A Greve do Sexo
“Lisístrata: A Greve do Sexo”, tradução para o português de Aristófanes, foi encenada pela primeira vez em 411 A.C., apenas dois anos antes da derrota de Atenas na longa guerra do Peloponeso contra Esparta. Essa guerra durou 21 anos; não havia perspectiva de paz, como sempre. O nome Lisístrata pode ser traduzido como “libertador da guerra” ou aquela que dissolve o exército.
Aristófanes é um autor cômico, um crítico das políticas belicistas, do charlatanismo intelectual. Sua vítima mais famosa foi Sócrates, que Aristófanes apresenta em “As Nuvens” como um idiota míope, um mero sofista e um corruptor detestável dos valores atenienses. Platão mais tarde culparia Aristófanes por contribuir para o julgamento e a condenação de Sócrates nas mãos do estado ateniense em 399 A.C. Aristófanes é considerado o maior dramaturgo cômico de todos os tempos, superando (segundo alguns) até mesmo Shakespeare e Molière.
Lisítrata representa, em parte, o afastamento de Aristófanes de algumas convenções da Antiga Comédia. Uma dessas, vamos chamar de quebra de convenções, se dá em um Coro dividido em duas facções briguentas: velhos contra velhas, como vocês verão. Isso em Lisístrata está no cenário dramático da peça.
Vamos a ela?
A peça começa como pano de fundo a Acrópole, que era uma cidadela estreita onde havia templos e palácios. Um caminho estreito cheio de curvas e, no meio de rochedos, a gruta de Pã, onde encontramos Lisístrata impaciente, esperando a chegada das mulheres que ela convocou.
“Lisístrata: ... Se tivessem sido convidadas para uma festa de Baco isso aqui estaria intransitável de mulheres e tamborins. Mas como eu disse que era coisa séria, nenhuma apareceu até agora. Só pensam em bacanais....” (pág. 9)
Lisístrata guarda diferenças em relação às outras mulheres na peça. Ela é menos doméstica, não tem estereótipos femininos, é uma mulher politicamente ativa. Cleonice, ao contrário, está mais de acordo com os estereótipos atenienses.
Lisístrata está impaciente e quer intervir para salvarAtenas da guerra do Peloponeso. Cleonice tenta demovê-la dessa ideia, mas Lisístrata está obstinada.
“Lisístrata: Não com o meu plano. Reuniremos todas as mulheres da Grécia, incluindo as beócias e as peloponesas. E acabaremos de vez com as lutas fratricidas, que nos deixam a mercê dos bárbaros que descem lá do norte.
Cleonice: Se não é impertinência da minha parte, me responde: como é que nós, mulheres, vamos derrotar os homens? Batendo neles com as nossas sandálias douradas, arranhando-os com as nossas unhas polidas, sujando-os com os nossos cosméticos ou sufocando eles com nossas túnicas transparentes?” (pág. 12)
Cleonice subestima o poder das mulheres, mas Lisístrata conhece melhor do que ela o quão poderosa pode ser a manipulação das necessidades humanas básicas, como o sexo. Lisístrata acha que essas roupas sensuais, junto com outros embelezamentos é o caminho para a salvação da Grécia.
Mulheres vão chegando de todas as direções, inclusive algumas mulheres esfarrapadas do campo. Mirrina entra culpada. Lampito demonstra a dança que a mantém tão em forma, e Cleonice, que tem nos seus seios a sua grande beleza. Todas querem saber qual o plano de Lisístrata. Todas a princípio topam e prometem lutar com entusiasmo. Lisístrata revela como forçar seus maridos a negociar a paz por meio da abstinência total, e isso está incluindo o sexo. Todas franzem a testa.
“Lisístrata: Pois bem, vocês terão que se abster daquela pequena parte do homem que mais o classifica como tal. Ué, por que viram as costas? Onde vocês vão? Você aí, por que morde os lábios? E você, por que balança a cabeça desse jeito? Estão todas pálidas! Até há algumas amarelas. Mudaram todas de cor. Estão chorando? Respondam, ao menos! Vão ou não cumprir o que prometeram? Qual a dificuldade?” (pág. 20)
Apesar do choque inicial, aos poucos as mulheres aceitam fazer uma greve de sexo. Elas só precisam se apresentar aos homens de maneira sedutora, ou seja, maquiadas com túnicas transparentes que realçam as linhas do corpo. Lisístrata está confiante de que os homens irão fazer um tratado de paz rapidamente.
