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A Imortalidade

Os romances de Milan Kundera têm sido para mim uma aula de reflexão filosófica. Não é à toa que a obra de Zygmunt Bauman (autor que reverencio), pelo menos para mim, é uma conversa de alto nível que ele mantém com Milan Kundera. “A Imortalidade” é um romance perfeito. Faz lembrar outro autor que ainda não está aqui resenhado, mas que eu adoro, que é o Robert Musil. É um romance que eu chamaria de romance de ideias. E o que vem a ser romance de ideias? É um tipo de romance em que se centram desde ideias políticas a reflexões filosóficas. No caso, a reflexão se dá em cima do tema “A Imortalidade”.

Todo o romance é uma reflexão suave, mas hipnotizante, sobre a natureza do desejo de imortalidade, o desejo de controlar a reputação e como os mortos são lembrados. Sinto que o livro não oferece nenhuma tese em particular, mas apenas tenta oferecer uma imagem sutilmente fantástica, psicologicamente realista e multifacetada de várias vidas intimamente ou tenuamente interconectadas.

“A Imortalidade” foi publicado em 1990, e de todos os romances sem dúvida alguma é um dos mais longos livros, com 334 páginas, mas sua leitura é muito fácil pelo fato de os capítulos serem curtos. Mas vou logo avisando que um romance de ideias contém ideias para serem pensadas, remete a uma reflexão. Outro ponto é que o livro foi o primeiro livro do autor escrito no Ocidente, e isso tem uma importância enorme. Os seus livros anteriores (“A insustentável leveza do ser”, “O livro do riso e do esquecimento”) foram escritos na Tchecoslováquia. Kundera abandonou toda a esperança de que o comunismo tcheco pudesse ser “reformado” e deixou a sua terra natal para o exílio. Esse livro não traz, como nos livros anteriores, discussões sobre os acontecimentos políticos de sua terra natal.

O romance é pontuado por críticas à sociedade consumista. O narrador odeia rock and roll, não gosta da forma onde tudo é fotografado, odeia fast food, critica como as calçadas de Paris estão repletas de pessoas dispostas a passar por cima de você, critica os carros que ganharam avenidas mais espaçosas, mas estreitou as calçadas, tornando invisível a antiga beleza da cidade. E eu pergunto: ele está errado? Talvez por ser mais velho, tendo a concordar plenamente com ele.

Aquele antigo palestrante legal antenado, crítico do comunismo, agora mudou, e nesse livro a voz é de alguém mais velho. Acho que foi por isso que gostei tanto desse romance. O narrador de “A Imortalidade” é o próprio Kundera, tão opinativo como nos romances anteriores. Mas existe algo que o incomoda: “o mundo livre”. Quando ele escrevia sobre as tiranias, sobre o medo e os aspectos do poder em todos os níveis da sociedade comunista tcheca, para nós, eram relatos de outro mundo, de um outro planeta, onde seus insights eram fascinantes e profundos sobre o funcionamento de uma lógica estranha a nós.

Bem, agora Milan Kundera está no Ocidente livre e ele pode escrever o que quiser. E o livro fala de tudo aquilo que ele odeia no decadente Ocidente, com suas mimadas populações narcísicas e sua horrenda superficialidade fluindo e inundando a história. Como os romances anteriores de Milan Kundera, “A imortalidade” é engenhoso, espirituoso, provocativo e formidável, tanto um prazer quanto um desafio para o leitor.

O enredo e seus personagens não são lineares. Kundera rompe com as convenções da nova forma de se criar um romance dando-lhe uma complexidade incessante. Ele evita a cadeia tradicional de causa e efeito, desenvolvimento de personagens e enredo e os substitui por um texto construído com uma mistura de modos literários, da história e do ensaio filosófico.

Os personagens encontram sua gênese no início de uma manhã sonolenta nos pensamentos do autor. Em uma academia de ginástica em Paris, Kundera vê uma mulher idosa fazendo um gesto gracioso, mas casual, de despedida para o seu instrutor de natação.

