesta leitura. A primeira, como a literatura e a sua capacidade inventiva têm o dom infinito de criar e recriar mundos fantásticos. A segunda: eu lia o livro e via o filme mental que se passava em cada movimento da história. Conseguia visualizar, montar a história no meu cinema mental.

Sempre digo aqui neste espaço e torno a repetir: quando lemos um livro somos os diretores da cinematografia das ideias contidas. E ao contar uma história que leio, corro o risco de ver coisas que muitos não conseguem ver. Assim, como você, leitor, se porventura ler “A Cabeça do Santo”, perceberá coisas que eu nem me dei conta, fazendo da história ainda melhor do que a versão do meu olhar sobre a obra. Por isso que a literatura tem essa coisa fantástica. E é exatamente isso que me faz amar os livros.

Outro ponto que gostaria de abordar antes de falar sobre o livro é a preguiça que sinto com esse conceito “regional” de literatura. Do tipo, essa literatura é típica do Amazonas ou o poeta faz poemas típicos do Mato Grosso do Sul. Sinceramente? Não compro essa ideia. Dizer que Graciliano Ramos faz literatura nordestina é incorreto. Sim, “Vidas Secas” fala sobre o Nordeste, e daí? A mesma preguiça que eu tenho com “a famosa literatura latino-americana”. García Márquez seria um autor típico latino-americano, e Jorge Luis Borges, também? García Márquez é um autor colombiano e Jorge Luiz Borges é um escritor argentino. Para mim, isso é o certo. Existe algo em suas devidas escritas que podemos chamar de equivalentes dentro do conceito latino-americano de literatura? Considero errado conceitualmente. Para mim, literatura não é nem regional e nem universal, é mais do que isso, é individual.  A escritora Socorro Acioli fala em seu livro “A Cabeça do Santo” sobre o sertão nordestino. E se um dia ela escrever um livro de um imenso sucesso com uma trama no Rio de Janeiro, ela será o quê? Uma escritora carioca? Estão me entendendo? Para mim, Socorro Acioli assim como Dias Gomes, e tantos outros, são escritores nacionais. Pois nasceram no Brasil. E só! Um dia voltarei a esse assunto com argumentos mais sólidos e que renda um bom debate aqui no blog.

Dito isso, vamos ao que interessa: o livro “A Cabeça do Santo” começa com uma peregrinação de Samuel sob o sol escaldante, descalço, num asfalto inclemente, com seus pés em brasa, sujo, andando sempre em linha reta por dezesseis dias em direção a uma cidade no sertão chamada Candeia. Assim começa a história. Samuel chega a esse lugar movido a promessas feitas a sua mãe no leito de morte, que pedira a ele que realizasse quatro pedidos:

 

“a vela para o padre Cícero, outra vela pra São Francisco, mais outra para santo Antônio, e a busca da avó e do pai” (pg. 29)


Depois de cumprir uma verdadeira via crúcis como andarilho, vendo o limite físico sendo alimentado pelo pacto com sua mãe, encontra uma cidade praticamente deserta, algo totalmente diferente do que esperava. É recebido por cães furiosos que ferem seriamente seu tornozelo. Refugia-se numa cabeça de santo enorme inacabada, uma caverna. Para sua surpresa, durante o descanso começa a ouvir vozes. E essas vozes são orações das moças da região, e apenas ele é capaz de ouvi-las, e ouve também uma mulher cantando músicas que escapam à sua linguagem corrente.

Até que surge Francisco, um menino da cidade, que o ajuda a se curar dos ferimentos na perna, fornece comida e ficam amigos. De repente, mais uma vez, Samuel começa a escutar as vozes, as orações que só ele era capaz de ouvi-las. Francisco pensa que Samuel é um louco varrido. No entanto, começa a ver uma oportunidade de ouro de ganhar dinheiro com esses sopros de vozes, ou chamados, vindos de algum lugar misterioso de sua mente ou de algum espírito misterioso que Samuel repercutia.

 

 

“Conversavam muito, Francisco e Samuel. Contavam suas vidas, do alto do Horto ao fundo das covas. Aos poucos confiavam um no outro. Tentavam entender como a reza das mulheres ficava presa no concreto do santo degolado. Impossível. Estudavam os planos, faziam projetos de ganhar dinheiro explorando o descanso do santo, que deixou o rádio de seu pensamento ligado pra Samuel escutar. Iam fazer estragos em Candeia. Riam das desgraças, suas e dos outros. Desgraça é tudo coisa de se rir”(pg. 51)


Os milagres casamenteiros de Samuel chamaram a atenção dos romeiros das cidades vizinhas. A partir desse momento, Candeia, que era uma cidade fantasma, começou a receber mulheres de todas as redondezas. Todas queriam ser abençoadas com um noivo. E o mais engraçado de tudo é que muitas delas conseguiam. A grande maioria conseguia. A cidade foi ganhando vida. Bares, cinemas, restaurantes, visibilidade em pleno sertão. Candeia vira um destino de turismo religioso.

Samuel e Francisco vão ganhando dinheiro.  Parece que as coisas estão indo muito bem, apesar de alguns acidentes de percurso. As vozes começavam a desaparecer, mas uma em particular continuava suavemente cantando. De quem era essa voz? Paro por aqui.

Você, leitor, vai amar “A Cabeça do Santo”, de Socorro Acioli. Para aqueles que procuram um grande amor, quem sabe um milagre produzido por Samuel pode realizar esse sonho? Basta ler o livro. (rs) Brincadeiras à parte, esse livro tem uma história que emociona e ao mesmo tempo tem um humor maravilhoso. Esse é um livro em que o leitor consegue visualizar tudo o que é narrado, é um filme que poderia ir às telas de cinema graças à escrita visual da escritora.

A Cabeça do Santo” é uma grande história de amor que merece um lugar especial na sua estante.

 


Data: 08 agosto 2016 | Tags: Romance


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A Cabeça do Santo
autor: Socorro Acioli
editora: Companhia das Letras

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