Livros > Resenhas

Um pequeno herói

Dostoiévski é um autor que dispensa apresentações aqui no blog. Considero-o um gênio da raça humana. E o livro que vamos apresentar hoje, “O Pequeno Herói”, foge ao seu estilo rascante, mórbido e sempre com uma crítica impiedosa contra essa espécie a que pertencemos, a humana.

O livro foi concebido quando ele estava na cadeia, acusado de conspiração. Sua sentença de morte decretada pelo Czar Nicolau I, ao invés de torná-lo um homem ainda mais amargo, dessa vez teve o efeito contrário. O livro não parece escrito por um sentenciado à morte.

Acabou sendo solto e foi cumprir a pena realizando trabalhos forçados. Envolvido com socialistas utópicos em um processo que ficou conhecido como “O caso Petratchevski”, foi preso em 1849 junto com outros companheiros. No entanto, muito embora mantivesse uma relação política com esse grupo, não comungava a mesma vocalização política dos demais membros.

Antes de ser preso, Dostoiévski era uma pessoa irritadiça, de um temperamento difícil, que se desentendia facilmente com seus amigos. Era antissocial, taciturno, reticente. E isso foi dito por ele em um interrogatório à Comissão Secreta de Inquérito. Bem mais tarde, segundo seu amigo, o escritor Vsievolod Solovióv, ao comentar sobre a doença nervosa, Dostoiévski declarou: “[...] foi o destino que me ajudou na época, a prisão me salvou... fez de mim outro homem. Quando me vi na Fortaleza, achei que aquilo era o meu fim, achei que não aguentaria três dias – e de repente me acalmei. Afinal, o que fiz lá...? eu escrevi Um pequeno herói – leia-o, há nele algum vestígio de amargura, de sofrimento? Eu tinha sonhos bons e tranquilos, e depois, à medida que o tempo foi passando, foi ficando melhor.

Para mim, isso foi uma grande felicidade” (retirado do posfácio de Fátima Bianchi – pg 76)

Vamos ao livro?

O livro é narrado na primeira pessoa sob a forma de memórias, e o narrador intervém como protagonista e começa a história dizendo logo na primeira página: “Tinha na época pouco menos de onze anos. Em julho, deixaram que me hospedasse num vilarejo nas imediações de Moscou, na casa de um parente, T...v, onde se encontravam reunidos na ocasião uns cinquenta convidados, ou talvez até mais... não me lembro, não contei. Havia muito barulho e alegria. Parecia uma festa que começara com o propósito de não acabar nunca. Parecia que o nosso anfitrião havia prometido a si próprio dissipar  toda a sua imensa fortuna o quanto antes, e ele conseguiu mesmo, não faz muito tempo, justificar essa conjectura, isto é, dissipar completamente tudo, sem deixar nada, até a última migalha. Ao todo instante chegavam novos convidados. Moscou mesmo ficava a dois passos, bem à vista, de modo que quem partia apenas cedia lugar aos outros, e a festa seguia seu curso.” (pg 7)

Segundo Fátima Bianchi em seu posfácio, esta história faz várias referências a leituras dos romances de cavalaria. E a festa mencionada tem um clima frívolo e feérico, repleto de cores, música, teatro, dança. A palavra festa nesse contexto tem um significado meio ritualístico de iniciação de um menino para o mundo adulto. Em outras palavras, podemos dizer que, entre Moscou (a realidade cotidiana) e esse lugar imaginário, existe uma festa.

As pessoas se encontram livres dos trâmites sociais. Os comportamentos excêntricos, por exemplo, da dama loura, que infringe as normas de etiqueta. Os gracejos, as provocações.  Faz parte dessa festa dialogar com o carnaval da Idade Média, como mencionado por Fátima Bianchi. Uma espécie de libertação que adquire tons carnavalescos.

O enredo trata da história de um menino que passa alguns dias na casa de um parente rico. Tímido, ele tem uma vida interior bem aguçada e começa a se sentir atraído por uma jovem loura, bem mais velha do que ele, alegre e brincalhona. Essa infantilidade no comportamento dela quebra o distanciamento entre adultos e crianças. O temperamento dessa jovem loura acaba constrangendo o protagonista quando ela aperta suas mãos até ele não aguentar, fazendo ele soltar um grito. Tentando fugir dessa jovem loura, acaba encontrando e se apaixonando por uma senhora morena de semblante triste. Seus olhos a seguem constantemente. Entretanto, mais uma vez a jovem loura surge desafiando-o a montar em cavalo indomável, totalmente selvagem. Ele aceita o desafio e consegue galopar com o cavalo, sendo recebido como herói por todos os presentes na festa, incluindo a loura impertinente, que se torna sua amiga. No dia seguinte, nosso herói andava pelo campo quando foi surpreendido por uma cena: a dama morena por quem ele estava profundamente apaixonado (que era casada com um homem ciumento) despedindo-se de seu amante no bosque. Ele percebe quando ela perde uma carta. Mas fico por aqui.

“Um Pequeno Herói”, de Fiódor Dostoiévski, é um livro simplesmente lindo.

Como já disse, foi escrito na cadeia e, no entanto, possui uma ternura. É diferente de tudo que o nosso gênio já escreveu. Por isso, eu recomendo-o de olhos fechados. Um livro que merece um lugar de destaque na sua estante.


Data: 08 agosto 2016 | Tags: Romance


< A noite dos desesperados Travessuras da menina má >
Um pequeno herói
autor: Fiódor Dostoiévski

compartilhe

     

você também pode gostar

Resenhas

A morte de Carlos Gardel

Resenhas

Divórcio em Buda

Resenhas

Tirza