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Os enamoramentos

Quando apresento essa obra aos clientes da livraria, muitos me perguntam se esse escritor é uruguaio ou argentino, ou da América do Sul. Vamos começar a resenha afirmando que Javier Marías é espanhol, nascido em 1951, autor de dez romances, vencedor de diversos prêmios internacionais, livros traduzidos em vários idiomas, para ser preciso, em quarenta e dois idiomas no total.

O romance “Enamoramentos” foi selecionado por um júri de escritores e personalidades do mundo literário, mas Javier Marías deu o seguinte recado a todos: “Há anos que não aceito nenhum convite de instituições do Estado, independente do partido no poder”. Sua decisão, como deixou claro em sua recusa, não deve ser interpretada como "desdém". “Eu me considero uma pessoa independente”. E é nessa orientação ética que o autor se pauta. Discutível? Pode ser. Mas existem pessoas cujas convicções transcendem a tudo e a todos. Sendo assim. Palmas para ele.

Vamos ao livro? O livro “Enamoramentos” é uma história contada por Maria Dolz, uma jovem que trabalha em uma editora que tem um chefe egóico e um bando de escritores perturbados que a azucrinam, muitas vezes com pedidos característicos dos “sem noção”. Antes de se dirigir ao trabalho ela sempre via um casal cúmplice e feliz que tomava café no mesmo horário dela. Como uma boa observadora, ela percebe que esse casal tem dois filhos pequenos e mantém uma total discrição em relação a todos por razões que não percebemos. Ela assiste a este ritual todos os dias. E mantém um anonimato em relação ao grande senso comum por razões que competem apenas a eles. Mas nada que faça o leitor pensar algo sinistro por trás de todo esse comportamento. Esse anonimato tem na trivialidade o seu principal motivo.

O homem tem cinquenta anos de idade presumivelmente, ela é alguns anos mais jovem. Eles almoçam juntos todos os dias. Ela os imagina como um casal ideal, como um casal de um livro ou de um filme. Maria Dolz fantasia sobre esse casal. Só que um dia eles não aparecem. “O que deve ter acontecido?” Perguntou ao garçom. E ele imaginou que estariam de férias ou algo do gênero. No entanto, recebe um duro golpe quando sua colega descobre que aquele marido idealizado foi brutalmente assassinado por um sem teto que morava em um carro abandonado que o acusou de ter colocado suas filhas na prostituição. O marido estranhou essa acusação vinda de um homem fora de si e foi esfaqueado impiedosamente diversas vezes e veio a falecer minutos depois.

Aquele crime não foi um golpe duro apenas para Maria Dolz, mas para todos que conviviam com o casal, principalmente os garçons do café que sempre frequentavam. Maria descobre que a vítima se chamava Miguel Desvern, mas a família adotou o nome de De Verne para sua empresa de distribuição de filmes, da qual era o dono. A viúva chamava-se Luisa Alday, uma professora universitária. Maria avistou a viúva meses depois, no café, conversando com seus filhos. Quando eles saem, Maria se aproxima dela e transmite seu mais profundo pesar pelo ocorrido. As duas mulheres começam uma amizade. Maria é convidada para ir tomar um café na casa de Luisa Alday. E nessa visita acontece uma visita, nem tão inesperada assim, de dois homens. Leonardo e Javier Diaz Varela (o melhor amigo do marido). Pronto. Se aqueles que, ao lerem o título desse livro, vincularem que a entrada desses dois homens dará início a um “enamoramento” “a la Nicholas Sparks” se darão muito mal. E o aconselhamento é que nem comprem o livro. Pois o livro vai muito além de um simples “enamoramento”.

O início do romance nos remete ao tema da morte e os efeitos de uma perda nos sobreviventes. Mas se o rumo da prosa vai caminhando nessa direção, uma grande reviravolta acontece. Nada é convencional no romance. Os mortos na vida dos vivos através da memória têm o seu lugar de destaque.

Neste tema, que corre ao longo da obra narrativa de Javier Marias, se junta outra não menos recorrente: a persistência e a teimosa dos mortos na vida dos vivos, na memória, ou em outro lugar reservado, uma espécie de alojamento onde se guarda afeto e tristeza, e todos os aspectos da vida cotidiana dos vivos, exercendo uma influência decisiva sobre o comportamento e as emoções deles. Javier Marías insere duas referências literárias, como em um jogo de espelhos. Os Três Mosqueteiros de Alexandre Dumas e Balzac com sua novela maravilhosa Coronel Chabert.

Essa história é mostrada à narradora por Diaz –Varela, de certa forma como uma introdução para um aspecto do personagem que só será revelado depois para o leitor. Ainda assim, a relação que o melhor de Miguel Desvern tenta fazer é de que aos mortos cabe somente à morte, e que é inevitável que os vivos sigam em frente.

Falar mais sobre o livro é fazer um desfavor ao autor, e ao leitor. Mas uma coisa posso dizer com toda certeza. O livro vai além do luto, da morte e a sua irreversibilidade. O livro vai além de como sofremos e como refazemos a vida. É um livro sobre dúvidas. É um livro sobre livros, dado que a protagonista trabalha em uma editora. Diversas versões dos fatos são possíveis de serem interpretadas. E caberá a você leitor dizer a melhor versão. Em algum momento, o leitor se vê em meio a uma confusão em distinguir o que a personagem pensou daquilo que de fato ouviu, viu ou sentiu, mas suas imagens complementam a história enriquecendo a trama.

“Enamoramentos” não foi um livro indicado à toa ao prêmio de melhor livro na Espanha. É um “livraço” que merece um lugar de honra em sua estante.


Data: 08 agosto 2016 | Tags: Romance


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Os enamoramentos
autor: Javier Marías
editora: Companhia das Letras
tradutor: Eduardo Brandão

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