Kafka à beira-mar
Murakami é um grande contador de histórias. Uma escrita envolvente, em que o leitor se vê cercado pelos universos paralelos dos personagens falando numa perspectiva de um mundo desconhecido do leitor de primeira viagem.
Filho de um monge budista e uma professora de literatura, o nosso escritor já fez de tudo um pouco, como, por exemplo, ter sido dono de uma casa noturna de Jazz. E nas suas histórias as referências musicais acontecem de modo fluido sem nenhuma afetação.
Haruki Murakami já foi indicado ao Prêmio Nobel algumas vezes. E a torcida para que ele vença é grande. Seus leitores fiéis em todo mundo garantem a ele um enorme prestígio. Já foi traduzido em diversos idiomas. E sempre quando ele aporta em um país muitos não conseguem resistir a sua boa escrita e tornam-se “murakamistas”.
Falemos de “Kafka à Beira-Mar” que é tão bom quanto 1Q84. Vamos à história? O livro é contado sob dois pontos de vista, que se alternam, capítulo por capítulo, cada um correspondendo a um protagonista diferente.
A história de Kafka Kamura é contada no tempo presente a partir do ponto de vista de uma primeira pessoa. Nosso Kafka Tamura é o narrador de suas proezas nos revelando um estoicismo em sua personalidade. Estoicismo? Vamos explicar o que é estoicismo para facilitar a leitura de todos. O estoicismo foi uma escola de filosofia de origem helênica que ensinava que as emoções destrutivas afetam os nossos julgamentos. Apenas os sábios, ou pessoas possuidoras desses atributos estariam ausentes desse tipo de emoções. Para os estoicos o universo é governado por um Logos divino que ordena todas as coisas A alma faz parte desse universo. Esta razão universal ou Logos ordena todas as coisas, ou seja, tudo surge a partir dele e de acordo com ele, graças a ele o mundo é um Kosmos, que em grego, significa harmonia.
Os estoicos, ao viverem sob a luz dessa perspectiva de acordo com a lei natural da natureza, aconselham a indiferença a tudo que é exterior ao ser, em outras palavras, a realidade vivida de forma intensa pelos mortais. Os desdobramentos de se viver de acordo com essa forma de pensar é a manutenção da serenidade perante as grandes tragédias, como também as coisas boas. Para isso, viver de acordo com as prescrições dessa filosofia estoica é viver “conforme a natureza”, ou seja, sendo a natureza o Logos (a razão), o homem sábio não aprende nas exterioridades da vida o real sentido dela. Para isso não se deixa escravizar pelas paixões. A vontade deve estar em conexão com a natureza.
Essa pequena introdução vai facilitar a todos os leitores a captarem, segundo o meu juízo, a essência dos personagens principais. Mas quero deixar bem claro que essa é a minha visão, portanto, se não concordarem, estarei aberto a outras interpretações.
Voltando a história. Kafka Tamura foge aos quinze anos de idade de casa. A mãe de Kafka saiu de casa quando ele tinha quatro anos, levando sua irmã e deixando Kafka com seu pai, um homem totalmente distante a ele. Sua fuga o conduz a uma biblioteca que era uma fundação dirigida pela senhorita Saeki, a quem ele rapidamente começa a associar a sua mãe. Apenas um lembrete e um aviso. O livro não fala sobre a busca de um adolescente angustiado como nos tempos modernos que resolve fugir de casa por desentendimentos emocionais. Muito menos de uma versão japonesa de “On the Road”. Pelo contrário, nada é tão simples, Murakami faz de Kafka Tamura o narrador ideal, um ser especial.
Ele é assombrado pela profecia edipiana que seu pai psicótico deu a ele quando tinha sete anos de idade: a de que iria acabar matando o pai e dormir com sua mãe e sua irmã. Kafka Tamura quer escapar a esse destino, que é desenhado para ele e que atormenta os seus sonhos. Com isso Murakami, como bom contador de histórias que é, joga uma cortina de fumaça a ponto de você questionar o que é sonho e o que é realidade quando lemos o livro. Sua habilidade de criar lugares alucinantes em que tudo é regido por uma lógica interna cheia de intensidades eróticas e fantásticas revela todo o seu dom.
O alter ego de Kafka, um corvo, avisa no início que sua jornada não será fácil. O corvo insiste que as projeções do inconsciente como do consciente serão extremamente dolorosas. Tudo terá que ser feito através de uma tempestade simbólica. Nesse mar revolto da metafísica e do simbolismo Kafka Tamura terá que surfar.
