O triste fim de Policarpo Quaresma
Duas razões me fizeram escolher a obra de Lima Barreto “O Triste fim de Policarpo Quaresma”, para o blog. A primeira razão, pela obra em si. A segunda razão é que esse livro é mais um livro da série, que busca retratar os costumes do Rio de Janeiro nos últimos duzentos anos através dos clássicos da literatura brasileira da “Cidade Viva Editora,”. A coleção nos trás verdadeiras pérolas da literatura como “Memórias de um Sargento de Milícias” de Manuel Antonio de Almeida, “Casa Velha” de Machado de Assis, e “A Alma Encantadora das Ruas” de João do Rio. Todos esses livros luxuosamente editados guardam o que de melhor da nossa literatura. “Triste Fim de Policarpo Quaresma” foi traduzido para o inglês por Mark Carlyon e ilustrado por um dos grandes nomes das artes plásticas do Brasil, Ernesto Neto. Esse livro sem dúvida alguma é considerado como um dos mais importantes trabalhos de Lima Barreto. A obra aborda várias questões, dentre elas a identidade nacional que se formava em 1911, tendo como pano de fundo os eventos dos primeiros anos da República.
Vamos ao livro?
Considero Policarpo o “Don Quixote” brasileiro. O protagonista da obra de Cervantes perdeu a razão por muita leitura de romances de cavalaria e pretende imitar seus heróis preferidos. Na história do romance moderno, o papel de Dom Quixote é reconhecido como seminal. Inúmeros escritores foram influenciados pelo cavaleiro da triste figura. Flaubert, e sua Madame Bovary guarda muitas semelhanças, além de muitos outros cujo nome não me vem no momento. E Lima Barreto.
Assim, como Quixote que passou anos de sua vida em seu quarto lendo romances de cavalaria até se incorporar em um herói imaginário, Policarpo segue um destino semelhante. O elemento mais importante do romance é a biblioteca do Major Quaresma, pois é a partir dela que se desencadeiam todos os atos do personagem. É em sua biblioteca que Quaresma passa a maior parte da vida, exilado e isolado do mundo. Seu nacionalismo resulta, portanto, de longos anos de leituras e estudos sobre as coisas do Brasil, e é no silêncio que seu amor pela pátria acontece. O narrador apresenta a biblioteca de quaresma como o templo da “religião” nacionalista.
O protagonista do livro trata de pelo menos três problemas da realidade brasileira: a língua, a agricultura e a política. Diante de tanto patriotismo e devoção às coisas do Brasil o nosso major Policarpo chega a uma conclusão no mínimo inusitada. Ele insiste que o Tupi Guarani deve ser o novo idioma do país, já que a língua é a manifestação cultural mais importante para os brasileiros. E, para isso, deveríamos manter nossas origens e o idioma para ele era o começo. Assim como Don Quixote que foi considerado louco por todos aqueles com quem conviveu. Major Quaresma foi mandado para o hospício, o único lugar considerado adequado as suas ideias.
Policarpo abandona a vida urbana e envolve-se com a agricultura para provar que o solo de sua pátria imaginária e amada era fértil. “Plantando tudo dá”. Claro que estou me referindo a uma campanha publicitária dos nossos tempos. Mas a ideia é a mesma. No entanto, suas plantações são invadidas por formigas saúvas, e mais tarde mais outra decepção. A infertilidade do solo. Tudo isso somado, não tira o seu entusiasmo pela pátria amada salve, salve, Brasil. Mas o que Lima Barreto nos mostra é que, apesar de todo o nacionalismo exacerbado do Major Policarpo, o que sobra dos murros em ponta de faca é a frustração, a decepção com o destino de sua vida. Todos os seus anos dedicados aos estudos do Brasil redundaram em um enorme fracasso. Um preço que não valeu a pena. Será?
E mais uma vez podemos enxergar algumas semelhanças entre o Quixote de Cervantes e o Policarpo de Lima Barreto. O conflito do passado com o presente, o ideal e o real, e o ideal e o social. Pergunto: existe algo mais moderno do que as premissas de Policarpo?
