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A Insustentável Leveza do Ser

Milan Kundera nasceu no dia 1º de abril de 1929, em Brno, na Tchecoslováquia (atual República Tcheca). Estudou cinema na Academia de Música e Artes dramáticas em Praga, onde mais tarde ocupou o cargo de professor assistente de 1958 a 1969. Foi membro do comitê central da União de Escritores da Tchecoslováquia de 1963 a 1969. Seu primeiro romance foi “A Brincadeira”, ainda não resenhado aqui. O livro é uma sátira da natureza do sistema comunista. Claro que esse livro causou problemas com os censores nacionais e consequentemente não foi publicado. Sua frustração com os censores culminou com um discurso que ele fez no IV Congresso de Escritores da Tchecoslováquia. Os resultados desse discurso não foram nada favoráveis a ele. E tanto ele como outros escritores que seguiram sua liderança foram submetidos a mais censura.

No entanto, por um breve período em 1968, sob a liderança de Alexander Dubcek, o país viveu um período conhecido como “Primavera de Praga”. O governo aliviou as restrições a seus cidadãos e consequentemente aos seus escritores. Os países do bloco soviético, liderados pela União Soviética, começaram a se sentir incomodados com o relaxamento do regime, e aconteceu aquilo que todos nós sabemos. O governo russo, através de seus  tanques,  entrou em Praga e assumiu o controle do país. Derrubaram Alexander Dubcek e colocaram Gustav Husak em seu lugar, instituindo um regime repressivo que durou 21 anos.

Durante esse período, os livros e peças de Kundera foram proibidos, e suas obras não podiam ser vendidas em livrarias ou lidas na biblioteca da Tchecoslováquia. Acabou sendo proibido de publicar em seu país e ainda por cima perdeu o cargo de professor.

Em 1975 Milan Kundera recebeu permissão para imigrar para a França, onde veio a tornar-se professor. Seu romance “O livro do riso e do esquecimento”, publicado pela primeira vez em inglês em 1980, levou o governo tcheco a revogar a cidadania dele. Em 1981, Kundera tornou-se cidadão francês. Já respeitado internacionalmente, o livro que o catapultou para o lugar de destaque na literatura mundial foi “A Insustentável Leveza do ser”. O livro de que falaremos hoje.

Vamos a ele?

Publicado pela primeira vez em 1984, “A insustentável leveza do ser”, de Milan Kundera, é um romance rico e simplesmente delicioso de ser lido. O livro é ao mesmo tempo uma história de amor, um tratado metafísico, um comentário político, um estudo psicológico, uma lição sobre kitsch, uma composição musical em palavras, uma exploração estética e uma atenção sobre a existência humana. 

O romance abre com uma reflexão sobre a ideia do eterno retorno do filósofo Friedrich Nietzsche, em contraste com a noção de einmal ist keinmal; isto é:

“Tomas repete para si mesmo o provérbio alemão: einmal ist keinmal, uma vez não conta, uma vez é nunca. Poder viver apenas uma vida é como não viver nunca.” (pg 14)

Segundo Nietzsche, o eterno retorno é o mais pesado dos fardos. A ausência desse fardo, no entanto, torna a vida inconsequente. A oposição binária de peso e leveza continua ao longo do livro.

“O eterno retorno é uma ideia misteriosa e, com ela, Nietzsche pôs muitos filósofos em dificuldade: pensar que um dia tudo vai se repetir como foi vivido e que tal repetição ainda vai se repetir indefinidamente! O que significa esse mito insensato?” (pg 9)

 

O eterno retorno afirma que o tempo se move em um ciclo em vez de em uma linha reta linear. Nessa ideia, todos os eventos ao longo da existência aconteceram antes e acontecerão novamente em um loop infinito.

Com o eterno retorno, cada erro ou sucesso na vida de uma pessoa é repetido inúmeras vezes, dando até mesmo aos menores elementos da vida uma enorme importância. Nietzsche considerava esse peso o “mais pesado dos fardos”.

