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Penélope dos trópicos

Hoje falaremos mais uma vez de uma escritora recorrente aqui neste espaço. O nome da escritora é Luciana Hidalgo, e o seu novo livro: “Penélope dos Trópicos”. O livro é ótimo. Mas precisei ler e reler. Na primeira vez, quando estava indo tudo bem, estava na metade do livro, peguei uma Covid das brabas. Olha que eu sou um cara que me cuido. Estou vacinado pela quarta vez, continuo usando máscara e álcool em gel, e mesmo assim ela me pegou e me derrubou de uma tal maneira que precisei interromper a leitura do livro. Não havia condições físicas para prosseguir. Não sou de falar de mim aqui neste espaço, mas se eu não tivesse me vacinado, hoje faria parte de algum obituário. Passei muito mal.

Pois bem, recuperado, precisei reler. Minha mente não conseguia interagir com a história durante a Covid. Tive que começar do zero, para pegar o fluxo da história que havia perdido. E assim fiz, reli e foi muito agradável, foi a melhor opção. E cá estou para comentar sobre uma excelente história de uma premiadíssima autora vencedora de dois Jabutis.

Os mitos são histórias frequentemente lidos e relidos. E, ao serem relidos, são ressignificados, ou seja, adquire um certo distanciamento da narrativa original. Não é à toa que cada geração tem sua forma muito peculiar de ler os mitos e fazer sua própria interpretação. A “Penélope dos trópicos” dialoga com a Penélope antiga da Odisseia.

Penélope na Odisseia é um parâmetro feminino retratada por Homero, que pertence a uma aristocracia. Sendo ela uma aristocrata, desempenha um papel específico, cuja dimensão é entendida pela palavra “arete” (virtude). Refere-se, em termos gerais, a um ideal de excelência humana. Os gregos tornam-se gregos pela educação, a paidéia, e não pelo nascimento. Como princípio normativo da paidéia grega, que na verdade é um padrão de excelência humana detentor da palavra grega arete, que significa coragem, a bravura de um guerreiro, a mais elevada perfeição como harmonia do ser, guardando nas palavras de Platão em “A República” semelhanças com os deuses.  

 

“A areté é o atributo próprio da nobreza, é a força e a destreza dos guerreiros ou lutadores, é o heroísmo ligado a força. Ou seja, nobreza bravura militar. O homem nobre é erigido por forças alheias ao homem comum” (pág. 87)

O mito de Penélope na Odisseia de Homero mostra uma das mais claras e populares imagens de feminilidade que tece a solidão. Enquanto espera por Ulisses, pacientemente borda, durante vinte anos, antes e depois da guerra de Troia, e mesmo sendo muito cortejada, nunca duvidou que seu esposo voltaria para ela.

A tela que Penélope tece tem como objetivo cuidar de si mesma, ela tece a própria espera. Enquanto espera, desfaz os pontos antigos, cria outros desenhos, os laços e os nós de sua tapeçaria. Somos uma contagem regressiva da esperança. Os nós são as dificuldades naturais. Na igreja católica existe a Nossa Senhora Desatadora dos Nós. É sabido que a ardilosa Penélope se dedicava a tecer apenas durante o dia e, quando chegada a noite, sob a luz das tochas, tratava de desfazer parte da trama; desta forma, junto a cada aurora, nascia um recomeço.

A referência à trama nos reporta aos acontecimentos da própria existência, tecidos por uma dolorosa memória. Quando ela tece, ela também sonha. No momento em que se vê obrigada a escolher entre casar com um de seus pretendentes ou esperar Ulisses, Penélope sonha. Sonhos esses advindos de uma outra realidade, de um outro mundo.

E quem é a Penélope dos trópicos?  Uma mestiça cordial carnavalizada capaz de enfrentar todas as adversidades sonhadas à procura de aventuras homéricas. Ela que ir à luta, encarar o duelo do dia a dia, com corpo inteiro rumo ao universo onírico. Para Penélope, os seres humanos são seres marionetizados:

“E quando Penélope finalmente escolheu seu protetor, se apegou tanto a ele que nunca mais largou. Na adolescência quando seus pais eram já ausência, ela tatuou o nome do tal deus em grego antigo na nuca, pequeno, discreto, debaixo dos cabelos pretos e fartos. Muitos já viram a tatuagem ninguém nunca a decifrou. O importante é que a deidade nela existe, marcada na pele em tinta preta à base de doloridas agulhadas.

A fé se resume a isso: um capricho juvenil. Quem tem (fé) parece mais inocente e feliz do que quem não tem, passando a frequentar outros cínicos, sendo que entre cínicos surge com o tempo a sutil subdivisão: os que acreditam em bruxas e os que sequer acreditam em bruxas.” (pg 33)

Penélope tem fé. Um acordo tácito, ou seja, quanto mais ela acredita nos deuses, mais eles acreditam nela. Penélope anda diariamente em uma praia tropical, abrindo caminhos entre gaivotas e humanos.

