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O que o dia deve à noite

“O que o dia deve à noite”, de Yasmina Khadra, cobra reflexão sobre nossas vidas após a leitura. É uma obra poética, triste, muito bem traduzida por Sandra M. Stroparo que consegue captar toda a beleza, as alegrias e tristezas do texto. Podemos ler sem tropeçar em parágrafos, ao contrário, é uma tradução límpida em que o leitor mergulha sem se sentir sufocado. Apesar da brutalidade histórica da guerra de independência da Argélia, este é um romance para saborear cenas imaginativas e personagens memoráveis, um após outro. O romance é de uma tristeza comovente, mas nada que nos leve ao consumo de antidepressivos. O escritor nos leva ao fundo de nós mesmos.

O livro “O que o dia deve à noite” nos fala sobre o amor, menciona esse sentimento de forma tão delicada que às vezes pensamos que fora escrito por uma mulher, e, no entanto, foi escrito por um militar que usa o pseudônimo de uma mulher “Yasmina Khadra”. O nome desse oficial é Mohamed Moulessehoul que utilizou esse pseudônimo para proteger seus manuscritos da  aprovação do exército. É uma obra incomum, corajosa e incomparável.



Então vamos ao que interessa, ao livro: encontramos um contexto muito bem elaborada que mescla história e ficção. Uma bela história de amor com antecedentes históricos da Argélia colonial onde podemos encontrar de tudo um pouco. Yasmina Khadra nos convida a seguir as aventuras da infância de Younes, narrador de toda história, na Argélia de 1930.

O livro começa numa colheita de trigo cuja safra prometia ser grande e resolver os problemas financeiros da família após anos de infortúnios. A fazenda havia sido uma herança, mas somente Issa, o pai de Younes, havia seguido os caminhos de seus ancestrais e continuado o projeto de reergue-la. Até que a fumaça se transforma em fogo e tudo termina em cinzas. Issa sente na alma a marca deixada pelo seu fracasso, um homem que trabalhava duro para manter a sua própria integridade e de sua mulher e filhos. E migra para uma favela chamada "Jenane Jato” nos arredores de Orã.

O bairro onde aterrissamos desfez de um só golpe o charme que me encantou algumas horas mais cedo. Ainda estávamos em Orã, mas no avesso do cenário. As belas moradias e as avenidas floridas cederam espaço a um caos infinito eriçado de bibocas sórdidas, jogatinas nauseabundas...”

“Jeane Jato: uma bagunça de mato e casebres fervilhando de carroças, mendigos e pregoeiros, homens transportando carga em cima de animais, carregadores de água, charlatões, crianças em trapos. “Uma selva ocre e tórrida, saturada de poeira e fedor, enxertada de muralhas da cidade como um tumor maligno.” (pg26)

A família de Yunes vive tempos difíceis e o orgulho de seu pai o faz rejeitar a ajuda de seu irmão farmacêutico que goza de uma vida confortável em Orã. Porém, diante das misérias vividas, em um ato de desespero, aceita que seu filho Younes vá morar com o tio:

“- Você tinha razão Mahi. Meu filho não tem nenhum futuro comigo...”

“... Beijou-me na cabeça – costume reservado aos deões reverenciados -, tentou sorrir, não conseguiu, levantou-se e deixou bruscamente a loja quase correndo, sem dúvida alguma para esconder as lágrimas.”

Inicia-se neste momento, a segunda parte do livro na qual Younes é renomeado Jonas pelo tio. Ele é tratado como um filho, na vibrante zona Européia de Rio Salado, e faz amigos que o marcarão para o resto de sua vida: Jean Christophe, Simon e Fabrice. A partir do momento em que vão se tornando adultos, Jonas é drenado para a vida fácil dos rapazes da comunidade dos pied noir, ou seja, dos ricos, vivendo em noites enluaradas, bebidas e festas que sempre foram um atributo de Orã.