Esse peso para criar significados é uma das principais lutas que os personagens de “A Insustentável Leveza do Ser” enfrentam. Kundera contrasta a ideia de peso de Nietzsche com a ideia de leveza do antigo filósofo grego Parmênides. No século V a.c., Parmênides argumentou que o mundo poderia ser dividido em opostos: escuro/claro, grosso/fino, pesado/leve, quente/frio,o ser/o não-ser. 

“Essa divisão em polos positivo e negativo pode nos parecer de uma facilidade pueril. Exceto em um dos casos: o que é positivo, o peso ou a leveza? Parmênides respondia: o leve é positivo, o pesado é negativo. Teria ou não teria razão? A questão é essa. Só uma coisa é certa. A contradição pesado/leve é a mais misteriosa e mais ambígua de todas as contradições.” (pág. 11)

O protagonista do romance é um neurocirurgião de sucesso chamado Tomás. Ele vive uma vida tranquila e despreocupada em Praga dos anos 1960. Amante de Sabina e pai de Simon. Tomas tem um compromisso inadiável com as mulheres que conhece. Ele tem um caso com Sabina por um longo período. Certa vez, numa pequena cidade tcheca, quando foi realizar uma cirurgia, ele conhece Tereza. Ela se encanta por ele e decide visitá-lo em Praga. Depois de ficar gripada, Tereza ficou uma semana inteira no apartamento de Tomas. Ele a vê como uma criancinha deixada no seu apartamento em uma cesta. Tomas não sabe o que fazer com os seus sentimentos em relação a Tereza.

Convidar Tereza para ficar morando com ele viola o modo de vida de Tomas. Ele, que há muito se divorciou da esposa e abandonou o filho Simon, é solteiro e não consegue dormir ao lado de uma mulher. Ele tem muitas amantes, mas sempre pedem que elas saiam à meia-noite. Quando Tereza dorme em seu apartamento, ele acorda com Tereza segurando nas mãos dele e olha para a mala enorme ao lado da cama.

Tomás estava casado havia menos de dois anos quando se divorciou de sua esposa e, embora inicialmente lutasse pela custódia de seu filho pequeno, Simon, ele rapidamente decidiu não mais vê-lo. Seus pais não aceitaram a decisão do filho, e eles cortaram a relação com Tomás. Desde então, sua vida tem sido uma série de relações sexuais com as mais variadas mulheres.

Ele obedece a um conjunto de regras em relação às suas amantes. A cada encontro ele se separa, após o sexo, durante três semanas. Nem todas as mulheres aceitam essa abordagem nos relacionamentos, mas Sabina aceita. Sabina vê em Tomás o oposto do kitsch. Tomás nunca passa a noite com as suas amantes, mas, depois de acordar com Tereza segurando a sua mão, ele descobre que ele como Tereza gostam de dormir um ao lado do outro.

Nos braços de Tomás, Tereza dorme como um bebê. Ele sussurra em seu ouvido e a embala para dormir com palavras sem sentido. Ele tem o controle total sobre o sono dela, e todas as manhãs quando acorda, Tereza abraça com força. Tomás chega à conclusão de que dormir ao lado de uma mulher e fazer sexo com uma mulher são coisas diferentes. O amor não é o desejo de sexo, mas o desejo de dormir ao lado de alguém.

Tereza está ciente das amantes de Tomas, mesmo que ele não tenha falado sobre elas. Ela vasculha as gavetas da escrivaninha de Tomas porque suspeita de alguma mulher. E o comportamento dele é uma tortura para ela. Até que uma noite, Tereza acorda de um pesadelo. Ela diz que, no sonho, ela foi forçada a vê-lo fazendo sexo com Sabina em um palco. Tomas desconfia que Tereza está lendo suas cartas pessoais.

Ao confrontar Tereza sobre as cartas, ela admite que leu suas cartas. Tereza manda que ele a expulse de casa, mas ele não quer. Ele tenta convencê-la de que suas amantes não têm nada a ver com os seus sentimentos por ela. Até que um dia eles vão a um bar com algumas amigas e amigos de trabalho de Tereza para comemorar a sua promoção, quando ela é chamada para dançar com outro homem e e ele sente ciúmes.