“E se há uma clara predileção da sua parte pelas gaivotas é simplesmente por vir aprendendo e exercitando com elas nesses últimos tempos o valor dos destinos curtos, dos voos breves ao longo da costa, sem grandes afoitices, mundo afora, sem migrações exageradas (os voos de cabotagem por assim dizer). Há aí uma simpatia ou empatia, uma vez que nossa Penélope, essa mortal metida e semideusa que flerta descaradamente com o Olimpo, tem andado um tanto minimalista. Quer dizer, no desespero ao menos tenta. (pg35; pg36)

Seus sonhos são uma mistura mal-acabada de Chagal- Bosch e Dali. Não exerce o protagonismo de uma heroína sonhadora, mas uma mera coadjuvante, uma marionete de si mesma. Tenta manter uma conexão com Zeus. Apela para alguma operadora mítica, mas Zeus não responde. E nem responde suas mensagens de WhatsApp divino, mesmo quando marcado por uma hashtag.

“Penélope? Presente! Ela de repente parece responder à chamada de algum deus olímpico autoritário. Não, Penélope não ouve vozes, apenas preenche o silêncio com distrações íntimas e pensamentos desembestados, alguns engraçados outros mal-humorados, a depender da circunstância e da hora.” (pg 44)

Formada em arquitetura, Penélope se deslumbra com a arquitetura da favela, que para ela é um organismo vivo. Uma cidade hiper-realista, onde ela gostaria de incluir uma ágora, um lugar sagrado onde se situavam os templos dedicados aos deuses olímpicos. No caso do projeto de Penélope, visava construir uma acrópole (numa maquete) no alto do morro, que seria frequentada pelos os deuses mais loucos e dionisíacos. Defendeu suas ideias em uma banca de professores estupefatos.  Não satisfeita, idealizou uma “biblioteca Ideal”, que se contrapõe à arquitetura da biblioteca universitária, inspirada na melancolia importada imposta aos trópicos.

“Ah, Penélope. Não hesitou. Sem medo de ficar mais uma vez desempregada, pediu demissão e loteou o ócio com a leitura obsessiva de quase1.500 páginas que diziam muito dela: das esquisitices, de tudo que a fundou e formou. Ela devia ter lido Paideia antes do 15 como a mãe queria, ou na faculdade ao projetar a sua pólis atropicalhada. Certo desconforto a impediu.” (pág. 83)

Penélope, a utopista, a revolucionária que distribui refeições aos pobres quando no mesmo bairro seus vizinhos fazem campanha contra a esmola e xingam os mendigos de vagabundos. O vídeo filmado por Théo (affair de Penélope) de ela sendo atacada pela polícia e defendendo-se por meios pacíficos dessa violência policial viralizou nas redes sociais.  Penélope, a heroína nacional. Mas aqui nos defrontamos com a terceira lei de Newton, que diz “que toda ação corresponde a uma reação de igual intensidade, mas que atua no sentido oposto. A força é o resultado da interação entre corpos, ou seja, um corpo produz a força e outro a recebe”. Traduzindo, as ações de Penélope produziram reações nas redes sociais, de vagabunda a baderneira, a feminazi, todos com as devidas hashtags inseridas em cada agressão.

#zeusnosacuda

Mas Penélope ri dos insultos e com sua sagacidade foge das balas de borrachas. Não crê em revoluções sanguinárias, suas apostas estão em microrrevoluções que modificam o DNA do país devagar, de dentro para fora, invertendo a hierarquia do poder dia após dia, como, por exemplo, o acesso aos filhos de trabalhadores na universidade pública.

Sabemos que Penélope cresceu entre mundos, o antigo e o contemporâneo. No entanto, não se sente pertencente a nenhum dos dois. Percebeu que os piores sentimentos residem em ambos os mundos. Vivendo na solidão de seus ideais cada vez mais estranhos, pesca uma frase perdida de Paideia de Werner Jaeger:

“Trindade grega do poeta, do homem de Estado e do sábio encarna a mais alta direção de uma nação” (pg 174)

Ancorada no corpo de Théo, seu companheiro de jornadas e manifestações contra o fascismo, Penélope mantém os olhos fechados e pensa consigo mesma: “Você é o meu humano preferido”.

Fico por aqui e indico “Penélope dos Trópicos”, de Luciana Hidalgo. Um livro que merece um lugar de destaque na sua estante.


Data: 15 dezembro 2022 | Tags: Romance, Psicologia


< A Insustentável Leveza do Ser Um País não é uma empresa >
Penélope dos trópicos
autor: Luciana Hidalgo
editora: Editora do Silvestre

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