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Medéia

O livro de que falaremos hoje é “Medeia", de Eurípedes. Antes de tudo, só uma informação, Medeia não é uma invenção de Eurípedes. Na verdade, como acontece na maioria das peças gregas antigas, a história de Medeia tinha muitas versões que circulavam na época em que Eurípedes escreveu. Eurípedes dá a sua versão dramática com o foco na exposição e na emoção. A bruxaria era um tema comum na mitologia. Havia a deusa da magia Hécate e muitas outras histórias mitológicas sobre bruxas, como Circe. As bruxas eram frequentemente retratadas como mulheres perigosas e sedutoras que atraíam os homens para o perigo.

Medeia ficou em terceiro lugar na competição de um importante festival religioso e competição teatral da cidade de Atenas. Medeia ficou em terceiro lugar na competição naquele ano; no entanto, foi a obra mais importante e a mais popular do autor.

Eurípedes foi um dramaturgo altamente respeitado em seu tempo por seu talento e também por ser inteligente demais para a época. Seus temas controversos e sua estreita associação com pensadores progressistas como Sócrates podem tê-lo obrigado a aceitar o exílio voluntário na Macedônia, embora não exista nenhuma fonte confiável sobre esse ponto.

Eurípedes era o mais jovem dos três principais autores trágicos gregos canônicos, Sófocles e Ésquilo. Seu estilo, no entanto, caracterizou-se por dar voz aos marginalizados da sociedade: mulheres, escravos e imigrantes, que recebiam pouquíssima atenção e proteção no contexto social e cultural da época. Medeia não é exceção. Entretanto, a personagem afirma seu poder inspirador, que chocou o público pela violência.

Medeia é uma crítica à sociedade dominada pelos homens de seu tempo. A protagonista é na verdade uma anti-heroína radical que inspira e ao mesmo tempo amedronta. Em um primeiro momento nos simpatizamos com o estado oprimido da protagonista. No entanto, sua rebelião sangrenta e vingativa choca e perturba o público até hoje. Temos nessa peça um duplo olhar: uma advertência tanto para os opressores quanto para os oprimidos. Medeia simboliza uma mulher enjaulada pelo patriarcado. E o que esperar dessa condição? Bem, na peça podemos esperar a mais vil das reações. E a vingança pode tomar várias formas. O desejo apaixonado de fazer justiça e corrigir os erros cometidos contra ela. Ela torna-se uma pessoa que é capaz de tudo, até de matar os próprios filhos. Medeia mostra ao público o horror que pode acontecer quando uma pessoa se deixa tomar pelo desejo de vingança. Como esse desejo pode governar sua vida.

Vamos ao que interessa, a história de Medeia.

A história começa com a presença da Ama lamentando a partida do navio de Jasão. Em seu barco chamado Argonauta, navegou para a terra de Colcos, a terra natal não grega de Medeia, em busca do Velocino de Ouro. O Velocino de Ouro era uma espécie de talismã que outorgava quem o possuísse prosperidade e poder.

“ Ama: ... Medeia minha querida ama, não teria navegado para os muros de Iolcos, ferida no coração pelo amor a Jasão, e , por haver persuadido as filhas de Pélias a assassinarem o pai, ela não habitaria com o esposo e os filhos na terra de Corinto, onde ainda não há muito era benquista dos cidadãos que acolheram o exilado, onde vivia em perfeito acordo com Jasão( tudo está salvo quando nenhuma dissensão separa a mulher do marido), enquanto que agora está cercada pelo ódio e ameaçada naquilo que tem mais caro...”(pág. 7)

Eurípedes faz com que Ama se lembre das façanhas e do exílio de Medéia.  É a forma como Eurípedes situa o público no momento específico da história da peça. Medeia e Jasão são exilados e começam a se ver em meio à turbulência emocional que esse exílio causou em Medeia. Jasão escapou do exílio abandonando sua família e se casando com um membro da família real de Corinto.

Medeia diz aos seus filhos que é odiada e que deseja que eles morram por causa do comportamento de seu pai.

“Medeia: Ai de mim! Sofro, desventurada, sofro, e não posso conter os meus gritos de dor. Malditas crianças de mãe odiosa, morram com seu pai! Que toda a nossa casa pereça! (pág. 11)

  Entra o coro.