Há um acordo tácito entre os grandes estudiosos de nossa literatura em classificar o livro como parte do nosso “pré-modernismo.” Como se o nosso modernismo tivesse começado na semana de 22. Seria isso correto?Não sou um teórico da literatura, sou apenas um leitor, mas considero um equívoco teórico colocar o autor de “O Triste fim Policarpo Quaresma” na condição pré-moderna. Por quê? Simples. Havia na busca do moderno de 22, o nacionalismo em suas múltiplas facetas. A volta às origens, através da valorização dos indígenas e da língua falada pelo seu povo, era tema de debates acalorados nessa época. Esse mesmo nacionalismo foi empregado em duas formas distintas.
De um lado, a crítica, alinhada à esquerda política que denunciava a realidade que culminou na fundação do Partido comunista. E aqui cabe um esclarecimento. Os anseios do autor não escondiam seus vínculos libertários, e em 1918 publicou no semanário ABC seu manifesto Maximalista de apoio à Revolução Russa, que a tantos contagiava. Portanto, considerado por esse viés, Lima Barreto estava à frente do seu tempo. Se o modernismo é um produto de uma crise, Lima Barreto sempre fez da literatura, quer concordemos com suas posições políticas ou não, uma arma bastante poderosa a favor do país e dos menos privilegiados.
A outra forma que esse nacionalismo se assumiu foi através do ufanismo exagerada do integralismo de Plínio Salgado identificado com o fascismo, e os seus verde-amarelistas.
Outro ponto que chama à atenção no romance o que para mim referenda a modernidade de Lima Barreto em seu livro “Triste fim de Policarpo Quaresma” é o diálogo que o Major Quaresma estabelece com a nossa tradição intelectual e suas várias tendências construídas no século XIX. Policarpo convida o leitor a refletir sobre os aspectos fundamentais da cultura brasileira, particularmente no que se refere à construção de uma identidade nacional.
E, cito apenas um exemplo, um dos momentos mais interessantes, que foi o encontro da figura do compositor de modinhas afamado nos subúrbios com Policarpo Quaresma. Um encontro a princípio incompatível, entre um homem estudioso, de posição respeitável, invejado pelo seu saber e Ricardo Coração dos Outros, um seresteiro dos subúrbios, um malandro com seu violão de baixo dos braços, carregando o preconceito alheio. Esse personagem era antes de tudo apenas um “tocador de violão” dando aulas ao intelectual Policarpo Quaresma. E com um detalhe importante: dois personagens que se unem em torno de um instrumento musical. Um encontro que gera muita controvérsia na vizinhança, mas que se transforma em uma amizade sólida. Sua única amizade sincera nessa trágica história.
Quaresma encontra em Ricardo Coração dos Outros o artista capaz de difundir a genuína expressão nacional através de sua música, a modinha acompanhada ao violão, ou seja, um apoio artístico e instrumental para a divulgação da poesia nacional. Ricardo Coração dos Outros, por sua vez, encontra o apoio de um respeitável intelectual para fortalecer a sua carreira.
Esse encontro é significativo, pois sugere a convivência entre cultura popular e cultura erudita historicamente “separadas”, mas que se aproximam nos textos de Lima Barreto, o que sem dúvida alguma é uma das bandeiras do nosso modernismo.
Não pretendo com essa resenha esgotar esse assunto. Mas gostaria de lançar uma provocação aos leitores do blog, sobre essa chamada “pré- modernidade” do romance “Triste Fim de Policarpo Quaresma”, do grande Lima Barreto, que para mim não tinha nada de pré. Mas de modernismo com “M” maiúsculo.
Recomendo e muito a leitura desse autor que já foi traduzido em diversas línguas e que agora ganha uma edição luxuosa e bilíngue da Cidade Nova Editora. Um clássico da literatura brasileira que merece um lugar em sua estante.