Para comprovar o seu amor por Tereza, Tomás se casa com ela e lhe dá um cachorrinho, e Tomás sugere que o filhote se chame de Karenin em homenagem ao romance de Leon Tolstoi. Foi nesse período que se deu a ocupação soviética na Tchecoslováquia. Tereza percorre as ruas de Praga tirando fotos. Tereza, que se torna fotógrafa graças à Sabina (amante de Tomas), entrega a maioria de seus filmes não revelados sobre a ocupação soviética em Praga à imprensa estrangeira e, em seguida, é presa pelos militares russos, mas é libertada no dia seguinte. A maioria dos tchecos encontra-se desesperada por causa de deportação para a Sibéria, execuções em massa, e fica claro que todos irão se curvar ao conquistador., ou seja, aos russos. Os dois resolvem ir para Zurique. Tomás aceita um emprego de médico e saem de Praga. Tereza sabe que Sabina encontra-se em Genebra.

Quando chegam na Suíça, Tomás encontra-se com Sabina. Ela está hospedada em um hotel em Zurique. Os dois fazem sexo imediatamente. Depois de seis meses morando em Zurique, Tereza sabe dos encontros dele com Sabina, e pega Karenin e volta para Praga. Na carta ela diz que lhe faltam forças para permanecer fora da Tchecoslováquia. Tomás sente a seriedade da decisão de Tereza. Desde a mudança para Zurique, as fronteiras da Tchecoslováquia foram fechadas – assim que Tereza entrar ela não poderá mais sair novamente.

Com a volta de Tereza para Tchecoslováquia, Tomás tem uma sensação estranhamente reconfortante. Ela saiu como entrou, ou seja, com uma mala enorme. Sente-se menos pesado e, de acordo com a teoria de Parmênides, desfrutando da “insustentável leveza do ser”. No entanto, ele sabe que a lembrança de Tereza fará com que a convivência com outra mulher poderá ser dolorosa demais para suportar. Tomás aos poucos vai percebendo que ficar em Zurique sem Tereza seria insuportável.

Enquanto isso a narrativa muda para a amante de Tomás, Sabina, que também fugiu da invasão soviética para Genebra. Ela começa um caso com um professor infeliz chamado Franz, um professor universitário em Genebra. Ele é casado com Marie Claude, a quem ele não ama. Ao longo dessa parte do livro, Sabina e Franz mostram suas diferenças. Franz ama música, ele tenta explicar o seu amor pela música para Sabina.

“Para Franz, é a arte que mais se aproxima da beleza dionisíaca concebida como embriaguez. Dificilmente nos aturdimos como um romance ou um quadro, mas podemos nos inebriar com a nona de Beethoven, com a Sonata para dois pianos e percussão de Bartók e com uma canção dos Beatles. Franz não faz distinção entre a música erudita e a música ligeira. Essa distinção lhe parecia hipócrita e ultrapassadas. Gostava igualmente de rock e de Mozart. (pg 92)

 Sabina é pintora e é representada como luz dentro da teoria de Parmênides. Para ela, música é apenas barulho. Seus primeiros anos na Academia de artes arruinaram seus sentimentos pela música.

“Para Sabina, viver significa ver. A visão é limitada por uma dupla fronteira: a luz intensa, que cega, e a escuridão total. Talvez daí é que venha sua repugnância por todo extremismo, em arte como em política, é desejo de morte disfarçado. (pg 94)

Sabina evita o amor e os relacionamentos comprometidos. Todos os seus relacionamentos e toda a sua vida é uma série de traições. A traição é uma forma de embarcar no desconhecido. Ela conhece Franz, um professor casado e cheio de sombras. Infeliz no casamento. Franz é atraído pela escuridão – quando faz amor com Sabina, ele fecha os olhos.

