O Oceano no Fim do Caminho
Confesso que pela primeira vez li um romance de Neil Gaiman. Sempre o conheci através dos quadrinhos Sandman, a personificação antropomórfica do sonho, também conhecido como Morpheus, numa referência à mitologia grega e seus irmãos, morte, destino, delírio, desejo, desespero e destruição. Confesso que não sou dos quadrinhos. Aliás, uma baita de uma falha. Que vez ou outra comento entre os meus amigos livreiros. Espero que em breve seja corrigida pelas bandas do blog. Autor de diversos romances, e só agora venho descobrir a genialidade desse grande escritor. Fazer o que? Falha nossa? Sim! Ser livreiro é isso. Adiar grandes leituras, em função de grandes livros que já estamos lendo. Tem horas que penso em tirar uma licença prêmio e ficar seis meses só lendo para diminuir, pelo menos em parte, o déficit de grandes livros que ainda não lemos.
É aquela velha máxima, quando o autor é bom, reconhecido e amado pelo seu público, torna-se fundamental conferir. E eu conferi. O livro “O Oceano no Fim do Caminho” é uma fábula simplesmente genial.
Adorei. Uma leitura que prende, envolve, e vou mais longe, preciso rever conceitos em minhas leituras. Tem muita coisa excelente que por falta de tempo não estou lendo. Preciso me embrenhar por outros tipos de literatura. Principalmente a literatura fantástica.
“O Oceano no Fim do Caminho” tem algo fantástico com características de fábula, mas com a dosagem certa para adultos. Vamos a ela, a resenha de uma história genial desse grande contador de histórias. O livro é sobre a memória e seu poder de mover-nos. A história é narrada por um adulto (sem nome), como ele se lembra dos detalhes de sua infância esquecida. O brilho decorre da forma como o autor conseguiu captar a infância e a inocência através dos olhos de um adulto.
Um homem retorna à sua cidade de infância em Sussex para um funeral, após 40 anos, ele havia se esquecido de tudo sobre sua infância, mas quando ele visita a fazenda Hempstock as memórias retornam como ondas frias do Oceano impossível de Lettie, uma menina engraçada que falava sobre coisas engraçadas, dentre elas, a existência de um pequeno lago na parte de trás de sua casa, que segundo ela, era o Oceano.
O livro dá o tom nas duas primeiras páginas, quando somos apresentados ao narrador que está fazendo sete anos de idade. Tudo estava preparado para festa, mas seus amiguinhos de escola não aparecem para comemorar. Apesar de toda essa indiferença de seus colegas, ele pertence a uma família amorosa, e de presente recebe novos livros e um gatinho, cujo nome, como não poderia deixar de ser, era Fofinho. Com a presença de seus livros com suas histórias fantásticas e de seu gatinho a vida estava completa: “Os livros eram mais seguros que as pessoas de qualquer maneira.” Comenta.
No entanto, os problemas começam a surgir, quando os pais do protagonista começam a alugar quartos, e seu inquilino, um sul africano, acaba matando seu gatinho, por acidente. Em seguida rouba o carro da família e acaba morrendo. Coisas estranhas começam acontecer, um espírito antigo esfarrapado (a pulga) é atraído para sua cidade pelo desespero da morte do hóspede nada aprazível. Esse espírito pega carona no menino em forma de verme na sola do pé. Ao retirar esse verme esse espírito assume a forma de uma de Úrsula Monkton, uma governanta, que ameaça matá-lo e destruir sua família. Ela representa um perigo monstruoso na forma de uma mulher jovem e atraente.
Sozinho e perseguido pela governanta e pelas constantes brigas com sua irmã, ele escolhe fugir após ter uma briga com seu pai na mesa do jantar que, até então, nunca havia lhe encostado a mão e nunca teve nenhuma atitude hostil para com o filho. Esse pai em um acesso de fúria tenta afogar o garoto em uma banheira, não com a intenção de matá-lo, mas para corrigir seu comportamento hostil à governanta Úrsula.
Ao fugir na calada da noite, vê seu pai e Úrsula tendo relações sexuais. Uma cena que faz arrepiar os cabelos. Mas algo está errado. Não tem a menor consciência do que seja. Ao ver sua situação se deteriorando no desenrolar de sua história, desenvolve um senso real de mortalidade desde que Úrsula apareceu em sua vida.
Perdido no meio de toda aquela escuridão, o desamparo da infância aparece sob a forma de terror ao longo do texto. Úrsula aparece a sua frente no momento em que estava longe de casa. Mas é repelida por Lettie Hempstock que intercede pelo garoto evocando forças da natureza e afasta Úrsula de seu caminho. O menino encontra refúgio com as Hempstocks. Uma família estranha que segue os velhos caminhos esquecidos, consertando o tempo e ajudando o garoto a derrotar os espíritos rancorosos que estão aterrorizando a família do protagonista.
A descrição dos lugares, da comida servida ao menino, parece que vem de outro lugar do mundo, os sons da natureza, a escuridão tudo isso é muito bem vivido pelo leitor. Aqui Gaiman evoca sentimentos de calor humano e segurança, da mesma forma como ele evoca o terror. É o lugar mais seguro do universo. Os Hempstocks são criaturas que existem fora do tempo.
Não pense você leitor que é uma história simplesinha, ao contrário disso, é uma história carregada de simbolismos, na qual é preciso desconstruir seus personagens para que se obtenha o “knorr” dessa história. O livro trata de felicidade, medo, perda e revelação. Os despojos de uma memória colhidos diretamente de uma imaginação fértil. Um autor que joga nas onze, com grande maestria. Sabe encantar tanto crianças como adultos. Um autor que merece um lugar na sua estante.