“Talvez só tomemos consciência de nossa idade em certos momentos excepcionais, sendo, na maior parte do tempo, uns sem idade. Em todo caso, no momento em que se virou, sorriu, e fez o gesto com a mão para o professor de natação (que não foi capaz de se conter e caiu na gargalhada), ela não tomava conhecimento de sua idade. Graças a esse gesto, no espaço de um segundo, uma essência de seu encanto, que não dependia do tempo, revelava-se e me encantava. Fiquei estranhamente comovido. E o nome Agnes surgiu em meu espírito. Agnes. Nunca conheci uma mulher com esse nome.” (pg 9, pg 10)

Esse gesto é seminal para Kundera começar a criar a existência parcialmente ficcional, parcialmente real para essa mulher chamada Agnes que se torna o personagem central da imortalidade, embora sua centralidade seja obscurecida por sua evasão; por mais que possa ser cativado por ela, Kundera nunca consegue dar a Agnes uma identidade além do simbólico.

Agnes ainda vive a perda do seu amado pai, anseia por solidão – por uma vida sozinha nas montanhas da Suíça, longe, mas em contato com o marido, Paulo, e sua filha, Brigitte. Agnes também tem uma irmã chamada Laura. Ao contrário de Agnes, que tem uma relação estável com o marido, Laura tem uma relação tórrida com Bernardo, um personagem midiático que vive uma crise de identidade sobre o seu valor.

Então, de repente, somos levados para a História. Kundera nos faz voltar para o século XVIII e XIX. Num salto repentino, nos é mostrada a cena em que Goethe, o grande poeta alemão, conheceu Napoleão, em 1811. Porém, brevemente, enquanto ele se distraia com os auxiliares e assistentes entrando e saindo de sua sala. Tendo residido longamente nos males dos paparazzi e na onipresença das câmeras, Kundera imagina, espirituosamente, que a reunião deles seja registrada por câmeras (invisíveis) e escrita por pessoas de relações públicas. Tanta atenção é dada porque os dois lados percebem que essa reunião pode ocorrer na Posteridade. Pode se tornar imortal.

A ideia da imortalidade dos famosos se estabelece no romance numa sequência inusitada quando descreve a devoção obstinada de Betina von Arnim pelo Goethe envelhecido e banguela. Temos a sua biografia completa, uma explicação de como ela é filha de uma mulher pela qual Goethe tinha uma paixão quando jovem. Sua adoração obcecada fez com que ela bombardeasse o velho homem com cartas, guardando as suas respostas. Kundera nos leva à mente do velho poeta, ele sabe que Betina von Arnin é mais uma ameaça do que um interesse amoroso, e não era à toa que ele tentava afastá-la de sua convivência.

Depois que o poeta morreu em 1832, Bettina von Arnin recebeu suas cartas de volta e passou a dar um tratamento a todas elas e a todas as respostas de Goethe, para fazê-lo parecer mais apaixonado por ela do que nunca. E publicou-as em um volume intitulado “Correspondência de uma criança com Goethe. A versão de von Arnim tornou-se parte da lenda de Goethe por um século, afetando profundamente as visões dos biógrafos sobre o grande homem, até que, por acaso, na década de 1920, as cartas originais foram descobertas, publicadas e o registro acertado.

Aqui cabe uma observação. Quando Kundera estava na Tchecoslováquia dizia verdades importantes sobre a situação daquela parte da Europa oprimida. Mas no momento em que estava escrevendo “A Imortalidade”, ele (como já foi dito) vivia no Ocidente por quase 15 anos e já estava completamente exposto à máquina das celebridades do Ocidente capitalista com a sua interminável série de publicações de imprensa de feiras do livro e entrevistas e documentários de televisão.