Para Sabina, viver significa ver. A aversão de Sabina ao comunismo é estética e não ética. Sabina odeia a “máscara da beleza” usada pelo comunismo, que ela chama de “kitsch comunista”. Um excelente exemplo de “kitsch comunista” era o desfile de Primeiro de Maio. Todos vestidos de vermelho, branco e azul, e sorriem e aplaudem com a saudação: “Viva a Vida”, que significa “Viva o Comunismo”.

Franz está encantado por Sabina e resolve contar à esposa sobre seu caso, exatamente o que Sabina não quer que aconteça. Para Sabina, “traição” não é uma ofensa imoral, mas significa romper as fileiras e ir em direção ao desconhecido, e ela acha que não há nada mais maravilhoso do que romper fileiras e ir para o desconhecido. Ela vê a traição como um tipo de aventura e está intimamente ligada a quem ela é. Sabina gostaria de ter sido ligada a Franz, que ele exercesse o controle sobre ela. Mas Sabina o vê como fraco e incapaz de tal controle.

“Um sobre o outro, ambos cavalgavam. Iam ambos em direção às distâncias que desejavam. Aturdiam-se ambos numa traição que os libertava. Franz cavalgava Sabrina e traía sua mulher, Sabina cavalgava Franz e traia Franz.” (pg 117)

Quando Franz fala à sua esposa sobre Sabina, ela imediatamente o rejeita. Desapontado, Franz logo percebe que estava com a ideia de Sabina e não com a realidade de um relacionamento com ela. Ele acaba com uma aluna muito mais nova.

A história volta ao início, desta vez do ponto de vista de Tereza. Nesse capítulo, o leitor compreende o contexto familiar e psicológico que move Tereza. Seu pai era um preso político que morreu na cadeia e sua mãe é uma mulher abusiva e vulgar que tem o grande prazer em humilhar Tereza. Ela ilustra, segundo o narrador, a dualidade irreconciliável entre corpo e alma. O corpo é uma “gaiola”, afirma o narrador, e dentro está a alma, a coisa que sente, ouve, olha e teme. A mãe de Tereza está na raiz da antipatia de Tereza por seus próprios corpos. Enquanto Kundera argumenta que a vida só ocorre uma vez, ele sugere que ela se repete de outras maneiras, como as semelhanças de Tereza com sua mãe.

No capítulo onde o narrador faz a distinção entre leveza e peso, descobrimos que, ao voltar a Praga, Tomás acaba sendo demitido de sua profissão de cirurgião e acaba como limpador de janelas. O motivo é o fato de ele ter enviado uma carta (considerada suspeita) ao editor de um jornal durante a breve Primavera de Praga. Agora, com o regime mais opressivo, ele é chamado a se retratar. Ele se recusa a fazê-lo e deve, consequentemente, renunciar ao seu emprego. Para fugir das intrigas, ele resolve sair de Praga rumo a uma fazenda coletiva no país, acreditando que esse movimento os colocará tão abaixo na escala social que o Estado não se preocupará mais com ele, pois têm muito pouco a perder.

Aqui cabem algumas observações. Kundera apresenta seus personagens dividindo-os em pesados e leves. Cada um se comporta de maneiras que sugerem que eles não se enquadram estritamente em um lado da dicotomia. Sabina é representada como leve. Ela é uma mulher sexualmente liberada e adversa a compromissos. Para isso, tenta se livrar sua vida da família e de outros relacionamentos pesados para se manter mais leve possível.

Tomás também é representado como leve, ele também é sexualmente livre e, como regra geral, evita o amor para não ficar atolado. Ele abandona a esposa, Tereza, e seu filho, Simon, em nome de alcançar essa leveza. Quando conhece e se apaixona por Tereza, essa leveza não é tão fácil.

 Depois que Tereza deixa Tomás em Zurique e volta para sua Tchecoslováquia natal, Tomás a segue, sabendo que o novo regime não permitirá que ele saia de novo. Tomás opta pelo amor, uma emoção pesada do qual ele não conseguirá escapar.

Tereza é representada como pesada tanto figurativa como literalmente – ela valoriza o amor e o compromisso (especialmente com Tomás) e carrega toda a sua vida em uma enorme mala.