 “Coro: Ouvimos a voz os gritos da infeliz mulher de Colcos; e ela não se apaziguou ainda. Dize-nos, pois ama, o que está acontecendo, porque através da dupla porta do palácio, gemidos vieram ferir nossos ouvidos; não nos alegramos com as desditas de uma casa que é cara”. (pág. 12)

O coro pede a Ama que conte o que está acontecendo. A Ama responde que a família de Medeia e Jasão acabou e relata a dor de Medeia e a infidelidade de Jasão. Ela quer acabar com a sua própria vida.

“Coro: Por que não vem ela mostrar-se aos nossos olhos e dar de ouvidos às palavras que tentaremos fazê-lo ouvir? Talvez conseguíssemos acalmar a violência da sua ira, os ardores de sua alma...” (pág. 13)

Medéia pede aos deuses que sejam sua testemunha da injustiça de Jasão que ela identifica como a quebra de uma ordem divina. Ao mesmo tempo revela a raiva que sente por ter sido maltratada. Uma raiva justa que ela tenta se defender diante dos deuses. Medeia pede aos deuses que testemunhem a injustiça sofrida por Jasão ela mostra o que ele   quebrou   uma ordem divina, e ela mesmo tenta, diante dos deuses, demonstrar a justeza de sua raiva por ter sido maltratada. Sua raiva é uma raiva justa, defendendo a si mesma e a retidão moral Medeia admite abertamente que quer fazer justiça com as próprias mãos, e a punição que ela quer decretar é extrema. Ela quer esmagá-lo, aniquilá-lo e tudo o que ele tem. Sua raiva é extrema e consome tudo.

“Medeia: “... De todos os seres que respiram e que pensam, nós outras, as mulheres, somos as mais miseráveis. Precisamos comprar muito caro um marido, para depois termos nele um senhor absoluto da nossa pessoa, segundo flagelo pior do que o primeiro.

“...O homem, dono do lar, sai para distrair-se de seu tédio junto de algum amigo ou de pessoas de sua idade; mas nós, é preciso não termos olhos a não ser para ele. Dizem eles que levamos em nossas casas uma vida isenta de perigos, ao passo que eles combatem com a arma na mão; é falso. Eu preferiria tomar parte em três combates a dar luz uma só vez. Mas nos achamos, vós e eu, nas mesmas condições. Estais aqui na vossa própria pátria, na casa do vosso pai; saboreais as delícias da vida, as doçuras da amizade. E eu, abandonada, proscrita, sou ultrajada por esse homem; arrancada por ele a uma terra bárbara, não tenho mãe nem irmão nem parente, para encontrar junto deles um porto de abrigo nesta tempestade....” (pág. 15)

Medeia faz afirmações radicais sobre a dificuldade da vida das mulheres, chegando mesmo a sugerir que o sofrimento igual ou maior das mulheres deveria dar a elas uma posição de igualdade em relação aos homens. Essas palavras são amplificadas em razão do exílio a que ela está submetida.

 Ela pede ao Coro que não falem nada em relação aos seus lamentos e de sua necessidade de punir o marido pelo que ele fez. O Coro concorda com o seu pedido e interrompe para dizer que o Rei Creonte está se aproximando. Creonte chega à porta e manda Medeia para o exílio com os seus dois filhos. O motivo:

 “Creonte: Receio - por que dissimular? – que te deixes levar contra a minha filha a alguma violência irremediável. E tenho mais uma razão para temer: és artificiosa possuis mil perniciosos segredos, e não perdoas a Jasão por haver banido de seu leito....” (pág. 16; pág. 17)

Ela argumenta que existem rumores circulando sobre o tipo de pessoa ela é, mas que esses rumores não chegam à verdade. Ela lembra a Creonte que ela é uma exilada, então ela merece mais simpatia, caridade e piedade. Ela argumenta falsamente que respeita Creonte como governante e deseja o melhor para ele, não tem nada a temer e deve deixá-la ficar. Medeia finge ser uma mulher fraca e dependente de quem zombou dela antes. Ela usa sua esperteza para esconder suas intenções.

O coro entra. Começa sua primeira ode cantando que os rios sagrados agora correm colina acima. Os homens são traidores. Os juramentos são feitos com a total ausência de fé. As mulheres terão a honra agora e escaparão dos preconceitos que a reprimiram.

“Coro: Os rios sagrados remontam nascente. Já não existe justiça, nada mais está de pé. Os homens tramam pérfidas conspirações, e a fé nos deuses já não tem raízes nos corações. Dentro em breve a fama mudará de linguagem e não terá para conosco louvores suficientes. Aproxima-se o dia em que a mulher será reverenciada e uma injuriosa reputação já não pesará sobre ela....” (pág. 22)

 Jasão entra. Medeia e ele conversam. Jasão repreende Medeia por seu temperamento, dizendo que ela poderia ter ficado em Corinto se tivesse segurado a língua. Foi uma benção sua punição ter sido exílio, e não a morte.