Elas acabam topando e aprovam a greve de sexo. O plano tem duas fases: a primeira, a greve de sexo; e a segunda parte da trama é a presença do coro das velhas que tomarão Acrópole, onde está localizado o tesouro de guerra sob o comando de Lisístrata.
“Lisístrata: Isso significa que está vitoriosa a primeira parte do plano: as mulheres acabaram de ocupar a Acrópole. Vai logo Lampito, volta para organizar a subversão em Esparta. Tuas companheiras ficarão aqui como reféns. Quanto a nós vamos nos reunir às outras, lá na Cidadela, para ajudar a defender o tesouro.” (pág. 32)
Lisístrata é sagaz o suficiente para saber que a paz requer a vontade de Atenas e de Esparta, daí a missão de Lampito. Ela também é astuta. Lisístrata é uma idealista em querer acabar com a guerra, mas ela também é prática e sensata. Os portões de Acrópole se tornam a imagem da anatomia feminina, fechada e inacessível a qualquer violação masculina.
“Lisístrata: Me rio deles. Não cederemos mesmo que ameacem pôr fogo à cidadela. Só se aceitarem a paz sem restrições. Aí sim, alegremente abriremos nossas... portas.” (pág. 33)
Surge o coro dos velhos. Os velhos representam os homens com mais idade porque os jovens atenienses estão lutando na guerra. As tochas de fogo e a fumaça retratam a anatomia masculina e o declínio da virilidade. Os homens trouxeram, por meio da corrupção política e ambição imprudente, o desastre nacional da guerra. As mulheres são as verdadeiras patriotas atenienses.
“Lisístrata: E, usado na guerra, falta na paz. Por isso a guerra é opulenta e a paz é miserável. Pisandro, o oligarca, vive pregando mil rebeliões, e a cada uma aparece mais rico e mais potente. Pois resolvemos acabar com isso. Nem mais uma dracma do povo será gasta na guerra. (pg52)
O coro dos velhos e o Coro das velhas disparam ameaças e insultos de um lado para o outro. Os homens ameaçam fazer churrasco nas mulheres, as mulheres ameaçam apagar o fogo dos homens e dar banho neles. Quando os homens preparam suas tochas, as mulheres esvaziam seus jarros sobre eles, ensopando-os.
A violência irracional e perturbadora das ameaças dos homens é apropriadamente temperada pelas ameaças domésticas mais encantadoras das mulheres. A água não é um elemento de destruição, mas de despertar, limpeza e renascimento. Representa abstinência sexual, as mulheres planejam apagar o fogo da guerra. As mulheres não querem destruir seus homens; elas querem cultivá-los com os valores atenienses que esqueceram.
Um comissário entra junto com um séquito composto por quatro arqueiros. Ele desaprova tudo. E diz que as mulheres estão sendo emocionais. E ele pergunta como elas pretendem atingir o seu objetivo.
“Comissário: E como vocês se propõem a restaurar a paz e a ordem em toda a Grécia?
Lisístrata: Não há mais nada mais simples.
Comissário: Ah, é? Não diz! (percebendo que Lisístrata se desinteressou de explicar) Vamos, explica.
Lisístrata: Quando estamos tecendo e os fios se embaraçam, nós os cruzamos pra lá e pra cá, mil vezes pacientemente até que os fios fiquem novamente soltos. Faremos o mesmo com a guerra. Mandamos embaixadas cruzar o país em todas as direções, com a mensagem de paz.
Comissário: E cada embaixatriz vai levar uma agulha, um novelo de lã e uma roca para ajudar a tecer numa só teia inimigos mortais? Que mulheres ridículas!
Lisístrata: Se vocês tivessem um pouco mais de bom senso iriam como nós, buscar as grandes soluções para coisas simples. A tecelagem é uma lição política”. (pág. 60; pag. 61)
Lisístrata usa a metáfora da lã e a tecelagem como costuras de acordos. Atenas precisa ser limpa da sujeira, livre dos incompetentes e politicamente reunificada se for para adequar-se ao espírito ateniense.
O Comissário, no entanto, diz que a guerra é um assunto apenas dos homens, mas Lisístrata lembra a ele que os assuntos de Estado são assuntos de todos.