E quando vemos a história de Betina von Arnim, que estava obcecada em escrever um livro sobre um grande poeta alemão e sobre escritores posteriores que escreveram livros sobre o livro que a mulher escreveu sobre o grande escritor alemão – não podemos deixar de perceber que Kundera se tornou apenas mais um escritor famoso escrevendo livros sobre o sofrimento que é ser um escritor famoso.

Em outra reviravolta surreal, nas últimas três seções curtas desta parte, Kundera imagina Goethe no céu, passeando e conversando com Ernest Hemingway. Por quê? Porque, entre os autores do século XX, Hemingway provavelmente recebeu mais críticas durante sua vida por causa de seu estilo de vida mulherengo, misógino etc. do que qualquer outro. Então, ele é o companheiro ideal para discutir os perigos da imortalidade.

Sabe, Johann, disse Hemingway, eu também não escapo de suas eternas acusações. Em vez de ler os meus livros, escrevem livros sobre mim. Parece que eu não gostava de minhas mulheres. Que não me ocupei suficientemente de meu filho. Que quebrei a cara de um crítico. Que fui pouco sincero. Que fui orgulhoso. Que fui macho. Que me vangloriei de duzentos e trinta ferimentos de guerra quando tive apenas duzentos e seis. Que me masturbei. Que fui mau para minha mãe.

- O que você quer é a imortalidade, disse Goethe. A imortalidade é um eterno processo.

... O que mais você imaginou, Ernest?

- Não imaginei nada. Esperava apenas que depois da morte viveria um pouco tranquilo.

- Você fez tudo para ser imortal.

- Bobagem. Apenas escrevi livros.

- Exatamente! Exclamou Goethe. (pg 84)

Vemos nesse diálogo surreal que Kundera estava discutindo sua própria situação. Afinal, ele era um dissidente perseguido, falando a verdade ao poder, e a suposta “bravura” de seus escritos – o fato de eles terem sido reprimidos em seu país de origem deu-lhe um enorme prestígio nos círculos literários ocidentais.

No entanto, agora ele está no Ocidente. Ele é livre quanto o resto de nós para escrever o que bem entender, só que agora a crítica que recebe não é mais do partido comunista, mas de um exército de críticos literários que buscam ganhar reputação batendo nos famosos, dissecando não só a obra mas a vida do autor, numa espécie de sala de anatomia literária universitária e, claro, é também amplamente difamado por feministas, que encontram sua representação de homens predadores, o olhar masculino sobre as mulheres como um sintoma da grosseria misógina.

Após o diálogo imaginário entre Goethe e Hemingway com uma aparição de Beethoven em vários momentos do livro, o romance volta para a França do século XX, e as personagens femininas, Agnes e sua irmã Laura, nos mostram os opostos binários muito puros. Deixemos Kundera falar sobre essas diferenças:

“Amar alguém, para Laura, significava dar-lhe de presente seu corpo: entrega-lo, como mandara entregar à sua irmã o piano branco; depositá-lo no meio de seu apartamento; eis-me aqui, eis meus cinquenta e sete quilos, eis minha carne e meus ossos, são para você e é em sua casa que os deixo. Essa oferenda era para ela um gesto erótico, porque em sua opinião o corpo não era sexual somente nos excepcionais de excitação, mas como disse, desde o princípio, a priori, constante e inteiramente, na superfície como no interior, durante o sono, acordado, e mesmo depois da morte.” (pg 157, pg 158)

“Para Agnes, o erotismo limitava-se ao instante da excitação quando o corpo tornava-se desejável e belo. Só esse instante justificava e resgatava o corpo; uma vez extinta essa luz artificial, o corpo voltava a ser um mecanismo sujo que ela era obrigada a manter em forma. Por isso Agnes nunca poderia dizer: “darei um jeito para que ele me encontre lá”. Ela ficaria horrorizada com a ideia de que o homem amado a visse como um simples corpo privado de sexo desprovido de qualquer encanto, o rosto convulso, numa atitude que ele não poderia mais controlar. Sentiria vergonha. (pg158)

Enquanto Laura é demonstrativa e erótica (como já vimos acima), Agnes é o contrário: altamente sensível, desejosa de solidão, até um pouco cansada das disputas de amor e vida. Laura e as suas histrionices e seus desesperos ameaçam a paz de toda a família, Agnes é encontrada morta, devido a um acidente de automóvel. Isso deixa Laura, que já havia superado sua relação com Bernardo, livre para se casar com Paulo e, assim, afirmar a imortalidade de seu amor.