No entanto, em determinado momento, Tereza flerta com a leveza quando ela mantém um relacionamento com um cliente em um bar onde ela trabalhava em Praga. Tereza flerta com Sabina, amante de Tomás, em Zurique.

Mas Tereza aposta em relacionamentos sérios e comprometidos. A leveza de seus flertes contraria seus valores pesados. Embora Tereza seja retratada como uma mulher pesada, ela ainda consegue ser um pouco leve.

No capítulo 6, Kundera explora a noção de kitsch, particularmente o Kitsch comunista. O kitsch execra o incomum. Ele é derivado de imagens comuns de pessoas, como a felicidade de crianças sorridentes. Kitsch leva a duas lágrimas caindo nos olhos. A primeira lágrima reconhece como é bom crianças brincando, e a segunda lágrima reconhece como é bom se emocionar com essas coisas. É a segunda lágrima que faz do Kitsch, kitsch, diz o narrador.

“O Kitsch faz nascer, uma outra, duas lágrimas de emoção. A primeira lágrima diz: Como é bonito crianças correndo num gramado!

A segunda lágrima diz: Como é bonito se emocionar com toda a humanidade ao ver crianças correndo num gramado!

Somente essa lágrima faz o Kitsch ser o kitsch.

A fraternidade entre todos os homens não poderá ter outra base o kitsch.” (pg 246)

 

Ninguém conhece o Kitsch melhor do que os políticos, diz o narrador, pois o kitsch está presente em todos os partidos e movimentos políticos. Políticos beijando bebês na frente de grandes multidões é o auge absoluto do kitsch. O político que beija o bebê realmente não se importa com bebê – eles se importam em parecer se importar com o bebê.

Sempre que um movimento político assume o controle total, isso é “kitsch totalitário”. A ideia de um “kitsch totalitário” proibindo qualquer coisa que o ameace reflete a afirmação de Sabina de que o comunismo mascara a beleza.

“ Se digo “totalitário” é porque nesse caso tudo o que possa prejudicar o kitsch é banido da vida: toda manifestação de individualismo (porque toda discordância é uma cusparada no rosto da fraternidade sorridente), todo ceticismo (porque quem começa duvidando do detalhe mais ínfimo acaba duvidando da própria vida), a ironia (porque no reino do kitsch tudo tem que ser levado a sério), mas também  a mãe que abandona a família ou o homem que prefere os homens às mulheres, ameaçando assim o slogan sacrossanto “amai-vos e multiplicai-vos” (pág. 247)

Nesse capítulo, a história retorna a Franz, que decide ir à Tailândia com um grupo de intelectuais contra as violações dos direitos humanos no Camboja, ou seja, “uma grande marcha” (título do capítulo). O país havia sido atingido pela fome generalizada e está ocupado pelo Vietnã, que era uma extensão da Rússia. Os médicos foram impedidos de entrar no país para ajudar os moribundos, e o objetivo da “Grande Marcha” é forçar a entrada de ajuda internacional. Franz tem uma chance de lutar contra a opressão comunista.

No entanto, a “Grande marcha”, que havia sido uma ideia dos franceses, foi apropriada pelos americanos, que assumiram totalmente o controle do protesto. A reunião está sendo falada em inglês. Um intérprete é encontrado na reunião, que demora o dobro porque cada palavra precisa ser traduzida. No encerramento da reunião, um dos membros levanta o braço com o punho fechado, pois esse é um gesto bem europeu quando protestam.

O pedido para entrar no Camboja é novamente gritado pelo megafone, mas o silêncio permanece. Franz olha em volta e decide que a “Grande Marcha” definitivamente havia acabado. Essa manifestação dentro da relação leve/pesado é leve de acordo com a compreensão de Milan Kundera. Franz coloca a sua vida em risco para adicionar peso à causa – mas a vida de Franz também não tem sentido e também não tem peso, então ele retorna para o ônibus derrotado.