“Jasão: “..., Mas depois de haver falado dos reis como o fizeste, estima-te feliz em te desobrigares só com exílio. Tentei sempre apaziguar a cólera deles e meu desejo era que deixassem viver em Corinto. Mas tua loucura não cessa, continuas a injuriar os teus amos....” (pág. 23)

 Medeia condena Jasão por ter levado outra mulher quando já tinha dois filhos. Ele se esquivou de seus deveres paternais e negligenciou seus juramentos a ela. Ela se pergunta para onde ela pode ir, já que traiu sua família, seu país por causa dele.

 Jasão, por outro lado, diz que Medeia não fez nada por ele, foi Afrodite, deusa do amor, quem lhe prestou o serviço fazendo com que Medeia se apaixonasse por ela e o ajudasse. Foi Eros, diz ele, o pai de Afrodite, quem a levou para salvar a sua vida.

Jasão: “... Reconheça comigo – a explicação não é engenhosa, se bem que pouco apropriada para te agradar? Foi Eros que, ferindo-te com suas flechas invencíveis, te forçou a salvar-me...” (pág. 25)

 Jasão, mais adiante, se contradiz e diz que agradece a ajuda que ela lhe deu, mas, para Jasão, Medeia ganhou mais do que perdeu.

 

Jasão: “... Primeiramente, em lugar de um país bárbaro, agora habitas a Grécia. Aprendeste a conhecer a justiça, a recorrer a lei em lugar da força. Tua ciência tornou-se famosa em toda a Grécia, alcançaste assim a glória. Mas, se habitasses ainda os extremos da terra, não se falaria em ti. Pouco me importa a mim possuir tesouros em meu palácio, ou saber cantar melhor que Orfeu, se não devesse essa fortuna ser de todos conhecida...” (pág. 25)

 Jasão apresenta argumentos vazios por causa da percepção superior dos gregos de que a fama é a maior conquista humana possível. Além disso, fala sobre o seu casamento com a princesa, argumentando que o que ele fez foi sábio. Afinal, como exilado, a oportunidade de se casar com a filha de Creonte, a princesa, foi uma “conveniência”, pois ele estava apenas pensando em sustentar a sua família obtendo o acesso à riqueza da família real, e, se ele tiver mais filhos, poderá prosperar unindo as duas famílias.

“Jasão: Não discutirei mais tempo contigo. Mas, se queres aceitar de minha mão para teus filhos ou para ti mesma, no exílio, um socorro em dinheiro, fala estou pronto a dar sem contar, assim que enviar os símbolos a meus hospedeiros, para que deem boa acolhida. Mulher recusar seria loucura. Acalma tua cólera, só tens a ganhar com isso.” (pág. 28)

 O coro aparece e reitera a necessidade de moderação, atribuindo os excessos de Medeia e Jasão à paixão e emoção.

 Egeu, o rei de Atenas, entra e deseja felicidades à sua amiga Medeia. Os dois conversam e Egeu revela que está indo se encontrar com Pitéu, o rei de Trezena, para falar sobre o oráculo de deus. Ele acaba revelando que não pode ter filhos e assume Medeia e promete levá-la. Ela obtém refúgio com a promessa de ajudar Egeu a ter filhos.

 No entanto, Egeu diz a Medeia que não poderá leva-la com ele e o motivo deve-se ao fato de não se indispor com Creonte. Em outras palavras, ela deverá chegar por seus próprios meios. Ele promete a ela todo suporte.

“Medeia: Jura pela Terra, pelo Sol, pai de meu pai e por todos os deuses juntos.

 Egeu: Que é preciso jurar ou não fazer? Fala!  

Medeia: Jura nunca me expulsar de teus Estados, e, se algum outro, se um dos meus inimigos vier para deles me arrancar nisso não consentirás jamais, enquanto viveres.

Egeu: Juro pela Terra, pela santa Luz do Sol, por todos os deuses, religiosamente observar o que me pedes.” (pág. 35)

Medeia conversa consigo mesma, jura vingança. A chegada de Egeu é o sinal dos deuses. Traduzindo para Medeia o aparecimento de Egeu é senha para vingança. Os deuses aprovam sua ideia sinistra. Nessas reflexões está o plano de matar a princesa. Como?