“A Imortalidade” é um romance fragmentado dividido em sete partes diferentes partes. Não é uma narrativa linear. Isso permite que Kundera discuta vários temas. Um deles é: sem a ambiguidade, não há erotismo; quanto mais forte é a ambiguidade mais poderosa é a excitação.  Para isso ele levanta uma pergunta: “Quem não se lembra da maravilhosa brincadeira de médico da infância?”.

Os episódios do livro são fragmentados e as reflexões vêm a reboque. Como, por exemplo, o conceito sobre os direitos humanos, que alcançou sua maior projeção na década de 1970. A ideia que temos sobre os direitos humanos surge quando Alexander Solzhenitsyn, com algemas e barbado, foi exilado de seu país e acabou hipnotizando os intelectuais ocidentais ansiosos em saber pelo grande destino que lhes fora negado. E somente graças a ele começaram a acreditar, após um atraso de 50 anos, que na Rússia comunista havia campos de concentração. As pessoas progressistas agora estavam prontas para admitir que prender alguém por suas opiniões não era justo e encontraram uma excelente justificativa para sua nova atitude: os comunistas russos violaram os direitos humanos, apesar de esses direitos terem sido gloriosamente proclamados pela Revolução Francesa em si!

Mais adiante, ele continua: ”Um romance não deve ser como uma corrida de bicicleta, mas um banquete de muitos percursos”. Estou realmente olhando para a Parte 6. Um personagem completamente novo entrará no romance. E no final dessa parte ele desaparece sem deixar vestígios. Ele não causa nada e não deixa efeitos. É exatamente isso que eu gosto nele.

Ainda assim, parece justo deixá-lo fazer outro ponto. Ao combater as objeções que Aristóteles levantou aos episódios, Kundera escreve:

O episódio é uma noção importante da Poética de Aristóteles. Aristóteles não gosta de episódio. De todos os acontecimentos, segundo ele, os piores (do ponto de vista da poesia) são os acontecimentos episódicos. Não sendo uma consequência necessária daquilo que precede e não produzindo nenhum efeito, o episódio encontra-se fora do encadeamento causal que é a história. Como se fosse um acaso estéril, ele pode ser omitido sem que o relato se torne incompreensível; não deixa o menor traço na vida dos personagens. (pg 297)

Nenhum episódio está condenado a continuar para sempre episódico, já que cada acontecimento, mesmo o mais insignificante, encerra a possiblidade de tornar-se mais tarde a causa de outros acontecimentos, transformando-se ao mesmo tempo numa história e numa aventura. Os episódios são como minas. A maior parte não explode nunca, no entanto, chega o dia em que o mais modesto pode lhe ser fatal. (pg 298)

Fico por aqui. É um romance difícil? Nem tanto, principalmente se você for um leitor atento. Os saltos narrativos passam por uma pretensa biografia de Goethe até a década de 1990, quando esse romance foi escrito.  O autor estabelece um limite entre fato e ficção, de uma forma lindamente legível do início ao fim. “A Imortalidade”, de Milan Kundera, merece um lugar de HONRA na sua estante.


Data: 28 maio 2020 | Tags: Romance


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A Imortalidade
autor: Milan Kundera
editora: Nova Fronteira
tradutor: Teresa Bulhões Carvalho Fonseca e Anna Lucia Moojen de Andrada

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