Nesse capítulo, observa o narrador que os esquerdistas queriam participar de uma “Grande Marcha” contra o comunismo, quando o comunismo sempre foi uma ideia de esquerda. O kitsch em si não é uma estratégia política; é uma estratégia de imagens e metáforas, que possibilita um esquerdista marchar contra o comunismo.

Enquanto está lá, ele acaba sendo assaltado por alguns bandidos de rua e acaba morrendo em um hospital logo após seu retorno. Sua morte, assim como a grande marcha, não tem sentido. Ele não conseguiu ganhar peso e importância, apesar de várias tentativas. Desta forma, a vida de Franz é insuportavelmente leve e, como nunca mais voltará, cairá na completa obscuridade. O funeral é completamente kitsch. Marie-Claude (sua ex-mulher) não o amava, e ele não a amava. Todos sabem disso, e até sua jovem namorada, ignora essa realidade.

No último capítulo intitulado “O sorriso de Karenin”, Tereza e Tomas vendem quase tudo que possuem em Praga e se mudam para o interior. O campo é a fuga deles, e ninguém se importa com política lá. Tereza está feliz, mas ela e Tomas tiveram que romper com velhos amigos em Praga para viver uma nova vida. Uma pequena aldeia, sem igrejas, bares, e o teatro mais próximo fica a quilômetros de distância.

Ninguém é dono de nenhuma terra no campo comunista, e todos trabalham para uma fazenda coletiva. Existem suprimentos e gados compartilhados, mas apesar de tudo existe alguma autonomia. Ninguém quer morar lá, e as pessoas do campo são deixadas em paz. Tereza e Tomas não tiveram dificuldade em encontrar uma casinha e trabalho na fazenda coletiva. Quando eles chegam ao campo, Tomas encontra um ex-paciente e seu porco chamado Mefisto.

Tereza encontra trabalho cuidando das novilhas da fazenda coletiva. Karenin (a cachorrinha) está mancando e, ao levá-la ao veterinário, descobre que ela sofre de um câncer. Semanas depois, fica claro que o câncer de Karenin está se espalhando. Aqui o narrador diz que a bondade humana, se for realmente pura, só pode existir se o destinatário dessa bondade não tiver poder. Assim, o verdadeiro teste moral da humanidade é a misericórdia que se mostra para com os animais.

Kundera, portanto, argumenta que a verdadeira bondade não pode existir se houver algo a ser ganho.

 

“Do caos confuso dessas ideias, germina na mente de Tereza uma ideia blasfematória de que ela não consegue se desvencilhar: o amor que a liga a Karenin é melhor que o amor que existe entre ela e Tomas. Melhor, mas não maior, Tereza não quer acusar ninguém, nem a ela, nem a Tomas. Melhor, mas não maior. Tereza não quer acusar ninguém, nem ela, nem a Tomas, não quer afirmar que poderia se amar mais. Parece-lhe apenas que o casal humano é criado de tal forma que o amor entre o homem e a mulher é a priori de uma natureza inferior à do que pode existir (pelo na melhor de suas versões) entre o homem e o cachorro, essa esquisitice da história do homem que o Criador certamente não planejou.

... E mais uma coisa: Tereza aceitou Karenin tal qual é, não procurou transformá-la para que ficasse semelhante a si própria, aceitou de antemão seu universo de cachorra, não quer lhe confiscar nada, não sente ciúme de seus desejos secretos. Se a educou, não foi para mudá-la (como um homem quer mudar sua mulher e uma mulher seu homem), mas apenas para lhe ensinar a linguagem elementar que lhes permitisse se compreender e conviver. (pg 291; pg 292)

Vivendo na natureza, cercada de animais e estações, Tereza encontra algum nível de felicidade.

“A comparação entre Karenin e Adão me leva à ideia de que no Paraíso o homem ainda não era o homem. Mais exatamente: o homem ainda não tinha lançado na trajetória do homem. Nós outros já nos lançamos nela há muito tempo e voamos no vazio do tempo, que se consuma em linha reta. Mas existe ainda em nós um fino cordão que nos liga ao Paraíso distante e nebuloso, em que Adão se debruça na fonte e, ao contrário de Narciso, não suspeita que a pálida mancha amarela que vê aparecer seja ele. A nostalgia do Paraíso é o desejo do homem de não ser homem.” (pág. 290)

O tempo humano não ocorre em círculo, e é por isso que os seres humanos nunca podem ser verdadeiramente felizes. O desejo de repetição é felicidade, e é isso que Karenin dá a Tereza.

