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Acidente em Matacavallos e outros fait divers

Hoje trago o livro “Acidente em Matacavallos e outros fait divers”, do autor Mateus Kacowicz. Uma obra que me impressionou devido ao grande número de informações e detalhes, vindos de um período sobre o qual nem sempre encontramos muitas referências, os anos 20. Quando os chamados “anos loucos” são mencionados, os registros que temos sempre nos remetem a Paris, mas também vivemos (e muito bem vividos) esses anos aqui no Brasil. Mateus Kacowicz escreveu um romance que se passa na cidade do Rio de Janeiro, com todos os “maneirismos” da época. Hoje, como escritor e pesquisador, o autor soube retratar como ninguém esse cenário, sem perder suas “origens” jornalísticas, vindas de seus tempos de fotógrafo e repórter de grandes jornais e de outros caminhos pelo mundo.
 
O fato é: “Acidente em Matacavallos e outros fait divers” vai além de um bom romance e se estabelece também como fonte histórica dos anos 20 no Rio de Janeiro. O autor nos leva, através de sua escrita, a andar em bondes e trens que cruzavam a cidade, a ler os primeiros passos da propaganda impressa, citando exemplos e mantendo toda a linguagem antiga e aparentemente ingênua dos jornais da época.

A leitura abrange a política, a sociedade e até o jornalismo no início dessa época. E para os estudantes de comunicação de hoje, tantos jornalistas como publicitários, e aos que já cruzaram trajetórias por esses meios, este livro não poderia ser melhor sugestão de leitura. “Faits Divers”, traduzindo literalmente, são diversos fatos que são trazidos à sociedade através dos meios de comunicação existentes na cidade. Como explica esse trecho:

“As redes de informações no Rio de Janeiro alimentavam-se a partir de várias fontes. Por exemplo: assim que algum papa-defuntos era encarregado de providenciar exéquias em São João Baptista ou em São Francisco Xavier e se inteirava da importância do morto, passava a notícia aos jornalistas conhecidos, pondo em movimento a teia sutil que une a todos os que têm alguma importância na cidade, sejam amigos ou inimigos. A informação é passada é um favor que vai e um crédito que fica, como citação, no corpo da notícia de que
... a casa de Pompas Funebres Portal da Eternidade promoveu cerimonial digno de um monarcha” ... (pg. 69).


O livro também é uma aula de jornalismo. As páginas passam e somos apresentados a um Rio de Janeiro após as reformas urbanas operadas pelo prefeito Pereira Passos e, na saúde, o fim das epidemias endêmicas, com Oswaldo Cruz na sua cruzada pela vacinação.

 “Apesar dos medos, o Rio de Janeiro já não era mais aquela pocilga tropical que matava seus habitantes, e sobretudo os visitantes, de febre amarela, tifo, cólera, peste bubônica, varíola e doenças pulmonares de etiologia vária. Tornara-se uma cidade bonita, ingressara, pela marreta de Pereira Passos e as desinfecções de Oswaldo Cruz, nas luzes do novo século” (pg. 25).

Uma viagem no tempo. E podemos nos deparar com “pérolas”, como o reclame abaixo, que nos brinda com “pharmacia” - ainda com “ph”:

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Mas as delícias dessa leitura não param por aí e o enredo nos leva ao Rio de Janeiro de 1921 quando um bonde perde o freio e atropela uma lavadeira. A partir desse evento, entramos na história do livro e numa série de acontecimentos que serão deflagrados e repercutirão em todos os níveis da República. Esse acontecimento, que poderia ser chamado de um “fait diver”, algo rotineiro, vai expor sérias questões sociais amortecidas e camufladas por uma aparente tranquilidade, porém, prestes a eclodir conflitos de interesses políticos, econômicos e familiares, além da presença das ideias comunistas, anarquistas e fascistas, que os jornais, sempre em primeira mão, comentavam e traziam mais “lenha” para fomentar essas labaredas.


A elite da cidade e seus cavalheiros se encontravam nos bordéis de luxo, e o mais famoso deles era a Casa de Mme Charlote em Santa Tereza. Nesses lugares, as informações confidenciais aconteciam. O autor nos apresenta ao ministro da República chamado P., homem forte da política e totalmente apaixonado por uma menina chamada Ninon, uma francesinha recém-chegada, dona de uma personalidade sedutora e que rouba o coração do ministro. O que acontecerá com esse romance? Ninon torna-se uma senhora de respeito numa casa confortável no bairro da Piedade. “Mas muita água passará por baixo dessa ponte”. A única coisa que posso acrescentar é que os jornalistas estão sempre de olho nos “fait divers”.

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As reformas das ruas da cidade esperam as festividades que comemorarão o centenário da cidade. Neste cenário, surgem dois imigrantes russos e irmãos que escaparam dos pogroms antissemitas na União Soviética. Mark, o mais velho, já se encontra no Brasil e trabalha como mascate, ou seja, aquele que percorre as ruas vendendo tecidos, joias e quinquilharias pelos subúrbios do Rio de janeiro. Ele espera Yuli, seu irmão mais novo, para ajudá-lo. Duas personalidades distintas, mas muito ligados no sentido familiar que a palavra exige.

 
Yuli também se torna um mascate, mas tem uma imensa facilidade para aprender idiomas. Existe um momento antológico no livro quando o adolescente Yuli descreve o carnaval enlouquecido, com as multidões fantasiadas, automóveis sem capota e com a fina flor da burguesia jogando papéis e gritando uns com os outros quando os bondes apinhados de foliões se cruzavam. E recorto os seguintes trechos que me chamaram a atenção:

 

 

“Yuli não conseguia entender, por mais que o veterano irmão lhe explicasse: o que divisara da janela era-lhe incompreensível. Pessoas vestidas como bebês, homens como mulheres, palhaços, máscaras horrendas que assustavam crianças nos colos das mães, tamancos batendo no chão ao ritmo dos violões e panelas. (pg. 36)”.

“...Os bondes passavam apinhados, trazendo mais daquela gente tão estranha e agitada. Alguns saltavam, outros montavam, e seguia sobre os trilhos aquele bolo informe de pessoas em camadas superpostas rumo à Avenida Central, onde toda a cidade iria se encontrar (pg. 36)”.

“Papeizinhos picados entravam-lhe boca adentro e fitas de papel iam se acumulando aos seus pés”. (pg37)

“Foi então, neste carnaval de 1921, aos dezoito anos de idade, que Yuli finalmente conheceu o morno mar de seus sonhos” (pg37) As tramas dessa história terão contornos inesperados. Yuli deixa de ser apenas um mascate e começa a falar e escrever em sua nova língua de maneira a familiarizar-se com os “fait divers”, nos quais ele mesmo, em alguns momentos dramáticos, será notícia.


imagem_matacavallos3Acidente em Matacavallos e outros Faits Divers” traz uma precisão do português falado na época, a intimidade dos eventos familiares, os bon vivants, os almofadinhas, os noticiários, onde as verdades, as meias verdades e as meias mentiras faziam coquetéis explosivos de grande repercussão. Um livro que serve para todos que estiverem à procura de um excelente roteiro de cinema ou de novela, um livro para você, leitor, que gosta de uma boa história ou é um apaixonado por um tempo ou por um Rio de Janeiro que conhecemos muito pouco. Um livro que merece um lugar na sua estante – E na sua memória.

 


Data: 08 agosto 2016 | Tags: Romance


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Acidente em Matacavallos e outros fait divers
autor: Mateus Kacowicz
editora: Record

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