“Medeia: “... vou preparar à filha do rei a armadilha em que deve perecer. Enviá-los-ei a ela com presentes (que eles deverão oferecer a nova esposa para que os não exilem deste país): um véu mais fino tecido a uma coroa de ouro. Se ela pegar e usar esses ornamentos, perecerá nos mais cruéis sofrimentos, e, com ela, quem não quer tocar, tal é o poder dos venenos com quem impregnarei esses adereços. Mas aqui me detenho. Estremeço ao pensamento do que me restará fazer: matarei meus filhos....” (pág. 37)

A morte da princesa por Medeia servirá como algo simbólico, uma vítima sacrificial, uma forma de punir os homens que causaram ferimentos nela. O Coro aparece apoiando, mas tentando dissuadi-la de seus planos. Mas Medeia atribui a imprudência à intensidade de seu sofrimento.

 Quando Jasão aparece, Medeia muda e finge arrependimento, se desculpa por ter sido tomada por sentimento tão irracional de raiva. Mas que ponderou e chegou à conclusão que Jasão tinha razão. Ela abençoa o seu casamento com a princesa.

“Medeia: Quero obedecer-te, e não duvidar de tua palavra. Mas a mulher, é um ser fraco inclinado às lágrimas...” (pág. 41)

 Medeia quer presentear a princesa com o vestido e a coroa, mas, para isso, escolhe os próprios filhos para entregar os presentes para a princesa, para despistar suas reais intenções.

Medeia: “... Mandarei a ela, por intermédio de meus filhos, os mais belos presentes, eu o sei, que haja entre homens: um vestido do mais fino tecido e uma nova coroa de ouro; que os tragam para mim o mais depressa possível. Ela terá mais de uma felicidade, ela terá todas, pois que encontrará em ti um esposo perfeito e possuirá um adereço que outrora o Sol, pai de meu pai, deu a sua posteridade...” (pág. 42)

O escravo entra e dá a seguinte notícia:

“Escravo: Senhora, eis que vossos filhos, salvos do exílio. A real esposa recebeu com prazer os presentes. De hoje em diante vossos filhos poderão viver em paz. Então? Por que vos vejo imóvel, inteiramente perturbada, quando vossos desejos são satisfeitos. (Por que desviais o rosto e não acolheis com alegria as minhas palavras?)” (pág. 44)

 Medeia vive um momento de dúvida. Ela precisa terminar o trabalho que se propôs a fazer. Ela sabe que tem a capacidade de justificar as ações em razão de fortes paixões.

 O Mensageiro entra transtornado no palácio e dá a notícia de um desastre. Em primeiro lugar, ele diz que ela precisa fugir. Ela pergunta qual a razão.

“Medeia: Que foi que aconteceu que me obriga a essa fuga?

Mensageiro: Que foi aconteceu que me obriga a essa fuga?

Mensageiro: A filha do rei acaba de expirar com seu pai, Creonte, vítima de teus venenos”. (pág. 48)

Medeia pede detalhes como tudo aconteceu para o Mensageiro. E ele conta. Depois, quando ela sabe como tudo aconteceu, Medeia diz ao Coro que será ela que matará os filhos.

“Medeia: Amigas, minha decisão está tomada: quero, sem tardar, matar eu mesma meus filhos e fugir desta terra, em vez de expô-los, por minhas lentidões, a parecer sob os golpes de mão inimiga...” (pág. 51; pág. 52)

 Jasão se desespera quando vê os filhos mortos, Jasão vai na direção de Medeia para se vingar:

“Jasão: Deixa-me enterrar meus filhos e chorá-los

Medeia: Certamente que não. Sou eu que os enterrarei com minhas mãos. Vou levá-los ao bosque sagrado de Hera Acréia, para que nenhum inimigo, para que nenhum inimigo lhes cause o ultraje de violar-lhes a sepultura. E nesta terra de Sísifo instituirei uma festa solene e sacrifícios em expiação por esse assassinato ímpio. Parto para a cidade de Erecteu, onde compartilharei da morada de Egeu, filho de Pandion. Quanto a ti infame, perecerás miseravelmente como mereces (esmagada a cabeça pelos destroços do navio Argo) e recolherá os amargos frutos de teu novo himeneu.” (pág. 58)

Fico por aqui e indico esse texto maravilhoso, um dos grandes clássicos da literatura teatral grega: “Medeia”, de Eurípedes. Um livro que merece um lugar de “HONRA” na sua estante.


Data: 02 fevereiro 2023 | Tags:


< A Greve do Sexo O Mundo de Homero >
Medéia
autor: Eurípedes
editora: Abril Cultural
tradutor: Miroel Silveira, Junia Silveira Gonçalves

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