Tomas e Tereza decidem que é hora de sacrificar Karenin (vítima de um câncer). Todos estão sofrendo, e nenhum deles aguenta mais assistir a isso. Tomas aplica a injeção e Karenin morre.

 Em outro momento após a morte de Karenin, Tomas está sentado à mesa com uma carta de seu filho, Simon. Ele enviou muitas cartas ao pai ao longo dos anos, mas não dá endereço do remetente, até agora, Tomas nunca contou a Tereza sobre as cartas. A mãe de Simon era uma comunista convicta, mas Simon rompeu com o regime quando saiu de casa. Simon transformou-se em um crente nas forças em Deus e na religião, que ele considera a única associação voluntária na Tchecoslováquia.

O regime não tem absolutamente nada a ver com a religião, já que na Tchecoslováquia praticava-se o ateísmo estatal, no qual o estado não acredita nem em Deus ou religião. A religião foi suprimida nos regimes comunistas e, ao abraçar a religião, Simon rejeita tanto o regime comunista como a sua mãe.

As semelhanças de Simon e Tomas, como as de Tereza e sua mãe, são outra forma de eterno retorno. Tomas vive de uma certa forma novamente através de seu filho. Essa passagem marca o momento em que Tereza finalmente percebe que agora detém todo o poder sobreTomas. Afinal, Tomas voltou a Praga depois de morarem em Zurique por causa de Tereza.

Eles dirigem para uma cidade próxima, onde o hotel tem bar e pista de dança. Teerza dança com o presidente da fazenda coletiva e depois com Tomas. Enquanto dançam, Tereza pede desculpas por fazer ele voltar para Praga.

“Enquanto estava dançavam, ela lhe falou: “Tomas, em sua vida eu fui a causa de todos os males. Foi por minha causa que você veio parar aqui. Foi por minha causa que você desceu tão baixo, mais baixo é impossível”.

“Você está divagando” replicou Tomas. “Em primeiro lugar o que significa tão baixo?”

“Se tivéssemos ficado em Zurique, você estaria operando seus doentes”

“E você estaria fotografando”.

“Não se pode comparar” disse Tereza. “Para você, o trabalho era a coisa mais importante do mundo, enquanto eu, eu poderia fazer qualquer coisa, não me importaria. Não perdi nada. Você perdeu tudo”

“Tereza disse Tomas, “você não notou que me sinto feliz aqui?”

“Sua missão era operar!”

“Missão, Tereza, é uma palavra idiota. Eu não tenho missão. Ninguém tem missão. E é um alívio enorme perceber que somos livres, que não temos missão”. (pg 306; pg 307)

Tomás garante a ela que está feliz e acrescenta que sem emprego ele está completamente livre. Ela olha para Tomas e pensa na lebre.

“O que significa ser transformado em lebre? Significa querer a força. Significa que dali em diante um não é mais forte que o outro.” (pg 307)

Ele se considera “livre e feliz mesmo que suas vidas não tenham saído como o esperado”. “A tristeza era a forma, e a felicidade era o conteúdo”. Assim, nas horas que antecedem suas mortes, Tomas e Tereza estão felizes juntos.

Fico por aqui e posso dizer que “A Insustentável Leveza do Ser”, de Milan Kundera, foi um dos romances que mais me marcaram nos últimos anos. MERECE UM LUGAR DE HONRA NA SUA ESTANTE.


Data: 16 novembro 2022 | Tags: Romance


< Estado de Crise Penélope dos trópicos >
A Insustentável Leveza do Ser
autor: Milan Kundera
editora: Companhia das letras
tradutor: Teresa Bulhões Carvalho da Fonseca

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