“Lisístrata: E diga que venham todos, pra tratamento igual. Diga-lhes que a lei agora, também é para todos. Se isso não é melhor, pelo menos é mais barato. (Entra na Acrópole com Cleonice e Mirrina)” (pág. 66)
No entanto, no desenrolar da história algo começa a dar errado, as mulheres começam a perder a determinação. Na verdade, todas estão começando a ter desejos sexuais, e começam a questionar tudo em função do desejo sexual. É quando Lisístrata revela isso para Coriféia, que é simplesmente a principal figura do coro feminino.
“Coriféia: Não oculte nada de mal que tenha atingido a nossa causa. Precisamos saber.
Lisístrata: Para dizer a verdade o mais breve possível, elas não aguentam mais viver sem fornicar.” (pág. 71)
As mulheres estão ficando loucas. Lisístrata responde a tudo isso dizendo:
“Lisístrata: Que adianta apelar para os deuses? Elas sentem uma atração mais forte aqui na terra. Não posso mais impedir que elas procurem os homens. Estão cheias de luxúria, dispostas a toda humilhação, ansiosas por serem esmagadas novamente. Começam a desertar. Peguei a primeira alargando a pequena abertura à gruta de Pã. Outra estava descendo o monte por uma corda que tinha, não sei como amarrado a uma polia. Uma outra, num canto, já havia entrado em contato com o inimigo e, através dela, o inimigo penetrava a nossa cidadela. Cheguei a tempo de arrancá-la chorando e esperneando, do entrevero em que ia se perdendo. Mas o inimigo lá ficou, sozinho, de arma na mão, sem saber o que fazer com ela, outra ainda, trepada nas costas de um ganso tentava pura e simplesmente, voar pra casa, quando eu a segurei pelos cabelos. Cada uma, e todas, estão inventando pretexto para debandar. (apontando para a porta.) Olha! Lá está uma tentando dar o fora. Olá, você aí. Onde vai com tanta pressa? (pág. 71; pág. 72)
Uma mulher finge que vai para a casa salvar sua lã das traças, outra sai para arrancar as fibras de seu linho. Outra mulher enfia o elmo sagrado de Atenas em suas roupas para que ela pareça grávida, para melhor fugir de Acrópole e se encontrar com o seu amante. Lisístrata analisa e ordena que todas as mulheres se posicionem em suas posições de batalha, quando aparece um homem. Seu nome: Cinésias. E quem é ele? Marido de Mirrina.
Lisístrata lembra a amiga que seu dever é excitar o marido sem quebrar o juramento de não fazer sexo com ele. Então ela começa a se despir para Cinesias e coloca suas condições para ele:
“Mirrina: Já vou. Já vou, meu bem. Estou só tirando as minhas sandálias. Mas olha, só te peço uma coisa: antes de dormir comigo trata de votar primeiro pela paz, está bem? (sai correndo).” (pág. 93)
O embaixador entra juntamente com o embaixador espartano e anunciam a paz. Uma delegação de espartanos e atenienses e com a ajuda de Lisístrata, motivados pela visão do corpo nu da paz, personificado como uma bela moça, rapidamente traçam os termos da paz.
“Embaixador Espartano: Erramos, Lisistrata, erramos. Estamos prontos para corrigir-nos. (olhando para a paz) grande Deusa! Com uma paz assim tão tentadora tudo que eu quero é me atracar com ela.” (pág. 107)
Lisístrata alcança a paz graças à greve do sexo. Todos acabam cantando uma canção final.
“...Evoé! Evoé! Venham todos dançar e cantar em nome da vitória da mulher.” (pg116)
Muitos diretores de teatro e cinema já adaptaram Lisístrata. Spike Lee, por exemplo, adaptou em seu filme Chi-Raq (2015), onde ele transpôs a trama de Aristófanes para o centro da cidade de Chicago. Uma greve de sexo contra a violência das gangues. E em vez de coros, seus personagens falam nas rimas do rap. No mundo real, em 2002, a Ação de Massa da Libéria pela Paz organizou uma greve sexual que acabou contribuindo para a resolução pacífica da Segunda Guerra Civil da Libéria.
Quem sabe não esteja aí a solução dos conflitos vigentes ao redor do mundo? Indico sem pestanejar esta comédia deliciosa de Aristófanes. “Lisístrata: A greve do Sexo” merece um lugar de “HONRA” na sua estante.