Paralelamente a isso a história alterna com outro personagem singular seu nome Nakata. Um homem possuidor de um passado estranho. Quando criança, na Segunda Guerra Mundial, um avião passa por cima, ou pelo menos muito alto, e todas as 16 crianças que na hora procuravam cogumelos, subitamente caem no chão inconscientes como atores interpretando uma peça. Mas Nakato – que era uma criança muito inteligente e perspicaz, acabou adoecendo, e perdendo totalmente sua mente e sua memória. Ficou muito tempo internado. Quando saiu perdeu todas as suas faculdades essenciais. Quando fala de si fala sempre na terceira pessoa, mas apesar de tudo, é um homem que por ser desorientado com o exterior ganhou um dom no mínimo curioso. O dom de se comunicar com gatos. E ao mesmo tempo um homem capaz de gerar chuvas repentinas de peixes e sanguessugas.
Foi passado para trás, em termos de dinheiro por seu primo. Nakata não se deixava levar por nenhum sentimento atroz. Nenhum sentimento que não fosse o sentimento Nakata, ou seja, o sentimento do despojamento. Um total alheamento a tudo. Um homem desprovido de tudo, mas que nem por isso reclamava de sua vida. Não era um mendigo, ao contrário, era um homem limpo e que despertava curiosidade nas pessoas e não repulsa. Apenas se justificava a tudo e a todos como um homem pouco inteligente. Esse era o seu cartão de apresentação para com as pessoas com quem se encontrava durante as suas procuras. Sua profissão era caçar gatos perdidos, e por saber falar a língua deles, conseguia achar todos com ajuda de outros gatos.
No entanto, quando procurava um gato perdido por uma família teve um encontro nada casual com Johnny Walker um artista ícone do Japão que recolhia as almas dos gatos para criar sua flauta mágica. A partir desse encontro, começa a marcar o enredo e dar outro sentido a nossa história. Não contaremos o resultado desse encontro com certeza. Mas a partir desse encontro a história desenvolve-se para outros planos.
Ele começa uma viagem em direção a Kafka Tamura, muito embora desconhecesse a existência desse rapaz. Nesse trajeto ele se conecta com um motorista de caminhão Hoshino – um cara normal vestido com sua camisa hawaiana, seus óculos Ray-ban e um boné de beisebol do Chunichi Dragons – que concorda em ajudar o velho. Eles viajam a caminho para Shikoku numa espécie de busca metafísica de uma “pedra de entrada” que Nakata deve abrir e fechar. Nessa viagem marcada por aparições, um tal coronel Sanders, que tem a aparência daquele símbolo do Kentucky Fried Chickens, apresenta prostitutas que citam Henri Bergson e Hegel ao motorista de caminhão, Houshino, e fica permanentemente conectado a ele.
Podemos resumir o romance como um ritual de passagem para o mundo adulto de um menino de 15 anos a procura de uma alma gêmea seguindo a meditação de Platão que cada um de nós está à procura de uma alma gêmea para nos completar. Kafka Tamura encontra em Miss Saeki – uma antiga compositora - que lhe aparece em sonhos quando ela tinha quinze anos, sua idade atual. Hoshino, um caminhoneiro comum, encontra em Nakata, algo que lembrava um discípulo estúpido e devotado do Buda, mas que lembrava seu amado avô.
O que Oshima queria dizer a Kafka é que no “Banquete” livro de Platão, o filósofo conta a história dos andróginos que eram seres humanos enormes e redondos, com quatro braços e quatro pernas e duas cabeças e tinham os dois sexos. Eram a criação preferida de Zeus, o rei dos Deuses, mas ficaram ambiciosos, e começaram a incomodar, pois gozavam de poder, até que Zeus incomodado com a petulância dividiu os androides em dois. A partir daí os seres humanos passavam a vida se sentindo incompletos, vagando pelo mundo a procura de sua outra metade. Quando se encontravam, as metades se abraçavam chorando, ficando assim abraçados até morrer. E esta é até hoje a nossa sina: vagar pelo mundo, nos sentindo incompletos, procurando nossa outra metade.
Apesar de nunca terem se encontrado, podemos ver que seus destinos estão entrelaçados, afinal Nakata ajuda Kafka a esclarecer parte de todas as suas relações misteriosas entre si e seu pai, Saeki, que ele imaginava ser sua suposta mãe que desapareceu de casa quando ele tinha quatro anos, e por outra personagem Sokura, uma menina que conheceu no meio de sua fuga da casa dos seus pais e que poderia ser sua irmã cuja história revela certas coincidências na trajetória dele.
A forma como Murakami aborda o tema e o mito de Édipo é ousadamente original, legível e fluente, um livro recomendado não só para aqueles que conversam com gatos e gatas. Todos estão aptos a ler esse livro maravilhoso. Na narrativa de Murakami o labirinto nos é revelado em florestas impenetráveis com seus simbolismos. Mas não se preocupem, pois o autor nos oferece uma abundância de saídas e de estratégias para sairmos de todos os labirintos, para isso, torna-se fundamental sua leitura e se tornar um “murakamista” de carteirinha. Por todas essas qualidades é mais um livro que merece um lugar na sua estante. Recomendo com a nota máxima.