Orã é descrita como uma cidade magnífica, possuidora de um charme inesgotável. A noite era mágica, e no verão alternava o calor intenso com o ar refrescante onde as pessoas se punham a conversar em torno de um licor de Anis. Risos que rolavam como ondas na beira mar. Na epigrafe do livro “O que o dia deve à noite” Camus é citado em seu romance “A Peste” falando de Orã:

“Em Orã, como em outros lugares, por falta de tempo e de reflexão, acabamos obrigados a nos amar sem saber.”

Jonas se forma e dá continuidade à vida na farmácia de seu tio Mahi e de sua tia Germaine. Tudo parece caminhar para a “normalidade”, mas de antemão sabemos que o movimento de independência argelino triunfou e isso é um dado histórico amplamente conhecido. A partir do ano de 1954 começa a guerrilha e acaba em 1964 com a Argélia independente.

Mas o narrador nos mostra durante todo o livro que apesar de ter sido aceito na sociedade européia, ou seja, o lado rico dessa sociedade. Jonas guarda dentro de si as sementes adormecidas de sua origem. Outro fator de desequilíbrio dessa “normalidade” é o aparecimento da madame Cazenave que seduz sexualmente Jonas. E um outro fator, esse um verdadeiro xeque mate, é o aparecimento de Emile, filha de madame Cazenave. Emile, uma “princesa” que os jovens competem entre si e mexe com a cabeça de Simon, Jean Christophe, Fabrice e Jonas. Lágrimas e traições, amizades  que se desfazem e colidem. E a partir daí, a competição prevalecerá entre os jovens amigos, menos para Jonas. Por que será que Jonas renuncia a essa disputa? Esse é um dado que se contado perderá toda a delícia dessa história. Portanto, me calo em consideração aos que ainda não leram o livro.

A terceira e última parte do livro mostra os dias de hoje quando Jonas, mais velho, viúvo e agora Younes, vai até a França rever seus antigos companheiros. Uns já morreram durante a própria guerra de independência como Simon, outros exilados estão ficando velhos e doentes. E nesse encontro marcado por recordações, todos mais velhos, surgem as rememorações de suas juventudes em Orã, na Argélia.

“E todos estão lá todos eles, os mortos e os vivos, de pé atrás, me dando adeus.”

O amor tem sido o grande elemento transgressor em todas as sociedades. O sentimento mais subversivo e o seu agente transformador sempre estiveram ligados a imaginação. Através dos sentidos podemos ouvir o inaudito e o imperceptível. Por meio dos sentidos a poesia ergue uma grande ponte entre o ver e o crer. Por essa ponte a imaginação ganha corpo e os corpos se convertem em imagens.

O grande mistério da tragédia grega até os dias atuais é o eixo em torno do qual giram todos os apaixonados da história. Das lendas Gregas de Eros e Psiquê, passando por  Tristão e Isolda, as lendas criadas pelos poetas no amor cortês, A divina comédia, de Dante, Romeu e Julieta, A Bela e a Fera, Heloise (de Rousseau) Madame Bouvary, Luiza, de Primo Basílio, Doutor Jivago de Boris Pasternak e tantos outros transcenderam guerras, disputas entre deuses, e o próprio destino. Mas ele está sempre lá.

E ao nos apaixonarmos, escolhemos as nossas fatalidades. O amor é um mistério no qual liberdade e predestinação se enlaçam. Às vezes, o destino nos pede a coragem e quando escolhemos a prudência muitas vezes esse sentimento e o destino nos punem.

“Se uma mulher amar você, Younes, se uma mulher amar você profundamente, e se você souber reconhecer a imensidão desse privilégio, nenhum deus chegará a seus pés."

- Vá atrás dela... um dia, sem dúvida, vamos poder ir a outros planetas, mas nem todas as glórias da terra vão consolar aquele que deixou escapar a verdadeira chance de sua vida.

Eu não escutei” (pg. 253 e 254)

E quando acabarem de ler esse belo romance a pergunta virá: afinal, o que o dia deve a noite?

Todo leitor deveria agendar um “encontro” com esse livro.


Data: 08 agosto 2016 | Tags: Romance


< As correções Solar da fossa >
O que o dia deve à noite
autor: Yasmina Khadra
editora: Argumento
tradutor: Sandra M. Stroparo

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